Prossiga então a Farsa e convoquemos os
leitores. É fazer vosso jogo, senhoras e senhores!... As barcas seguem seu
curso e as águas seu destino. E nada, nem elogios, nem despeitos, nem
presunções, nem indiferenças, nem encolher de ombros, nem finas ironias, nem
feitiços encomendados, nem amores ocasionais, nem juras de eternidade, nem
danças, nem bebedeira dos sentidos, nem biliosos sarcasmos ou ruas da amargura
podem alterar o ciclo das vidas ardidas. Nem o rumo das barcas. E, no entanto,
há cinzas que ardem como fogueira...
Vem,
Lia! É a tua vez de saíres dos bastidores e ocupar o centro do palco, antes que
o “Kamenino”, predador sem escrúpulos, surja dos escombros ou das labaredas do
inferno e te devore, quer dizer, te “tire o cabaço”, agora que teus seios
irrompem, nem sequer seios ainda, apenas promessa, como simulacro de “bajuda” guineense
foras, acorrentada a atavismos culturais gentios e ao poder colonial, numa
mistura bárbara de perversões, na qual a exploração sexual é, porventura, o
lado mais obscuro e repulsivo.
Ainda
é assim que te guardo, Lia. Nos teus impúberes seios, a despertarem emoções
precoces, na escolha das brincadeiras infantis de forma a ficarmos juntos no
círculo das outras crianças, na partilha das amêndoas e outras guloseimas do Padre
Manuel, padrinho meu de baptismo e crisma e teu santo tio, de asa protectora
estendida sobre a tua família, como se fora, não padre, mas “bonus pater
famillia”, administrando a côngrua e os bens da Igreja e a sua numerosa prole,
filhos dilectos, não dele que o homem era um santo sacerdote, nem da irmã
solteira que lhe fazia o caldo, cerzia as meias e cuidava da batina, mas de uma
sobrinha, que com ele trouxera nova, quando nomeado, por decreto do bispo, para
a paróquia, longamente vaga, que em tempos fora domínio clerical de um padre
republicano e depois despadrado.
Ali ficaste, Lia. Tuas irmãs mais velhas,
sequestradas, não por filhos de lavrador que bem sabiam que aquelas mãos
ociosas seriam inúteis nos rudes trabalhos, casadas, por isso, por quem de ali as levasse, guarda-republicano ou caixeiro-viajante, bem-falante, que no balcão da
loja de teu pai, Zé Maria, apresentava a última moda de cotins e chitas, que
haveriam, depois, corpos engalanados, ser festa de arromba no largo da praça e mais
tarde, carne para canhão da guerra colonial em gestação, como outrora remo e
vela de rotas desconhecidas foram, por “mares nunca dantes navegados”.
Mas
tu, não. Ali permanecias, Lia, crescendo em graça e juvenis formas de mulher,
flor sem vaso, nem altar, bordando a monotonia, como quem joga os dados da
espera na bainha de um tempo sem saída. Os teus irmãos mais velhos enfileiram na
emigração, autorizada por indispensável “carta de Chamada” para África e
Brasil, que a grande vaga posterior de emigração a “salto” para a Europa ainda não chegara. Teu
irmão mais novo, ainda assim subiu os degraus do Seminário, destinado a padre,
como teu santo tio, de quem ostentava o nome.
Mas o Padre Manuel estava velho e
cansado e os tempos eram negrume e miséria e o fim de vida martirizado por uma
“ferida ruim”, que, dia para dia, lhe comia a garganta e que santo padre
aceitava com resignação, que a vontade de Deus é insondável, e, do altar, o pus
e o sangue expelidos da ferida e da dor cobriam então como bênçãos, em comunhão
colectiva, a cabeça dos fiéis, tão arredios que lhe foram da missa e outras
cerimónias litúrgicas, durante toda a vida e que, nos últimos tempos, lhe
enchiam o templo.
O
outro Manuel, não teu irmão seminarista, mas o Manuel de tuas brincadeiras
infantis, que um dia, não muito distante ainda, soberaníssima, tu havias salvado
das penas do Inverno, a que a Dona Elisa, surpreendida, em sua perene
castidade, pela ousadia de teu vestido levantado e infantis coxas abertas, vos
havia, a ambos, votado, esse teu Manuel ensaiava os primeiros voos de pássaro
sem ninho, como estudante do Liceu, arrimado aos livros e à resiliência da
família. De vez em quando, de regresso à aldeia, em férias, de ti sabia, numa
persistência de afectos, cada vez mais fluidos, em razão do cruel desbaste do
tempo e da avidez da memória.
O
padre Manuel falecera da idade e da arrastada doença. Reconfortado em suas
dores e seus pecados pelo desvelo rude dos seus paroquianos, que, como quem paga
uma dívida, lhe enchiam a missa e a côngrua no término de vida. A sua morte, porém
destapou a matriz dos acontecimentos por vir e acendeu teu Destino, Lia, e as
marcas de teu percurso de vida, daí por diante.
