Dona
Ludovina que, em sua solicitude, o guiara, à chegada, nos meandros da Agência
e, na generosidade de sua carne exuberante, velara pela educação sentimental do
Rapaz, levou também muito a peito o robustecimento do seu espírito. Foi assim
que o introduziu numa “selecta tertúlia” (palavra de Ludovina), depois de
rasgados encómios ao seu (dele) talento literário.
Pontificava
no grupinho um casal, recentemente regressado de Paris, onde no rescaldo de
todos os Maios, proclamava, em beatitude, que a História estivera ali mesmo, na
polpa de seus dedos. Ele era um homenzinho baixo e enfezado, a rondar os
quarenta anos, de careca reluzente e de pêlos indiscretos, no nariz e nas
orelhas. A barriga empinada e as pernas curtas emprestavam-lhe um ar de aranhiço
prestes a armar a teia. O olhar líquido e redondo, por detrás de uns óculos de
tartaruga, acentuavam-lhe a famélica postura da aranha à espera da presa...
O
homem, porém, quando a cerveja escorria, de tudo falava. Nem era necessária
plateia. Conhecia todos os argumentos. Entre os existencialistas e marxistas
(peleja fora de moda, dixit) tomava naturalmente partido pelos primeiros.
Discorria com ardor sobre o “nouvau roman”. O cinema e a “nouvelle vague” não
tinham segredos. Também os estruturalismos de todos os matizes. Tratava por tu
Althusser, Lacan, Foucault, Derrida.
O
homem era nitidamente um semiótico!...
A
rapariga, - Cléo para os amigos - bastante mais nova, vivia em permanente
devoção. Acendia-lhe os cigarros. Colocava o açúcar no café. Mexia e remexia.
Carregava os jornais. Assinalava os artigos e notícias de interesse.
Sacudia-lhe a caspa dos ombros. E eu sei lá o que mais não lhe faria!...
A
moça era engraçadota, mas fisicamente desleixada, como era chic na sua
condição. Num caderno sebento, de folhas azuis e linhas, escrevia seus poemas,
onde quase sempre “a alma se encandecia nas torpezas do saber...”
Aconteceu
que, um dia, o Rapaz, depois da Agência, na sua passagem pela leitaria, deparou
com a Cléo sozinha, na mesa habitual. Explicadas as razões e, depois de minutos
de conversa, palavra puxa palavra, olhar pede olhar, a ocasião faz o ladrão e
estavam os dois falando de... amor e sexo. E ela categórica “comigo não te vale
a pena não presto na cama” e ele a dar-lhe “não há como experimentar” patati...patati...patatá
e ela não se fez rogada e ele que não pensava noutra coisa há semanas, meu dito
meu feito e meia hora depois estavam os dois na cama.
O
Rapaz, que passara com distinção no estágio com Dona Ludovina, usou de todo
arsenal de recursos aprendidos e inventou outros. A Cléo, porém, nada! Nem um
gemido, nem um movimento, nem uma carícia, nem um esgar, nem uma palavra de
estímulo, nem um fingimento. Nada, literalmente nada!... Um corpo inerte e
amorfo. Apenas os olhos se reviravam nas pálpebras em cada assalto (frustrado,
naturalmente).
Digam-me
lá, se por mais esforçado e maior o talento do jovem, alguém numa situação daquelas,
sem o mínimo de abnegada colaboração por parte da Cléo, poderia resistir e
completar a fixação erótico sexual em que durante semanas discretamente mergulhara
e o dispersavam do apuramento da escrita e das exigências do fulgor literário?
Pois bem, o Rapaz desistiu. Ela bem avisara, mas o rapaz jamais lhe perdoou e
desistiu. E nunca mais compareceu ao chamamento da Literatura, de que Leitaria
era Templo e cenáculo de saber e cultura. Para arrelia de Dona Ludovina, que
bem buscava razões que nunca soube.
Agora,
à distância, o Rapaz julga ter sido, no tamanho daquela frustração
literário-erótica que ficaram, definitivamente, soterradas suas promissoras veleidades
literárias. Outro fora o desempenho sexual da Cléo e outro teria sido o destino
do jovem, hoje, certamente, autor consagrado. Assim, está claro, por causa de
semelhante embaraço estético erótico, a Pátria perdeu um intelectual eminente e
a Literatura (com maiúscula) um epígono dos maiores. Um outro prémio Nobel, quiçá!...
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Tempos
depois, o Rapaz contou a cena ao seu amigo Zeca, alentejano de Beja, solteirão
impenitente, “bon vivant” e economista do Quelhas, como faz questão de
acentuar:
-
“É bem feito! Quem te manda a ti frequentares intelectuais?!” - Soltou numa
gargalhada! - “Não sabes que as mulheres para a cama devem ser burras?”
O
Rapaz embatocou. Mas passados uns momentos, já recomposto, meio sério, meio a
rir, perguntou:- “E se forem burras e intelectuais?”
-
“Então é a desgraça completa! Não te invejo a sorte!...” – rebolou-se o Zeca,
babado de gozo...
O
meu amigo Zeca é um tipo bem caçado, reconheçam!...
11 comentários:
Tu tens um olhar agudo, meu amigo!
Interessante.
Beijo meu
O teu amigo Zeca é um tipo bem caçado, reconheço!... E um pouco à maneira daquilo que muitos homens pensam... A tua imaginação não tem limites.
Um beijo, meu amigo.
Economistas e intelectuais é a negação da intercessão ;)
Ab
estimável Sena,
que coisa é essa de "intercessão"? carne? peixe? alguma enxertia especial?
olha que meu amigo Zeca não é um economista qualquer: sabe da poda e chama os bois pelos nomes...
saúde e bons ares!
Caro Escritor,
Um conto de excelência, assim seria com a tua literatura sempre.
Agora os estereótipos dançam na vida real.
Sugiro para o personagem Zeca, o porta voz do homem
medíocre, este se sente confortável com a mulher "burra",
a prestadora de serviços gerais. E como ele não faz ideia
que a inteligência é sedutora.
Também não aprecio reuniões de intelectuais acadêmicos,
na maioria das vezes muito longe de um exercício criativo
da inteligência...rss
Agora, a tua literatura é mais do que um exercício
criativo da inteligência, caminhas na essência da
grande literatura, Manuel!
Bjs.
O Zeca deu uma caricatura, que não poucas vezes se revela certa, eheheh
Cumps
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Grandes generalizações, à revelia do método científico...
Beijo, amigo João.
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Majo,
amigo João?
ok, estás perdoada.
o Zeca desculpa e eu também rs
acontece a quem tem muitos amigos a confusão de nomes...
~~~
Desculpa, Manuel.
Fiquei preocupada com o João,
por estar doente.
Dias brilhantes e felizes.
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...
num estilo diferente aquilo que estou habituada a ler, muito original e que me deixou a sorrir.
gostei de ler (ainda a sorrir).
beijinho
:)
Esta narrativa de conteúdo mais leve mantém a erudição e perfumes habituais. Parabéns.
O Zeca é "bem caçado" ou bom caçador, "aclimatado" aos espaços onde a seara se alinda ao suave ondular do vento suão?
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