Gosto de me mover no meio de livros. Um
ritual que, por alguma qualquer razão, me apazigua. A verdade é que sempre
gostei de livros, (mesmo antes de o saber), desde que, maternalmente, aprendi a soletrar as primeiras letras, em jornais
atrasados, ou outro qualquer papel, servindo de cartilha.
De facto, existiam poucos livros lá em
casa, nos tempos da minha meninice. Apenas, na estante do oratório, debruada a
linhos e bordados, como sacrário que se oferecia, no gineceu da casa, a
femininas devoções e novenas, uma Bíblia já gasta e um precioso “Livro de
Horas” de capa lacada. Ou algumas biografias de santos com folhas soltas e
rasgadas e outras publicações religiosas, herdadas de tias de piedosas.
Talvez o gosto pelos livros provenha
daí, desse afago quente e cúmplice das primeiras letras e dessa
inacessibilidade primeva ou do deslumbramento infantil perante a iconografia daquele
santuário familiar.
Seja como for, hoje, os livros mantêm
uma espécie de aura, que gosto de frequentar. Ao longo da vida tenho adquirido
alguns, não tantos como por certo desejaria, mas bastantes para ter a certeza
que muito deles não terei tempo para ler.
Ultimamente, surpreendo-me a adquirir
livros como quem faz testamento. Isto é, como quem deseja que, depois de mim,
fique o registo de que de mim fale, na falta de outra glória, riqueza ou
talento que me acompanhe. E tenho esperança que os livros serão lidos. Será, de
alguma maneira, a minha forma de moldar o futuro...
Sabem, por certo, os meus amáveis
leitores que Jorge Luís Borges, num conto fantástico (A Biblioteca de Babel),
afirma que o Universo é uma Biblioteca por onde peregrinamos em busca de um
livro (ou será o Livro?), mas a biblioteca é interminável. Não ouso assomar
sequer, quanto mais percorrer, os escaninhos labirínticos da Biblioteca de
Borges, mas não me coíbo de passar os dedos pelas lombadas dos livros ao meu
alcance, leve que seja o desejo e o entendimento.
Deambulo, portanto, sempre que a ocasião
se proporciona, pelas livrarias; não com a pretensão de um dia encontrar a
decifração da verdade, mas em qualquer caso, para procurar algum alento contra
a mentira.
E, nestas peregrinações, me vou gastando
e melhor conhecendo o Mundo...
Há alguns anos a esta parte, surgiram em
Lisboa, em algumas estações do Metropolitano espaços de venda, onde os livros
se derramam numa espécie de bric-à-brac horizontal, como se um capricho
invisível tivesse apeado a imponência majestosa das velhas livrarias e a
Biblioteca de Babel fosse, já não a infinita cornucópia labiríntica de que fala
Borges, mas antes a rasoira implacável do deus-consumo, que tudo expele e
degrada. Até os livros...
No entanto, nesses espaços de
reciclagem, por entre restos e lixo editorial, descobre-se, por vezes, uma pérola
ou outra, que como caçador de tesoiros me gratifica e conforta, breves que
sejam os momentos...
Na sequência de uma dessas incursões colhi
um singelo apontamento do quotidiano, que passo a narrar, um quase-nada, um
pequeno detalhe tão denso de significado que, como breve centelha de esperança,
ilumina a vida e preserva intacto o futuro. Pelo menos perante meus olhos,
nunca cansados de deslumbramento e de surpresa...
Ora vejam...
Foi uma tarde de Domingo, pelas 16 horas
da tarde. O centro comercial, regurgitava. Massas humanas atropelavam-se numa
moleza de autómatos, nas escadas rolantes e nos espaçosos corredores,
espreitando as vitrinas e mastigando a angústia e o vazio. Crianças pela mão,
exigentes nas solicitações, que as coloridas promessas, ali à mão, se ofereciam
nas lojas e no esplendor dos enfeites...
E os pais, sabe-se lá qual com que
mágoa: “Não pode ser, não pode ser...”
– puxando pelas crianças lacrimosas, num gesto de impaciência mal contida...
Rumei, pois, nas minhas deambulações. E,
em breves instantes, deparei-me com um desses espaços de venda de livros, onde
entrei, não sei bem se para aplacar a angústia da tarde, se arrastado pelo hábito.
Tive sorte. Dos escombros em saldo, por entre publicações de erotismo de
pacotilha e outras esotéricas com promessas de felicidade futura, veio
parar-me às mãos o volume que me faltava da obra de um dos grandes vultos da cultura europeia do século XX.
