Que patético,
meu amigo!... Porventura te darás conta, Manuel, que a tua escrita, com a tua tendência
em extremar sentimentos, mais que estimular, pode simplesmente provocar tédio! Nessa
dicotomia de pensamento em que, por formação e devoção, estás instalado,
limitaste a ver a vida conforme o padrão de luz e sombra, como se a vida
vivida, assentassem sempre na tensão, que te comprazes em designar como “tensão
dialéctica”, sem te dares conta dos matizes em que a vida se resolve e da relatividade
de cada uma das nossas emoções e sentimentos, ou mesmo dos factos e
acontecimentos que, em sua permanência, tendemos a considerar como absolutos.
Eu sei, eu
sei... Tens dificuldade em aceitar a “décalage”! Os valores “absolutos”, as
verdades tidas como “indiscutíveis” colapsaram e tu, meu querido Manuel, ainda
não sei bem se por “cegueira”, se por acirrada teimosia de “moicano”, que não
aceita o desmoronar do mundo à sua volta, projectas agora na literatura a
expressão da vida que te fintou.
Mas, (admitindo
que alguém, além de mim, irá ler-te) que ganhas com isso? Nada podes meu amigo
contra a rasoira compressora que estabelece os caminhos por onde caminhamos!
Eu explico-me melhor e
devolvo-te a pergunta, tão acintosamente formulada, que não fora eu conhecer
bem o teu gosto pela “provocação”, me ofenderia seriamente, ao questionares a
crueldade da “nódoa negra” no meu rosto, nódoa essa, bem real e bem concreta, e
o sofrimento que meu divórcio me trouxe, face a brutalidade (meramente ficção
literária, só pode) da guerra colonial em que te remóis, escrevendo.
E, então,
a pergunta é esta: Que dizer da tua perplexidade indignada e da genuína dor do
teu inseparável “Bonanza”, face à fatalidade da morte a sangue frio de uma
criança de meses, em teatro de guerra, quando hoje estamos empanturrados de morte,
aqui às portas da tua amável e civilizada Europa e quando o brilho das suas
capitais se enegrece nas pulsões do medo e na abjuração dos princípios de
liberdade e democracia, que lhe moldaram o rosto? Que dizer das dezenas, se não
centenas de crianças, que flutuam mortas nas águas do
Mediterrâneo, ali à nossa porta, algumas tão tenras como a tua criança, na
savana de África, com o crânio esfacelado por de um “tiro de misericórdia”.
Quem se interessa por um “episódio de guerra” quando em tempo de paz, a violência
espirra sangue e dor, na pantalha das televisões, num Espectáculo alucinado,
que nos aprisiona. E que vamos, de uma maneira ou outra, aguentando sem fazer
tragédias e vivendo a vida, nos seus cambiantes, afastando a monotonia do
“preto e branco” em que tanto te comprazes
Se desejas tanto escrever,
motivos não faltam, aqui e agora. Porque desenterrar traumas antigos e fissuras
que ainda hoje atravessam a sociedade portuguesa. “O que passou é passado”, proclamavas,
tempos atrás, tentado arrastar-me das minhas recaídas!
Por isso estranho,
estranho-te...
Muito
bem, Maria Adelaide. Há muito tempo que assim não vinhas, grave e solícita,
bafejando-me com a lucidez da tuas opiniões e fazendo vacilar minhas certezas,
elas próprias tão frágeis e aptas a voarem ao primeiro confronto com a
realidade. Fizeste uma bem-sucedida prova de vida!
Mas atenção, Maria Adelaide,
o único critério de verdade é a nossa “autenticidade”, a tua e a minha, e o
nosso corpo a corpo com a vida e não os clichés que, no mercado das opiniões,
fazem passar gato por lebre. Que é isso de “décalage”, de “valores absolutas”, “verdades
indiscutíveis”, “teimosia de moicano” (onde raio já ouvi isto?), ou “monotonia
a preto e branco” e outros brilhantes epítetos com que me mimoseias, numa implícita
crítica às minha inabaláveis convicções políticas? Isso é que eu estranho...
Não
quero ofender-te, nem levemente que seja, mas não resisto à provocaçãozita,
porventura de mau gosto, que me dança nos lábios: quer parecer-me que o Pedro,
teu actual marido, que segundo dizes “navega nas minhas águas”, anda um pouco
distraído na tua “educação sentimental”. Será que ainda faz milagres? Não precisas
de responder. Eu saberei um dia destes...
Não quero, entretanto, passar em claro sobre as incómodas questões com que me confrontas e
na aproximação que lucidamente fazes, ao devir da nossa actualidade e à violência
que nos submerge.
Estamos, de facto, empanturrados de morte. E empanturrados de
miséria e de fome. E também de consumo. E empanturrados de “efémero”. E da volatilidade
dos acontecimentos que a si próprios se devoram, sem tempo para deles nos
apossarmos, fugidios e “neutros” que são. E empanturrados também “da
contemplação passiva das imagens” que substituem o “vivido” e o “poder de autodeterminação
dos próprios indivíduos”, como alguns autores (heréticos) não se cansam de nos
alertar...
Ora,
minha querida amiga, ambos sabemos que, até em meus exageros e excessos, eu sou
um tipo frugal e que os “empanturramentos” de todo o tipo me causam azia. Talvez,
sim, talvez a minha fuga para o passado, que tanto te incomoda ou escandaliza,
tenha por fundamento esse “trauma” ao empanturramento, quer dizer, talvez eu
procure uma nesga, um estreito lugar, uma ligeira brisa no rosto, que nos salve
desta lassidão que, como vírus, nos corrompem e mata, julgando nós “viver”.
