segunda-feira, junho 15, 2015

FRAGMENTOS IV - O VALENTE VALENTIM...


Não, não existe autor. Nem soberania da palavra. Aquilo que é dito e o interdito confundem-se, sem remissão ou glória. De nada serve proferir um nome ou inventar um rosto. Apenas os silêncios são epifania. E, se autor existisse, assumiria então o comando da narrativa, ordenaria os farrapos da memória e o discurso fluiria incessante e cristalino. E o grau zero do inumano ganharia a expressão do absurdo. E a discursividade dos limites e do sofrimento seria uma palavra mordente, declinada em apóstrofe ou blasfémia. Mas não. A palavra fica presa nos liames e nas picadas e nas veredas lodosas e na profusão incessante daquelas águas chocas. O pavor e a raiva e a infinita solidão daquele calvário, as chagas dos pés e todas mazelas e todos os gritos de revolta se calcinaram, no rasgar do cansaço sobre os corpos como lâminas de desespero e na sufocante ansiedade de lhe apressar o fim. E embotaram toda energia e resistência. Apenas o cansaço poroso a invadir os sentidos, os olhos moles de sono a fecharem-se, o cachação do camarada que o pior seria adormecer e tombar no lodo, inerte, como morto, fora do tempo e do mundo, numa desistência de absoluto abandono. E a extensa fila de homens, qual centopeia de mil pernas, ligados, derreados, serpenteando a orla da “bolanha” num trilho de indígenas, enquanto a maré sobe e água negra de mil decomposições, fétida, arrastando detritos e todas as sínteses, como o caldo primordial de todos os acasos de vida, esqueletos, carapaças, jacarés apenas olhos seguindo a presa, algas venenosas, insectos, batráquios, vermes, minúsculos seres, quase invisíveis, filando-se na carne dorida como agulhas finas. Penosos os passos, presos no lodo e o sol derretendo-se no lombo, como bestas. E a água morna a tomar o percurso das pernas e das virilhas, a infiltra-se no corpo, a dobrar a cintura e atingir as axilas. E os homens de braços erguidos, como numa prece muda, ou castigo, de G3 sobre a cabeça, último reduto de identidade e de defesa.

Horas intermináveis, infindas, até ao dobrar da bolanha e arribar ao cais improvisado e aos fuzileiros amigos e às ronceiras LDMs, onde embarcariam provisoriamente seguros.  

Que sabes tu de África, Maria Adelaide? Filha de África te dizias: que sabes desses dias?...

Não, não te recrimino, nem – longe de mim – me arrogo em tua “consciência moral”. Sei bem que cada um de nós arrosta, inocentes e puros, a consequência dos nossos acasos e da vulnerabilidade das nossas vidas. Nem tu escolheste África como berço, nem eu demandei África, como destino de guerra.

Mas que queres? Hoje estou assim um pouco azedo. Estas evocações envenenam o sangue. E, como títeres de um teatro de fantoches, desfilam, enfim,” velhos conhecidos”. Vou soltá-los, permites?

Olá, Valentim, bem-vindo. Claro que estás morto. Estúpido o acidente que te ceifou a vida, a dois dias de regressarmos à “peluda”. Já contávamos até os dias por horas. Estúpido o despiste do Unimog, que se voltou esmagando-te o crânio, já no regresso à cidade, onde embarcaríamos depois de dois anos consecutivos de mato. É evidente que não tens direito a hino, nem a inspirado poema, nem a Cruz de Guerra, claro. Mas confesso-te que, quando a voz plangente de Adriano ecoa em “Canção com Lágrimas”, as fimbrias mais íntimas de mim próprio estremecem e acendo então o “meu no teu cigarro” como se fora ainda ontem a celebração dos garbosos alferes, subindo a trote a Calçada da Ajuda, rumo a Monsanto, em exercícios de equitação militar.

Como tu gostarias de nos ver, Maria Adelaide, assim brilhantes de solarina e “panache”...

E os dez contos recebidos como pré, semanas antes do embarque, depois de conhecido o destino? Era para comprar as fardas – ordenou o regimento - obrigatória a farda branca ultramarina e duas elegantes fardas de sair em castanho claro. Mas dez contos eram uma fortuna! Nem eu, nem tu tínhamos visto alguma vez tanto dinheiro na mão... Uma orgia, portanto! Sabíamos lá se voltávamos, ou se regressaríamos embalsamados em caixão de chumbo... E não houve bar, cabaré, prostíbulo ou puta de Lisboa (passe o exagero, que a capital é grande) que não frequentássemos.

E tivemos até o desplante de atrasar, por horas, a partida do Uíge, com todo o Batalhão embarcado, enquanto no Hospital Militar, para onde o médico da companhia nos despachou de urgência, nos diagnosticavam uma doença venérea, que não pudemos calar...

E a nossa entrada no barco, constrangidos. E a voz do comandante, entre a severidade e o riso, a reclamar de nós o cumprimento rigoroso das normas militares e a lembrar que um oficial de cavalaria, “antes de montar, deve conhecer primeiro os vícios da montada...”

Voltarei a ti, Maria Adelaide. E a África. Com o Valentim de permeio...

Manuel Veiga


  

4 comentários:

Suzete Brainer disse...

Tenho que discordar, quando é evidente uma narrativa
deliciosa, fluente e libertadora na ação do questionamento
da existência do autor. Este presente no seu próprio paradoxo.

Sempre maravilhoso ler-te!!
Beijo.

Sónia Micaelo disse...

Maravilhosa a sua prosa, Manuel.
Um verdadeiro prazer, poder lê-lo.

Beijo

Mar Arável disse...

O belo ciclo inesgotável das marés

Abraço sempre

luisa disse...

Vejo o desfilar das palavras como num pesadelo. Depois percebo que é (foi) mesmo.

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