Como é público, o governo propõe-se
aumentar a cobrança de impostos, servindo-se do expediente de rifar um
automóvel “topo de gama” pelos
contribuintes mais zelosos. Não importa aqui avaliar do mérito o demérito da
iniciativa. Outros com mais talento o têm feito (v. p.ex. “As rifas do fisco e a governação rasca” – artigo de Victor
Malheiros – in Público – 11.02.2014).
Mas a “rasquice” do conceito “topo de gama”, como celebração de uma certa mentalidade,
interessa-me, pois me irá permitir recordar uma “estória” verídica, passada nos longínquos anos sessenta do século
passado.
Ora, esguardai...
No espaço social-rural da minha
infância, o lugar que cada individuo ocupava nas hierarquias sociais era, em
grande medida, estabelecido pelo meio de transporte individual utilizado.
Da base ao topo, os meios de transporte,
eram assim, escatologicamente, distribuídos:
À pata, isto é, de
butes, quer dizer a pé, naturalmente, para o
pé-descalço, que se arrastava, de terra em terra, em busca do favor de uma
jeira;
De burro, animal
resistente, de escassa comida e poucos protestos, para os rendeiros pobres, com
uma ranchada de filhos, que nas ladeiras íngremes cultivavam uns alqueires de
centeio, sustento da família e que, mal chegado o Natal, já escasseava.
De macho ou de mula, animal
estéril, hibrido das espécies burro e cavalo, encorpado e possante – utilizado
por almocreves ou um ou outro agricultor de menor posses.
De égua, animal nobre e
distinto, liberto do opróbrio dos trabalhos pesados, entregues a pachorrentas
juntas de bovinos, era o meio utilizado pelos agricultores mais ricos e de
melhores terras; a égua acrescentava, à elegância do porte, uma outra vantagem
– era do género feminino, logo parideira e o, consequente, ganho das crias.
Finalmente - topo de gama - o
garboso cavalo, símbolo e ostentação dos resquícios de uma fidalguia de
fundilhos gastos e poluídos que, arruinada, teimava em (mal) subsistir num
mundo inexoravelmente em mudança, malgré
a sociedade fechada e opressiva.
O cavalo era então (sei-o hoje) uma
espécie de incarnação tardia do velho “Rocinante”
, testemunha privilegiada da “ruina dos
tempos e dos mitos”, celebrada no célebre romance de Cervantes.
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Após esta breve tentativa de
enquadramento sociológico, estarão agora, porventura, os meus eventuais leitores,
mais aptos e curiosos da “estória” que me propus contar. E que virá em breve...
Por agora, fiquem-se pelo “aperitivo” .
5 comentários:
E que bem que soube. Podes servir mais que fiquei sequioso.
Abraço Fraterno
Aguardo então o prato principal. :-))
Excelente comparação!!!
Ficamos à espera de outras metáforas destas e de outras...
Beijinho
Aguardo na minha escarpa
Abraço
Ah que em ânsias fico de bem saber a história que ireis contar. Que venha azinha! :))
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