E, então, que a indignação seja algo mais que suspiro do sofá e a revolta seja propósito de
acção colectiva.
Mas
quem, face à violência em massa dos dias de hoje, se ergue, qual “Bonanza”, não
digo para esganar, mas, ao menos, para interpelar o capitão?
A narrativa está a
ficar coisa séria e seguir caminhos inesperados Teremos que aliviar o tom, Maria
Adelaide senão ainda corremos o risco de ficarmos a falar sozinhos, não?
Entretanto, a anunciada “Papa Alferes” bate o pé de impaciência. Façamos-lhe a vontade e que suba ao palco. Porventura, nestes tempos de cenas espectaculares e comunicação “on line”, a ilustre menina seja uma metáfora antecipada dos dias de hoje.
13 comentários:
Diálogos internos necessários. Penso nas ponderações. Um bj querido amigo
Maravilha, Manuel! Li de um folego só. Maria Adelaide é abusada e não deixa passar nada, mas vc respondeu a altura.
Beijinho.
Um texto dramático, apesar da tentativa de aligeiramento. O apontar o dedo à (des)humanidade. Sempre no teu tom de intervenção.
Sim, chocam-me as crianças afogadas, o olhar perdido, assustado, mas que os pais tentam 'salvar' de um outro mundo de pesadelo.
Mas, por cá, grita-me a alma, pelas crianças 'sacrificadas' vivas às mãos de um pai ou mãe. Maior desumanidade, não há.
Beijo,
A dona Maria Adelaide parece-me uma santa.
Inventaste-a para te amar no contraditório e a senhora cumpre
a tua vontade
Quer limpar-te a memória - mas eu sei - que não vais deixar.
Abraço sempre
Um diálogo de titãs enfatizando uma voz que nunca irá se calar... Genial!
Sorrisos e estrelas em mais um dia a findar...
A tua narrativa sempre excelente, Amigo Querido!...
Tu entende tudo desta viagem literária, quando o uso da primeira
pessoa e ainda o personagem com o teu nome, quebra para o leitor
as barreiras entre o escritor e o leitor, respaldando o teu
conceito de que não existe o escritor. Nesta aproximação, a ficção
entra na voz da realidade narrativa como um diário de bordo de uma
viagem nas páginas (entranhas) da (tua) memória rica de escritor!...
Uma química explosiva da "presunçosa" Maria Adelaide e o
provocante Manuel. A insensibilidade e egoica Maria Adelaida em
relação a bela humanidade e valores políticos e sociais do Manuel.
"E, então, que a indignação seja algo mais que suspiro do sofá e
a revolta seja propósito de acção colectiva."
Compreendo muito bem este sentir do Manuel (personagem) e somo
a minha voz a dele no eco que tire a humanidade desta alienação!...
Amo ler e acompanhar a jornada desta história inscrita em
obra de arte literária, Manuel!
beijo.
Por vezes estes diálogos são necessários... gostei!!
Um beijo
Manuel (amigo querido!),
Permita-me fazer um esclarecimento no teu espaço,
já que aqui, agora, fiz este comentário longo e
analítico do seu texto e faço assim, em poucos
espaços e quando o texto me seduz a esse ponto
de explicitação e prolixidade.
Sem nenhuma intenção presunçosa de caráter
exibicionista de aparecer a "entendida de
literatura"...rss
apesar de não ligar para qualquer falso
julgamento que alguém possa ou faça
de mim!...rss
Tu sabes, amigo, que isto é apenas um olhar
de uma pessoa com o hábito (vício) da
leitura desde sempre e nada mais do que isso!...rss
Suzete Brainer, minha boa amiga,
agradeço sinceramente a gentileza do seu interesse pelos meus textos e as suas sempre oportunas e fundamentadas considerações, que muito me lisonjeiam, sobretudo, porque ditadas pelo seu amor literatura e pela análise literária - assim as considero - "vício" que modestamente também perfilho.
seja, pois, bem vinda. sempre.
beijo, grato
Maria Adelaide, a personagem nascida do teu alter ego, poeta? As avessas, talvez, mas fico eu por aqui a sentir isso... O eco revez da tua alma na contrapartida da tua escrita, dos teus ideais e da forma como vives e como sentes as coisas do mundo... Criador e criatura, díspares e complementares...
Amei ler.
Beijo.
Genny
A "carta" da Maria Adelaide e a resposta respectiva são deliciosas.
Excelente, meu amigo.
Bom fim de semana, Caro Veiga.
Um abraço.
A criação dum contexto que se socorre dos mais delicados materiais...
A sua mente fervilha, meu amigo. Parabéns!
Um abraço
O duelo forjado pelo autor, ele próprio interveniente, dá relevo aos problemas da violência e injustiça que fustigam gerações sucessivas. Se nos dias de hoje a mediatizacão empola e comunica à velocidade da luz as "misérias" da humanidade, no passado elas não eram inócuas. Mas é o autor que na sua excelente narrativa desenrola o fio à meada.
E há a "Papa Alferes" que se anuncia ser personagem apetecivel. A temperatura lá para os lados de Castelo Branco irá subir.
Parabéns.
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