quinta-feira, junho 04, 2015

FRAGMENTOS III - A LIA...


.... Apalpou-se, estava vivo. E inteiro!

O Inferno agora era o ladrar das armas ligeiras e as balas a um palmo do nariz a desfazerem-se nos montículos das formigas “vaga-vaga” como abrigo, o tricot miúdo da “costureirinha” a martelar os ouvidos, os gritos, os choros, as imprecações, homens borrados de medo em prece, o sangue a empapar camuflados, o fogo descontrolado em barragem, a aplacar medos e a ira. E a desesperada gritaria da rádio “daqui, Papa: Romeo, escuto!...” e a voz exaltada do capitão “que caralho de merda andam a fazer os seus homens, nosso alferes? o 3º pelotão está a ser atingido pelo seu fogo!...” e o grito rouco e impotente do alferes “parar fogo, parar fogo!... disparar apenas para a copa das palmeiras, donde vêm os tiros...” E os primeiros raios da manhã e o roncar dos ronceiros T6 Harvard, em apoio aéreo, e o capitão a não largar  a braguilha “os seus homens vão fazer segurança ao “mosca”, que está a chegar para evacuar feridos e os mortos” e os cinquenta metros a rastejar na lama e no medo por entre o fogo cruzado e o menino, em sua fantasmagoria, agora não melro, mas evocando  Lia...

“Ah, malandros sem vergonha, que ides direitinhos para as profundezas do Inferno!... Com a vossa idade e já a fazer essas porcarias!...” - era a dona Elisa, do outro lado do muro, que separa o quintal do adro da Igreja. Do lado de cá, por baixo do vitral da sacristia, protegidos por uma reentrância do templo, a pequena e amorável Lia deitada de costas, vestido levantado pela cintura, de pernas esquálidas, em todo o esplendor dos seus sete anitos precoces, a exibir o sexo impúbere. Ele, menino, a obedecer, entre a inibição e o deslumbramento, a tocá-la e a mexer e agora ela também a abrir-lhe os calções e a puxá-lo para cima.

E então a voz de dona Elisa soou como trombetas do juízo final. Sodoma e Gomorra, estátuas de sal, caldeirões de água fervente, chamas, diabos negros a atiçar fornalhas em labaredas medonhas, bocarras deglutindo almas, choros e ranger de dentes, visões dantescas de gravuras e livros sagrados com que tias velhas e solteiras, zeladoras do Santíssimo Sacramento, o exorcizavam e, piedosas, o encomendavam a Deus e a seus anjos, explodiram como bola de fogo a derreter a alma “pecaminosa” do menino. E um choro genuíno, profundo, rios de lágrimas como enxurradas de inverno, toda a vergonha do mundo e o pânico e o menino a correr para o regaço da mãe, como expiação e lenitivo.

E a mãe preocupada perante o mutismo e o choro diluviano: “Que se passou, Lia? Porquê este choro?” E Lia, sereníssima, imperial, categórica: “Nada de especial. Estávamos a jogar à “apanhada” e o Manel caiu e magoou-se num joelho...”

A Lia, a soberaníssima Lia, sobrinha de padre, a Lia mestra de seus devaneios e infantis brincadeiras, acabara, sábia e redentora, de resgatar o menino das chamas do inferno!...

Reinava então, gloriosa, a manhã tropical em todo o esplendor de tonalidades de cores, cheiros e gritos. Descarregadas as bombas, os aviões desfizeram a emboscada. Mortos e feridos evacuados. O balanço ficaria para mais tarde. Os homens em fila indiana, desfeitos, de mochila às costas iniciavam então o regresso de dezenas de quilómetros, por dentro da bolanha  – aquele inferno terminara.

Outro começara!...

(E a Maria Adelaide em seu limbo, por enquanto)

Manuel Veiga


1 comentário:

MS disse...

Fizeste-me lembrar Camilo nesta crónica de 'anjos'.

Beijos

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