Dei o dinheiro (cinco euros) por bem empregue. E, saboreando
a minha descoberta, dirigi-me a caixa. À minha frente, na fila de pagamento, o
momentâneo prodígio. Um jovem, com menos de trinta anos, manifestamente de
formação académica superior, de ténis gastos e roupa poluída mas de bom gosto,
rosto marcado e expressivo, olhar firme e magoado surgiu, perante no meu
espírito inquiridor, como um digno exemplo da geração dos € 500 euros, não sei
se no desemprego, se aguardando a oportunidade de emigrar.
Insisti em olhar, o que manifestamente
o incomodou. Mas então a minha curiosidade já se deslocara. O centro agora era
a doçura de criança como menos de três anos, loira e encaracolada, que segurava
pela mão. Falava pelos cotovelos a rapariguinha. E perante o meu mal contido
desvelo e meu sorriso babado, a menina estendeu-me um dos livros infantis do
monte, que segurava com dificuldade: “O papá compra!...”
- esclareceu-me em seu linguajar...
Vinte euros! - anotei no registo da
máquina. O preço da felicidade de pai jovem e desempregado. E de uma filhinha
linda...
“Só
pela sede se aprende a água...” – balbuciei intimamente, apaziguado e
comovido.
15 comentários:
Comovente este registo final!
Já hoje numa ida ao HSM me deparei com uma dessas "feiras do livro" na estação do metro da Cidade Universitária...mas não deu para entrar.
Normalmente entro e às vezes encontro pechinchas!
Abraço
Na generalidade 'livros' é o local onde mais se exprime a essência do Homem. No particular, acho que é precioso todo o livro que se abre com interesse e se fecha com proveito.
Fechei o (meu) silêncio e vim dar-te um abraço.
E 'oferecer-te' três minutos; que, espero, te sejam agradáveis. Aqui:
http://www.tintapermanente.com/estor.mp4
Abraço.
“Só pela sede se aprende a água...”
Uma maravilha todo este seu texto e é curioso como me identifiquei com tantas coisas que escreveu. Desde a meninice a este tempo...
Um beijo, amigo.
Excelente texto replecto de sensibilidade e conteúdo
uma viagem lúcida
com olhos de ler
Abraço amigo
Partilho contigo esse imensurável gosto por livros...
Sou leitora principlamente de livros usados ou em 2º mão, como lhe quiserem chamar. Louvo a internet por isso, a oferta neste "ramo" é muito superior à procura. Talvez seja mais um sintoma desta crise.
Sou portanto, amante de palavras que fazem sentido e talvez por isso gostei bastante de ler este teu texto.
Simplesmente muito bem escrito!
gostei mesmo e a frase da sede e da água exprimem bem as angústias, os desejos, as vontades de ter sem realização...
abraço
Sinto que os livros nos chamam e nos escolhem. Muitas vezes, objetivando a aquisição de um, acabamos trazendo outro, desconhecido. E nos encantamos com seu conteúdo.
Sua narrativa é clara e bem desenvolvida. Um belo texto.
Também sofri da escassez de livros na meninice,mas não foi por isso que não lia, ou relia, inúmeras vezes as mesmas palavras.
Sem ler é que não podia ser.
beijinhos
Revejo-me em reflexo...
Excelente na prosa.
Beijinho
Gostei bastante!
Também eu tive uma infância assim...
Mas sempre que encontrava letras
lia e relia, como brincadeiras secretas...
e agora com tão pouco tempo
tenho um montinho sempre à minha espera...
e por vezes a mente desespera...
e claro, a poesia...
mesmo que fosse prosa eu tratava de a compor de forma rimada e caprichada :))
ainda ficou o bichinho de menina
pequenina:))
sim, e hoje os tempos são de procurar tesouros, ainda que não emoldurados...não importa sejam de 5 ou de 20€...importa que nos deixem saciados!! :)
Emily Dickynson, no seu desejo
"Pela sede, aprende-se a água"
Bonita citação, sem dúvida!!
Beijos
Baila Sem peso,
grato por ter esclarecido a minha citação.
citei de memória e, em rigor, sem saber bem onde a tinha colhido.
fez bem em evocar Emily Dickynson e a sua formulação certa.
obrigado
Só por um belo texto -como este- se aprende a sensibilidade.
Muito bom meu caro.
Abraço Fraterno
Texto belo e sentido, coração na ponta dos dedos.
Na primeira parte fizeste-me lembrar um filme de ficção que vi há poucos anos e de que gostei - O Livro de Eli.
Um abraço
o texto é um pouco de mim.
mas, comovo-me até às lágrimas, e fico com uma sensação tão triste.
...
:(
Belíssimo texto!
Ler um livro é como viajar bem acompanhado.
Bjs.
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