- “Entre, senhor oficial. O senhor não precisa
pedir licença – esta casa é sua!...” – persistia, a latejar no cérebro, a
voz da mulher.
Corpo e mente do
Alferes eram um sismógrafo vibrátil. Qualquer leve perturbação do meio,
estremecia nos nervos tensos, aguçados pela tempestade e pelos acontecimentos. E
a voz feminina, afável e acolhedora, a ecoar dentro: ... “não precisa de pedir licença!... não precisa de pedir licença ...
não precisa....”.
Sem registo de qualquer
formalidade, ou pedido de licença o Alferes, dulcificando a alma, deixou-se então envolver pelo poema de Manuel Bandeira que,
como uma cantilena, nos últimos tempos, o povoava e que, inesperadamente
irrompeu, desperto, na voz de acolhimento de D. Rosalinda.
“Irene preta.
Irene boa
Irene sempre de bom humor.
Imagino Irene entrando no céu:
- Licença, meu branco!
E São Pedro bonachão:
- Entra, Irene. Você não precisa pedir licença...”
Mas não, não era
Irene!... Nem uma subida aos Céus, no corpo martirizado do Alferes. Mas bem
poderia ser, sem dúvida, o humaníssimo bálsamo da bondade de Irene Preta, que o poeta celebra.
D. Rosalinda ocupava
a cena, vinda do interior da casa. Lançou sobre o febril Alferes, transido de
emoções, um olhar penetrante: “ Tão
novinho e desamparado, o senhor Alferes!... Mais parece um pintainho fora da
asa!...”. E maternal: “No entanto,
soube portar-se como um homenzinho com farda!...”
Seguindo seu
impulso, sem dar tempo para o Alferes balbuciar palavra ou movimento, D. Rosalinda
segurou-lhe, com suavidade a mão, conduzindo-o para o interior da vivenda: “Venha, não resista! Deixe-me tratar de
si...”.
Alagado pela
chuva, o camuflado colocado à pele,
uma massa inorgânica, acastanhada, de poeira e chuva, grudada ao corpo, o
Alferes parecia ter saído “coração das
trevas”, num “apocalipse” de
tempestades e emoções estremes, que envolviam a Tabanca e estoiravam no cérebro escaldante - o Alferes era vibração
febril e apenas o olhar felino e alucinado captava, sem reacção, os movimentos
e reflexos circundantes...
“Beba um gole! Vai fazer-lhe bem”... – E D. Rosalinda
subiu aos lábios ressequidos do Alferes o copo de whisky que segurava, forçando
o gole, que extravasou para o queixo quase imberbe, ficando a escorrer algumas
gotas do doirado líquido, que numa carícia demorada a mulher recolheu nos dedos
e os lábios femininos sorveram, num arrepio de sensualidade.
“Venha, venha...” - insistia D. Rosalinda, atravessando
o salão, que mais tarde, depois das devidas adaptações, haveria de ser
simultaneamente, conforme as ocasiões, “messe
dos oficiais” e “sala de operações” do comando da Companhia,
desdobrados e exibidos que fossem os mapas militares, dissimulados nas paredes
por grossos reposteiros. Mas então, não. O salão, em sua inabitada utilidade e
solidão, era apenas território deserto,
espaço de passagem, que D. Rosalinda percorria agora, numa secreta ansiedade,
com o Alferes pela mão.
Ultrapassado o
salão, ao fundo, a porta para a ampla e vistosa casa de banho para onde D.
Rosalinda arrastou o Alferes que, extenuado, “estava por tudo”, pois nada seria pior que aquela torpeza mole,
que paralisava músculos e cérebro. A mulher abriu as torneiras e, enquanto a
água tépida escorria para a banheira, soltou o fecho do camuflado, despiu-lhe o casacão e camiseta colada ao corpo, negra
de poeiras e suor. E, depois, lentamente, como predadora faminta que antecipa a
fome saciada, despe-o das calças e restante roupa interior.
O corpo do Alferes
exalava um odor acre, que se entranhava nas narinas ofegantes da mulher,
dilatadas pelo cio que emergia de longas noites solitárias e de uma longuíssima
espera. E, segura que a presa não
mais lhe iria escapar, a mulher beijava o peito, as costas e as coxas do rapaz
e, num murmúrio apenas sibilado, suspirava, por entre os beijos, apertando-o
nos braços: “O meu menino, o meu menino,
tão bonito e frágil. E tão cansado!”... Maternal e carente, meteu o rapaz
na banheira - lavou-o, enxaguou-o, secou-o com macios toalhões, derramou sobre
o seu corpo perfumes e essências e lambazou-o com beijos, milímetro a milímetro
da pele.
