“O
fascismo nunca existiu!...” A célebre “boutade” proferida, logo após o 25 de
Abril, por um conhecido intelectual residente em França, tem sido recorrente na
nossa comunicação social. E a carga irónica inicial, que subvertia o sentido
literal do enunciado, fechou-se agora no seu significado facial, num claro
propósito de branqueamento.
De
facto, nos meios de comunicação social dominante, ao longo das últimas décadas,
têm sido constantes as afirmações de que não houve fascismo em Portugal, no
longo período de 1926 a 1974. Historiadores, sociólogos, politólogos e outros
cientistas sociais juram a pés juntos que o regime não foi fascista,
preferindo, em seus argumentos, expressões como “Estado Novo”, “antigo regime” ou “regime ditatorial”...
Porém,
factos são factos. Que outro nome chamar a uma ditadura que edificou um Estado
policial e totalitário e condenou à miséria, ao sofrimento, à ignorância e ao
obscurantismo gerações de portugueses? Que outro nome dar à repressão criminosa
com tribunais especiais, prisões políticas e campos de concentração e que não
hesitou em assassinar, quando considerou ser necessário?
Como
qualificar o gesto simbólico de Salazar manter, na sua secretária de trabalho,
o retracto de Mussolini, junto do qual, aliás, se fez fotografar? Ou então ter
proclamado três dias de luto nacional pela morte de Hitler? E, noutro plano, o
apoio explícito ao ditador Franco durante a guerra civil de Espanha, sem o qual
outro teria sido o resultado do conflito?
Que
dizer do Estatuto do Trabalho Nacional e das diversas Corporações Nacionais,
copiadas das instituições fascistas italianas, designadamente, da “Carta del
Lavoro”? E as estruturas paramilitares, - a Mocidade Portuguesa e a Legião
Portuguesa - mediante as quais se procurava enquadrar e doutrinar a juventude,
os trabalhadores e a sociedade em geral?
Parece
óbvio que negando-se o fascismo, se procura desmentir a acção de todos os que
heroicamente a ele se opuseram, desde a primeira hora e, assim, negar o “corte”
estrutural na realidade sociopolítica portuguesa, decorrente do impacto
político da Revolução de Abril, que muitos gostariam tivesse sido, noutro
contexto, “a evolução na continuidade” marcelista.
Claro
que este “apagamento da memória” e este relativismo conceptual ou as
proclamadas objectividades científicas de branqueamento do fascismo têm efeitos
deletérios na sociedade portuguesa. Desde logo, o desmerecimento da política e
o sentido lúdico da sua prática. Pois não era Salazar quem abominava a política
e quem proclamava o “sacrifício” da governação?
O
slogan fascista “se soubesses quanto custa mandar, gostarias mais de obedecer”,
perseguia a sociedade portuguesa, desde as escolas aos locais de trabalho, como
fundamento de conformação social.
E quem
ignora que tal magistério ainda hoje tem “cultores” na vida pública portuguesa?
Pois não é verdade que nos mais altos lugares do Estado são ocupados por
políticos que arrenegam ser “políticos”? E que a dita sociedade civil esta
repleta de “génios” (políticos) que privam a Pátria do seu(s) talento(s) pelo
desdém à política e pelo “sacrifício” que a devoção à causa pública acarreta?
Claro
que a isto tudo se associam ainda outros factores de descrédito, como as
promessas não cumpridas e bloco central de interesses instalado na sociedade
portuguesa, a corrupção larvar que atinge os mais altos escalões da
Administração Pública, a promiscuidade de interesses públicos e privados, o
aviltamento das elites económicas e sociais, etc., etc. Então, digam-me, com
este “caldo de cultura” e semelhantes modelos sociais, que esperar senão e
descrédito da política e dos políticos? E, no outro plano, que esperar senão as
pulsões demagógicas, eivadas de um certo “autoritarismo” justicialista que
irrompem na sociedade portuguesa?
O
povo, claro, causticado pela “crise” e pelas “inevitáveis” políticas de
austeridade, procura, sobretudo, “safar a vidinha” e, por isso, “ignora” a
política e os políticos, que considera com “um mal necessário”...
Mas,
então, não chorem lágrimas de crocodilo aqueles que são os responsáveis por tal
estado das coisas!...
Manuel
Veiga
9 comentários:
O povo não lê
prefere as romarias
A canalha formatou-os
para a indiferença
Que fazer?
Resistir mesmo que a voz nos doa
~ ~ ~ Excelente dissertação! ~ ~ ~
~ ~ Para mim "estado novo", "antigo regime totalitário", "Portugal salazarista", são sinónimos do ""f a s c i s m o"" que senti à flor da pele e do qual, procuro passar testemunho às novas gerações.
~ ~ ~ Procure fazer chegar o seu texto impecável aos mais jovens.
~ ~ ~ Agradável e ameno fim de semana. ~ ~ ~
~ ~ ~ ~ Abraço amigo. ~ ~ ~ ~
Por falar em Política, cadê o POVO, cadê???
Beijos!
Sabe, Caríssimo Manuel Veiga,
por mais que nos doa, a verdade é que, volvidos tantos anos sobre o Abril dos cravos, o povo ainda não tenha entendido que a política não é panaceia dos políticos - é dever de cidadania de todos nós. O senhor exerce-o aqui em posts como este.
Posto isto uma nota apenas: A Poeta Licinia Quitério disse o que, julgo, a maioria de nós que o lemos há muitos anos, gostaríamos de ter dito, em iguais circunstâncias, assim as palavras nos tivessem abençoado em dons de escrita e de oratória como a ela. Subscrevo-as inteiramente.
Ainda que tardio, sinceros parabéns pelo dia, por si, pelo Eufrázio, pela Licínia, e, por todos os que se fizeram presentes a começar pela Editora Poética.
Fraterno abraço
Mel
Como gostei de te ler, meu amigo...
Hoje há muita gente a querer branquear aqueles tempos tão negros e que tanto mal fizeram a este país... O pior é que cada vez mais gente acredita nesses que não sabem (ou sabem) o que dizem...
Obrigada e um beijo.
Muito bem escrito. Um assunto inesgotável. Sempre a merecer reflexão.
Bom dia caro Manuel,
Muito bem seguida sua linha de pensamento.
O passado, já não há como alterar, mas o que se vive no presente, que hipocritamente uns, inocentemente outros, chamam Democracia, não passa de demagogia pura que só serve interesses de dúzia e meia, tem que levar com mudança e grande, assumida por toda uma sociedade.
abç amg
Excelente reflexão.
O fascismo e os fascista existiram e continuam presentes, muitas vezes, sem necessitar de dissimular.
Abraço meu irmão
Receio que num futuro nao muito distante...o 25 de Abril e tudo o que ele significa nada mais seja que um dia no calendário... É preciso avivar memórias...
Abraço*
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