Não,
não o Autor não existe. Nem o Sujeito tem história. Em certo sentido pode mesmo
dizer-se que o sujeito “está fora da estória”, meteorito apenas, fugaz,
deixando, quando é o caso, um rasto luminoso, outras vezes nem tanto, apenas
colapso no interior do magna, evanescente, condenado à sofreguidão e à imprevisibilidade
da palavra, que o atira para limbo das nocturnas excrescências. Descartáveis. Quando
muito poderá ser “partenaire” que na encenação, se assume cajado apenas,
artesão ou mestre, porta-voz ou palhaço, cerzindo os enredos da palavra e os
caprichos das personagens, iludindo as sombras e aquietando a luz, como tule de
ilusionista.
Nem,
em verdade, a narrativa tem Tempo. Mas antes confluência de tempos, artificio,
linhas quebradas de um rosto, onde se configuram vários rostos, informes,
distorcidos, desordenados, como se o caos da palavra buscasse uma passagem
secreta, demiúrgica, uma ordem invisível, que uma vez iniciada logo se fundisse
na imensidão de coisa nenhuma, como se acontecimentos, imagens, descrições,
estados de alma ou ritos, em tropel de despenhassem num grito de luz branca e o
sentido fosse apenas eco.
Apenas
o leitor salva o texto, em sua glória ou colapso.
O capitão destacara-o, para o extremo
nordeste do território, com o objectivo de fazer o levantamento das condições
de instalação de toda a Companhia e, com o respectivo pelotão, reforçado com
uma secção de engenharia, adaptar ou construir as infra-estruturas militares
essenciais, ainda que precárias, que até então destinadas a uma simples secção
de 15 homens, e que passariam a servir uma Companhia completa de mais de 120
militares.
Aquela zona de quadrícula estava ainda
relativamente imune a acção da guerrilha, dizia-se. Mas as necessidades
operacionais, decorrentes da nova estratégia introduzida pelo novel governador
militar, determinaram que a até então pequena secção, comandada por um furriel
miliciano e um pelotão de milícia indígena, comandada pelo filho do Régulo,
fosse substituída por uma companhia operacional completa.
É assim que, depois de mais de ano e
meio de constante intervenção, no teatro de operações, à ordem do Comando
Chefe, a Companhia de Cavalaria, com os homens exaustos pela insistente
intervenção militar nas operações de maior risco, pelos quilómetros percorridos,
pelos tiros, pelas minas e pelas baixas, o Supremo Comando Militar da Província
destinara-lhe aquele local recôndito, onde se as coisas corressem bem, a Companhia
passaria o resto da comissão, apascentando patrulhamentos de rotina, em
relativa acalmia.
Antes porém da transferência da
companhia e depois de uma visita de reconhecimento pelo capitão, comandante da
Companhia e de um oficial do comando da Batalhão, havia pois que com urgência realizar
as obras necessárias. Missão árdua e com prazo limitado, mas que permitia ao
Alferes uns dias de distanciamento da rotina asfixiante do quartel, entre as
ginástica e a ordem unida, o rancho e a caserna, a chamada e o toque de
recolher, a distribuição do correio como meses de atraso, “nós por cá todos
bem”, o poker e o king, a farda nº1
todas as noites ao jantar com o comandante do batalhão, o celebrado “cuequinhas de renda”, assim
designado na parada e na caserna, aquela conversa mole, como cerveja quente, a
escorrer das bocas com o último bocejo na sala de oficiais.
Ansiava o Alferes
por as leituras em dia, agora que o acaso o levara à descoberta, na diminuta
livraria de Bissau, numa edição em francês do “Estrangeiro” de Marcel Camus e o almejado “Dannés de la Terre”, do argelino Franz Fanón, sobre a guerra da
independência da Argélia, que em Lisboa corria então clandestino e de que
ouvira falar com entusiasmo, mas nunca às mãos lhe chegara.
Aceitou por isso
com bonomia o seu destino e a missão, bem sabendo ele que a uns bons
quilómetros de distância, não teria interferências, nem dificuldades no comando
do seu destacamento, cujos homens de uma maneira geral o estimavam e que o
furriel Serrão, com um curso de construção civil pelo ISE, arcaria com a
responsabilidade das obras, numa versão moderna e actualizada de um velho principio
da arma de cavalaria que rezava ser “obrigatório
o sargento saber ler e escrever, porquanto o oficial, por ser fidalgo, poderia não saber”.
"Fidalguias" e
livros à parte, assim o Alferes se sentiu, administrando o comando dos seus
homens à distância e as obras a cargo do sargento, deliciando-se em suas
leituras subversivas e outros prazer do espírito.
Assim devera ser. E, no entanto...
Se
lugar algum houvesse, aquele seria o Centro, o local do Crepúsculo, o palco de todas
as celebrações, onde o Desastre se incendeia, como larva em corpo decrépito. E fora
o autor outra coisa que não mero espectador e teríamos então a apoteose fogosa,
a ilustração do Declínio, a Putrefacção rarefeita, a síntese da Decadência,
como se “a coruja de Minerva”, (que dizem-me velhos alfarrábios comanda o
cavalgar da História e que apenas canta ao anoitecer) em seu voo nocturno, de
um golpe clarividência, iluminasse todos os fundamentos e razões, numa premonição
de Apocalipse dos dias futuros da guerra e da iminente queda nos abismos da derrota.
E talvez
outras personagens pudessem entrar em cena a representar o seu próprio papel, que dizer, o papel das suas ignoradas vidas, no interior do sistema colonial...
4 comentários:
Este registo a duas vozes é muito interessante. Como se uma voz se insinuasse dentro da outra voz, num jeito de alteridade em que o dizer é único. Gosto do relato, mas confesso que me agradou imenso a reflexão contida nos textos em itálico.
Um beijo, meu Amigo.
No meio do tando, sob o calor sufocante do mês de Fevereiro, lá estavam os doze homens "lançados do heli para extrair dois feridos numa emboscada, que perante uma salva de metralha se lançaram desabridamente, e descuidadamente para baixo do "pincha" (Unimog) sem sequer pensar nas minas antipessoais que ladeavam a coluna no local da emboscada...
Outro teatro, outra unidade mas a mesma odisseia para quem abominava a guerra e as armas...
Abraço do Zé
"Iludindo as sombras e aquietando a luz,
como tule de ilusionista"
E que grande "ilusionista das palavras"
tu és.Os teus fragmentos são de uma beleza textual
avassaladora, quando provocam em nós leitores,
a inquietude no impulso da leitura e a
satisfação de ter mergulhado nesta viagem...
Beijo.
É rica sua forma de se expressar. A menção a "vidas ignoradas" me soa tão triste! A luz está muito fraca para diluir as sombras. Abraço.
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