A paróquia
tinha agora novo pastor. O padre Francisco, rapaz bisonho, talvez 25 anos, a
ensaiar o primeiro mergulho nas águas baptismais da vida, fora da clausura e
das místicas leituras dos santos doutores da Igreja. O povo engalanou-se em
festa para receber o novo padre, as velhas devotas a perscrutar sinais de
santidade no seu rosto pálido, um ou outro, mais conservador, a torcer o nariz à
idade, e o Fernandinho maluco, corpo de ferreiro das chacotas públicas, cujo dizer
ou opinião em nada contavam, a rir sardónico e a cantarolar, “o fogo perto da
estopa/vem o diabo e assopra”, quando finda a primeira missa, no adro, os
paroquianos comentavam as primeiras impressões do novo pároco. Enfim, ninguém
ligou ao comportamento do maluco, a que o povo estava habituado...
Finda
a festa, a vida continuou como sempre fora, o Inverno depois do Outono e a
Primavera, antes do Verão chegar, cumprindo os ritos e ritmos de um templo
circular naquele espaço social-rural, onde tirante alguma zanga por uma qualquer
razão frustre, ou tempestade ou incêndio nada acontecia digno de nota. A senhora
Adélia, irmã solícita do falecido padre Manuel continuou a fazer o caldo e a
cuidar da batina, agora do novel pároco Francisco e a casa paroquial a ser
pasto e abrigo da ranchada de sobrinhos, agora, porém, com os mais velhos a
fazer pela vida lá fora reduzida a ti própria, Lia e teu irmão Manuel, que com
a morte do tio desistira do Seminário por falta de vocação, certamente, mas,
sobretudo, presume-se, porque a côngrua, com os novos tempos eclesiásticos, deixara
de pingar.
Assim,
durante alguns anos. De ti e de tua família ia sabendo, nas descidas à aldeia. O
Manuel, teu irmão “caçula”, com a equivalência no ensino oficial aos cinco anos
de estudo no seminário, embarcou então para Angola, terra grande e farta, na
esteira do irmão mais velho já instalado, onde irá conseguir emprego asseado
num qualquer escritório. De ti, porém, pouco se via. Fechada, quase monja, eram
raros os momentos em que te expunhas. Na missa ao Domingo, claro, e numa ou
outra ocasião mais festiva, à porta da casa paroquial, ou atrás da janela, sem
namoro, nem pretendente à vista, como seria de esperar de uma beleza explosiva
que em ti amadurecia.
Do
padre Francisco, a acentuar as cores macilentas e magreza do físico, dizia-se
à boca pequena ter mau-olhado e outros, menos supersticiosos e mais dados à prática
dos segredos da farmacologia campestre diagnosticavam a “tísica” e não faltavam mesmo os
que buscavam nas ervas remédio para a “bicha-solitária”. A todos, o padre
Francisco agradecia com um sorriso benigno e triste, “que estava bem, que com a
graça de Deus e as orações fiéis qualquer achaque passageiro em breve seria
sarado”. Apenas o Fernandinho maluco teimava em seu riso e na sua
cantilena: “o fogo perto da estopa/vem o diabo e assopra”.
Um
dia, no final de Verão, inesperadamente, o padre Francisco depois da homilia
dominical, anunciou pública e solenemente que iria embora, que como bom pastor
levava as suas ovelhas no coração, mas não regressaria. E partiu de mala aviada
essa mesma tarde num carro ligeiro, que por caminhos de terra batida, entre solavancos,
poeira e enjoos, o viera buscar. Com ele partias tu, também, Lia, grávida de
alguns meses, levando no ventre o fruto sagrado da tua tentação e de teus
amores pecaminosos. E da tua solidão...
Provaste o fruto proibido, irias agora morder o fel e o “suor
do rosto” de teu pão...
8 comentários:
Os padres não têm idade
mas o teu texto promete uma leitura atenta
do ventre até à foz
Cá estarei no ciclo das tuas marés
Abraço amigo
Crônica muito bem articulada e inteligente...
Manuel, parabéns!
Há sopros diabólicos, mas fecundos, afinal. E não somos todos filhos do pecado original? :)
No tempo em que havia um diabo para carregar a culpa, tudo era fácil de explicar.
Belíssima narrativa!
Bj.
Um texto magnifico que oferece um espantoso exercício de leitura e a promessa da continuidade de novos desafios.
Um abraço fraterno
Uma leitura apreciando cada detalhe desta viagem,
navegando na tua excelente narrativa de
palavras vivas...
beijo.
'Ha cinzas que ardem como fogueiras'_ e quando pensamos que esfriou basta um sopro para que provoque novas labaredas...
Não estaremos todos a morder o pão com o 'suor do rosto' ?
_ seus fragmentos merecem um estudo, heretico
abraços
O que se lê aqui são coisas próprias do homem escritas pela força que habita a experiência. A Lia teve a sua. Que destino há de ter a sua verdura nas mãos da cobiça
A novela já estará escrita por uma heretica alma que sabe do ofício.
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