Não, não, o Tempo não existe, devorado que é pela Memória,
enorme sanguessuga ou esponja que tudo absorve, por vezes, buraco negro ou
fornalha de luz branca, combustão de todos os detritos, magna corrosivo apenas,
e que, em suas escorrências, lampejam, de vez em quando, momentos,
luminescências soltas ou ondas que se esbatem e que, na aridez do quotidiano, a
elas nos agarramos como salvados da catástrofe em que teimamos, impelidos pelo
sopro do acaso e acarinhando o piedoso desejo do “que é nosso a nossos braços
vem ter – até a morte”. E, por vezes, sem se saber como, inesperadamente,
quando a condição surge, dessa cratera vazia, dessa grafia invisível, dessa
corrente subterrânea solta-se, como fogo fátuo ardente a iluminar o gesto ou
gesta, solta-se – dizia - toda a significância que
se condensa nesse pequeno nada, discurso congelado que explode em sentido, ou
janela de claridade a revelar toda a extensão das encruzilhadas em que
decaímos.
Cuspiam fogo os
“lança-chamas” como se fossem dragões apocalípticos, cloacas a expelir enxofre
ardente, ou chumbo ou infernal mistela que arde e queima e derrete terra, feras,
animais e gente e pedras ou árvores, corpos fumegantes, gritos, choros, pragas,
ranger de dentes de carrascos e vítimas, misturados na mesma euforia de dor e
abismo, armados até aos dentes os carrascos e as vítimas, velhos, mulheres e crianças
ficando para trás, fugindo alquebrados, presa fácil do fogo exterminador, que auto
se proclamava de fogo justiceiro, os homens de rosto enegrecido pela tinta e
pelo fumo e pelo horror desencadeado, tremendo por dentro e por fora uns e
outros, sem outro tempo, nem modo, nem objecto que não fora aquele fantástico vendaval
de destruição massiva a disparar, a incendiar, a arrasar, a vandalizar, pois
que “tudo que mexer é para morrer”, assim
a palavra de ordem, repetida, vezes sem conta, durante os dias de mentalização para combate.
O fogo, no
entanto, era apenas um sopro. Depois dos aviões e do napalm e as chamas
enegrecidas das palhotas, elevando-se aos céus em cornucópias feéricas,
festival operático, com Wagner em fundo, como se ficção fora, em eloquente
filme de outras guerras, o horror era agora a Companhia de Cavalaria, em linha
de centenas de metros, com seus três grupos de combate estendidos pela savana,
fuzilando manadas de vacas, incendiando a extensão dos milheirais, mancarra,
arroz, frutos ou mel, tudo o que, do trabalho do homem e da generosa terra,
ubérrima, ou miserável semente caída no fraguedo e no suor do rosto dos homens,
que daquela fome hão-de comer, era passado pela ceifeira da morte, fosse ela
nomeada lança-chamas, espingarda G3, faca de mato ou a hábil catana em mãos das
milícias indígenas, também elas instrumentalizadas nessa bebedeira de
destruição, pois que “tudo que mexe é
para morrer”.
Por três vezes,
o “Bonanza”, dedicado protector do apoucalhado “Assobio”, de abraço e
afectos soltos, a incomodarem, numa pastelaria em Lisboa, a sensível pituitária
social de Maria Adelaide, no acaso de um encontro, num tempo outro,
já refeitas as mazelas da guerra, anos de vida depois, mas agora ainda o cabo
radiotelegrafista “Bonanza”, alto e
ruivo, possante como um toiro, carregando com todos os apetrechos de
transmissões com os aviões e com a Companhia de Cavalaria em terra, por três
vezes, o leal e competente “Bonanza”,
braço não armado, mas extensão viva das comunicações de comando, por tês vezes, o “Bonanza”, perante a orgia
de destruição, sacudindo a indignação e calando o desespero, por entre dentes, essa fresta estreita só pelos dois perceptível, deixava escapar a exasperação,
“mas há necessidade disto tudo, meu
Alferes? esta chacina? não fui feito para matar...”
E o Alferes, tão
acorrentado, como ele, “Bonanza”,
cabo radiotelegrafista, à impotência e ao desespero, a murmurar para dentro
bíblicos salmos, como refúgio ou expiação “Não
matarás!”... “Amassarás o pão com o suor de teu rosto!...” Mas quem aqui foi feito para matar?... Pobres
camponeses e operários que apenas o pão da vida almejam e o sossego dos dias...
E, inflamando o peito de prosápia militar, não se sabendo para quem falava, se
para aplacar as angústias do “Bonanza”, se para ele próprio Alferes, comandante
do “pelotão de comando” da Companhia de Cavalaria, se enganar: “Não é nada, não é nada! daqui a pouco não é
nada... Apenas uma cena de um filme... Amanhã terá passado tudo, pensa noutra
coisa...”.
E, por três
vezes, o “Bonanza”, em sua verdade,
se negou ao seu destino de matador...
... E o menino, nessa noite de Agosto e de luar,
fora incêndio! Os sinos a tocar a rebate, o grito asfixiante na noite “ÁGUA!...
ÀGUA...” que as Eiras estão a arder!”... e homens e mulheres, velhos e novos,
estropiados ou doentes, tudo eles acorrentado à tragédia, a saltar da cama,
descalços e seminus, que não há tempo a perder, cântaros, baldes, enxadas, imprecações,
correrias desenfreadas, orações, choros, promessas ao Divino Senhor, Santo
Cristo, para aplacar a ira de Deus, pois que só por castigo divino o pão de
todos os dias poderia ser levado em chamas, num capricho do destino, num acaso,
num descuido, com o fogo a reduzir a cinzas o suor dos homens e a esperança de
melhores dias... Nesse ano, a fome iria chegar mais cedo...
