.... Apalpou-se, estava vivo. E inteiro!
O Inferno agora era o ladrar das armas
ligeiras e as balas a um palmo do nariz a desfazerem-se nos montículos das formigas
“vaga-vaga” como abrigo, o tricot miúdo da “costureirinha” a martelar os
ouvidos, os gritos, os choros, as imprecações, homens borrados de medo em
prece, o sangue a empapar camuflados, o fogo descontrolado em barragem, a
aplacar medos e a ira. E a desesperada gritaria da rádio “daqui, Papa: Romeo, escuto!...” e a voz exaltada do capitão “que caralho de merda andam a fazer os seus
homens, nosso alferes? o 3º pelotão está a ser atingido pelo seu fogo!...”
e o grito rouco e impotente do alferes “parar
fogo, parar fogo!... disparar apenas para a copa das palmeiras, donde vêm os
tiros...” E os primeiros raios da manhã e o roncar dos ronceiros T6 Harvard,
em apoio aéreo, e o capitão a não largar a braguilha “os seus homens vão fazer segurança ao “mosca”, que está a chegar para
evacuar feridos e os mortos” e os cinquenta metros a rastejar na lama e no
medo por entre o fogo cruzado e o menino, em sua fantasmagoria, agora não
melro, mas evocando Lia...
“Ah,
malandros sem vergonha, que ides direitinhos para as profundezas do Inferno!...
Com a vossa idade e já a fazer essas porcarias!...” - era a dona Elisa, do outro
lado do muro, que separa o quintal do adro da Igreja. Do lado de cá, por baixo
do vitral da sacristia, protegidos por uma reentrância do templo, a pequena e
amorável Lia deitada de costas, vestido levantado pela cintura, de pernas esquálidas,
em todo o esplendor dos seus sete anitos precoces, a exibir o sexo impúbere. Ele,
menino, a obedecer, entre a inibição e o deslumbramento, a tocá-la e a mexer e
agora ela também a abrir-lhe os calções e a puxá-lo para cima.
E então
a voz de dona Elisa soou como trombetas do juízo final. Sodoma e Gomorra, estátuas
de sal, caldeirões de água fervente, chamas, diabos negros a atiçar fornalhas
em labaredas medonhas, bocarras deglutindo almas, choros e ranger de dentes,
visões dantescas de gravuras e livros sagrados com que tias velhas e solteiras,
zeladoras do Santíssimo Sacramento, o exorcizavam e, piedosas, o encomendavam a
Deus e a seus anjos, explodiram como bola de fogo a derreter a alma “pecaminosa”
do menino. E um choro genuíno, profundo, rios de lágrimas como enxurradas
de inverno, toda a vergonha do mundo e o pânico e o menino a correr para o
regaço da mãe, como expiação e lenitivo.
E a
mãe preocupada perante o mutismo e o choro diluviano: “Que se passou, Lia? Porquê este choro?” E Lia, sereníssima,
imperial, categórica: “Nada de especial. Estávamos a jogar à “apanhada” e o Manel
caiu e magoou-se num joelho...”
A Lia,
a soberaníssima Lia, sobrinha de padre, a Lia mestra de seus devaneios e infantis brincadeiras, acabara, sábia e redentora, de resgatar o menino das chamas do inferno!...
Reinava então, gloriosa, a manhã tropical em todo o esplendor de tonalidades de cores, cheiros e gritos. Descarregadas as
bombas, os aviões desfizeram a emboscada. Mortos e feridos evacuados. O balanço
ficaria para mais tarde. Os homens em fila indiana, desfeitos, de mochila às
costas iniciavam então o regresso de dezenas de quilómetros, por dentro da bolanha – aquele inferno terminara.
Outro começara!...
(E a Maria Adelaide em seu limbo, por enquanto)
Manuel Veiga
1 comentário:
Fizeste-me lembrar Camilo nesta crónica de 'anjos'.
Beijos
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