O Alferes aceitava
as carícias, quase como uma missão militar, debatendo-se entre a pulsão da
carne jovem e o sentimento, não de culpa, que a Lia, páginas atrás, a sereníssima e
imperial Lia, companheira de seu jogos infantis, lhe ensinou a superar, mas um
sentimento, misto de vergonha e repulsa, por
se entregar aos apetites de uma mulher que tinha mais que o dobro da sua idade,
pois bem sabia que, mal fosse conhecida esta sua “façanha erótica” seria inevitavelmente pasto de ironias e graçolas
do seu amigo Valentim e dos restantes oficiais, sargentos e praças, não apenas
da Companhia, mas de todo o Batalhão, quando não mesmo de toda a guarnição
militar da Província.
Talvez, por
isso, adivinhando as inibições e o embaraço do rapaz, D. Rosalinda assumiu por
completo o comando das operações e a encenação talentosa de todo o cerimonial
erótico, numa sequência de ritos e actos sábios que fizeram explodir o Alferes
num orgasmo colossal, que o transportou ao mundo glorioso dos bem-aventurados.
Lá fora a
tempestade amainava. E o Alferes dormia,
como um anjo, pagão e puro, no leito amantíssimo de D. Rosalinda, envolto em seus
braços benfazejos. E sonhava... Entretanto, a poesia de Manuel Bandeira, que D. Rosalinda jamais
lera ou soubera, perfumava o ar quente da tarde, como se milagre fora...
“- Você me conhece?
- Não conheço não.
- Ah, como fui bela!
Tive grandes olhos,
Que a paixão dos homens
(estranha paixão!)
Fazia maiores…
Fazia infinitos.
Diz: - não me conheces?
- Não conheço não...”
15 comentários:
De aprendizagem em aprendizagem (a fazer-se homem) até ao hastear da bandeira, sem Manuel.
Abraço
Texto escorreito
bem ao teu jeito
Surpresa boa
nesta blogosfera
(que já não é o que era)
A descoberta da paixão...
Interessante...
Beijos e abraços
Marta
Um texto de quem tem estofo para o romance.
Brilhante, numa excelente narrativa.
Tenha um bom resto de domingo e uma boa semana, caro amigo.
Abraço.
muito bem...um pouco diferente do que tenho lido.
gostei, pois!
uma boa semana.
beijo
:)
Dona Rosalinda não sabia do poema. Mas como ele,perfumou a tarde do alferes.
Se tu e o nosso amigo Rogério me permitem, faço meu o comentário dele.
Tudo de bom
Sei que tu já sabes que és um escritor dos grandes.
Mas, te digo não por mera repetição ou um elogio avulso.
Quero registrar a minha gratidão pela satisfação da leitura
da tua obra, o teu exercício literário que percorre
um caminho brilhante: não é só uma boa história narrada e
uma literatura rica. É uma obra literária de um escritor
que encontrou o seu tom; numa narrativa tão natural e
própria, que desmaterializa o autor, sem excessos
e nem melindres.
Impecável as construções dos personagens. A personagem
D. Rosalinda é de uma beleza humana comovente,
existe nela uma meiguice no seu trato (fala, gesto, cuidados)
no seu "oficio erótico".
Encanta-me a presença da poética do Manuel Bandeira!
Estou com o meu passaporte marcado (carimbado) para
todas as estações dessa viagem (rsrs)...
beijo, Poeta amigo.
Você assume o comando da situação, dentro do poema, com sabedoria e elegância.
Perfeito, como sempre, Manuel.
Beijo!
Sentindo-me uma 'penetra' nesse jogo erótico da D.Rosalinda.rs
E, pedindo licença para me extasiar diante do quadro que lembra um lindo por-do-sol porque é mágico e não precisamos de autorização para contemplar .
Adorei heretico .Está sempre, surpreendendo seus leitores.
um abraço
Tenho lido em voz alta o fio da meada dos teus excelentes textos ao meu Dique que um dia te apresentei de barro mas atento à porta da minha escarpa
O Dique sussurrou-me
Quando é que o teu amigo recria um cão na sua história - um cavalheiro de quatro patas.
Perdoa o desaforo
Abraço sempre
meu caro Puma,
ora ai está uma excelente ideia! irei falar disso a Dona Rosalinda.
mas o teu Dick pedrado, isto é de pedra, é um exagero.
julgo que D. Rosalinda se satisfaz com um pequeno "caniche"...
forte abraço, meu amigo
Há tempo que não passava pela tua "casinha".
Obrigada por esta prosa deliciosa.
Beijinho.
Uma narrativa num estilo personalizado que merece ser mostrado. Pela mestria na criação das personagens e ambientes o autor cativa o leitor a seguir o fio da meada, deleitado, até ao fim e ficar com fome por mais.
"Tão novinho e desamparado ... estava por tudo": era mesmo assim que se sentiam os putos da guerra no ultramar. E se surpresa em supresa se faziam homens.
Belo texto. Quem não gostaria de ser alferes nesta guerra de alcova, mesmo sendo anti militarista?
Um grande abraço meu irmão
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