À distância, duas crianças de mão dada, assistindo, em
deslumbramento infantil, à primeira consagração do “belo-horrível” no espectáculo
das chamas e aprendendo, bem cedo, a impotência dos homens e a crueldade da
Natureza.
Partilhando da
ansiedade e da impotência dos militares que comandava, presos que todos eram,
oficiais, sargentos e praças, às grilhetas de sua servidão militar e aos
horrores da guerra, buscava assim o Alferes lenitivo no esfumar da Memória e em
tragédias antigas para a raiva e a tragédia presentes. E, então, inesperadamente,
um choro aflitivo de criança, certamente, de escassos meses, tão virginal era o
balido e tão desamparado o grito, a sobrepor-se ao latir das armas e ao
espavento das chamas, arrastou o Alferes de seu torpor e das arrecuas pela
torrente onde mergulhara. Donde o choro? Interroga-se, embargado pela emoção do
abismo, memória ardida e evocação dum tempo outro, a esfumar-se como labareda
apagada, em que o Alferes era tão-somente, frágil menino, nem sequer esboço ou
esquiço, mas indefinida linha nos dedos do tempo.
E antes que
soubesse do choro, ou grito, ou balido, ou desamparo de criança negra no fragor
da dantesca destruição, no cérebro febril do Alferes ressoa o estampido seco e
inconfundível de uma pistola Walter, paralisando o Céu e a Terra e as portas do
Inverno e todos os raios e todas as maldições foram engolidos no eco daquele
estampido seco e no súbito silêncio do choro. Ali a dois passos, por entre os
escombros da destruição, o corpo exangue da jovem mãe, ainda fumegante, o rosto
carbonizado e o ventre aberto pelas chamas e o bebé de meses, ao lado, com o
crânio esfacelado pelo tiro da pistola e o capitão, hirto e pálido, com os
braços estendidos ao longo do corpo e arma ainda fora do coldre, ombros caídos,
como o anjo negro da Tragédia e todo
o pelotão, todos os homens, um a um, aproximando-se, rodeando a cena, alguns
benzendo-se, outros enxugando a mal disfarçada lágrima, outros ainda virando a
cara e evitando olhar o macabro espectáculo e o capitão Mascarenhas, perante o
rosto incrédulo do Alferes e a
indignação calada e a muda acusação dos homens sob seu comando: “Que queriam vocês, seus merdas!... Que
ficasse para aí abandonado, a servir de pasto à fome ou aos dentes de uma
hiena? Era apenas um bicho!... Acabou-se! ”
(Ó da Barca! Ó
da Barca!... Na hora de verdade, em que Barca o capitão passará o rio? Na Barca
do Inferno? Ou qual a Barca?...)
E o “Bonanza” que desejava que “dali o tirassem” e, por três vezes, negara
a sua condição de matador, pois que, consabidamente,
não fora feito para matar, saltou
como um tigre sobre o capitão “eu mato
este gajo, esgano-o com minhas mãos!” Num impulso instintivo e com numa energia
que não se sabe de onde brotara, interpõe-se o Alferes entre a fúria do cabo
radiotelegrafista e a perplexa passividade do Capitão Mascarenhas e, num abraço
profundo dali arrasta o ímpeto assassino do soldado que, em colapso, deixa
escorrer então as lágrimas e a raiva no ombro do Alferes, os dois ali fundidos,
num corpo único, que assim são os homens, feitos do mesmo barro, um explodindo
em angústia e dor e o outro serenando as lágrimas e abrindo o peito como, se o
soluço calado, fosse bálsamo ou fortuita consagração da vida sobre a morte.
Que dizer de uma nódoa negra no rosto (ainda
que belo)? Ou das minudências do processo de teu divórcio? Que sabes tu de um
abraço, Maria Adelaide?...
3 comentários:
E tu Grande Escritor que diz que não existe escritor,
tu sabes tudo da viagem literária!...
Uma narrativa magnífica e comovente no aspecto doloroso da
viagem das palavras, pelo registro assombroso que é uma guerra:
"Tudo que mexe é para morrer"
Lembrei-me deste trecho do poema do Grande Walt Whitman (livro
Folhas de Relva).
Ó Capitão! meu Capitão!
"Ó Capitão!meu Capitão! Finda é a temível jornada,
Vencida cada tormenta, a busca foi laureada.
O porto é ali, os sinos ouvi, exulta o povo inteiro,
Com o olhar na quilha estanque do vaso ousado e austero.
Mas ó coração, coração!
O sangue mancha o navio,
No convés, meu Capitão
Vai caído, morto e frio."
Um abraço solidário na comunhão de almas (corpos tão mortos!...):
"Um explodindo em angústia e dor e o outro serenando as
lágrimas e abrindo o peito como, se o soluço calado,
fosse bálsamo ou fortuita consagração da vida sobre a morte."
Manuel Veiga, o teu talento literário me emociona!...
Bravo!!
Grata pela partilha na oportunidade desta leitura ímpar!!
Brutal e cheia de sentimentos contraditórios, que o homem é mesmo assim, a narrativa descreve a verdade de um tempo tão longínquo e, mesmo assim, tão perto por castigo da memória daqueles que o viveram.
Excelente texto.
Abraço
Que sei eu da densidade deste texto, fragmento incendiado, que li e reli, como se o tivesse ousado vivê-lo?
Apenas sei do grande abraço que aqui te deixo meu irmão poeta.
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