Não, não existe autor. Nem soberania da
palavra. Aquilo que é dito e o interdito confundem-se, sem remissão ou glória.
De nada serve proferir um nome ou inventar um rosto. Apenas os silêncios são
epifania. E, se autor existisse, assumiria então o comando da narrativa, ordenaria
os farrapos da memória e o discurso fluiria incessante e cristalino. E o grau
zero do inumano ganharia a expressão do absurdo. E a discursividade dos limites
e do sofrimento seria uma palavra mordente, declinada em apóstrofe ou
blasfémia. Mas não. A palavra fica presa nos liames e nas picadas e nas veredas
lodosas e na profusão incessante daquelas águas chocas. O pavor e a raiva e a infinita
solidão daquele calvário, as chagas dos pés e todas mazelas e todos os gritos
de revolta se calcinaram, no rasgar do cansaço sobre os corpos como lâminas de
desespero e na sufocante ansiedade de lhe apressar o fim. E embotaram toda energia
e resistência. Apenas o cansaço poroso a invadir os sentidos, os olhos moles de
sono a fecharem-se, o cachação do camarada que o pior seria adormecer e tombar
no lodo, inerte, como morto, fora do tempo e do mundo, numa desistência de
absoluto abandono. E a extensa fila de homens, qual centopeia de mil pernas,
ligados, derreados, serpenteando a orla da “bolanha” num trilho de indígenas,
enquanto a maré sobe e água negra de mil decomposições, fétida, arrastando
detritos e todas as sínteses, como o caldo primordial de todos os acasos de
vida, esqueletos, carapaças, jacarés apenas olhos seguindo a presa, algas
venenosas, insectos, batráquios, vermes, minúsculos seres, quase invisíveis,
filando-se na carne dorida como agulhas finas. Penosos os passos, presos no
lodo e o sol derretendo-se no lombo, como bestas. E a água morna a tomar o
percurso das pernas e das virilhas, a infiltra-se no corpo, a dobrar a cintura
e atingir as axilas. E os homens de braços erguidos, como numa prece muda, ou
castigo, de G3 sobre a cabeça, último reduto de identidade e de defesa.
Horas intermináveis, infindas, até ao
dobrar da bolanha e arribar ao cais improvisado e aos fuzileiros amigos e às
ronceiras LDMs, onde embarcariam provisoriamente seguros.
Que
sabes tu de África, Maria Adelaide? Filha de África te dizias: que sabes desses
dias?...
Não,
não te recrimino, nem – longe de mim – me arrogo em tua “consciência moral”.
Sei bem que cada um de nós arrosta, inocentes e puros, a consequência dos
nossos acasos e da vulnerabilidade das nossas vidas. Nem tu escolheste África
como berço, nem eu demandei África, como destino de guerra.
Mas
que queres? Hoje estou assim um pouco azedo. Estas evocações envenenam o
sangue. E, como títeres de um teatro de fantoches, desfilam, enfim,” velhos
conhecidos”. Vou soltá-los, permites?
Olá,
Valentim, bem-vindo. Claro que estás morto. Estúpido o acidente que te ceifou a
vida, a dois dias de regressarmos à “peluda”. Já contávamos até os dias por
horas. Estúpido o despiste do Unimog, que se voltou esmagando-te o crânio, já
no regresso à cidade, onde embarcaríamos depois de dois anos consecutivos de
mato. É evidente que não tens direito a hino, nem a inspirado poema, nem a Cruz
de Guerra, claro. Mas confesso-te que, quando a voz plangente de Adriano ecoa em
“Canção com Lágrimas”, as fimbrias mais íntimas de mim próprio estremecem e
acendo então o “meu no teu cigarro” como se fora ainda ontem a celebração dos
garbosos alferes, subindo a trote a Calçada da Ajuda, rumo a Monsanto, em exercícios
de equitação militar.
Como
tu gostarias de nos ver, Maria Adelaide, assim brilhantes de solarina e “panache”...
E os
dez contos recebidos como pré, semanas antes do embarque, depois de conhecido o
destino? Era para comprar as fardas – ordenou o regimento - obrigatória a farda
branca ultramarina e duas elegantes fardas de sair em castanho claro. Mas dez
contos eram uma fortuna! Nem eu, nem tu tínhamos visto alguma vez tanto
dinheiro na mão... Uma orgia, portanto! Sabíamos lá se voltávamos, ou se regressaríamos
embalsamados em caixão de chumbo... E não houve bar, cabaré, prostíbulo ou puta
de Lisboa (passe o exagero, que a capital é grande) que não frequentássemos.
E tivemos
até o desplante de atrasar, por horas, a partida do Uíge, com todo o Batalhão
embarcado, enquanto no Hospital Militar, para onde o médico da companhia nos
despachou de urgência, nos diagnosticavam uma doença venérea, que não pudemos
calar...
E a
nossa entrada no barco, constrangidos. E a voz do comandante, entre a severidade
e o riso, a reclamar de nós o cumprimento rigoroso das normas militares e a
lembrar que um oficial de cavalaria, “antes de montar, deve conhecer primeiro os
vícios da montada...”
Voltarei
a ti, Maria Adelaide. E a África. Com o Valentim de permeio...
Manuel Veiga
4 comentários:
Tenho que discordar, quando é evidente uma narrativa
deliciosa, fluente e libertadora na ação do questionamento
da existência do autor. Este presente no seu próprio paradoxo.
Sempre maravilhoso ler-te!!
Beijo.
Maravilhosa a sua prosa, Manuel.
Um verdadeiro prazer, poder lê-lo.
Beijo
O belo ciclo inesgotável das marés
Abraço sempre
Vejo o desfilar das palavras como num pesadelo. Depois percebo que é (foi) mesmo.
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