Meu amigo Zeca, alentejano de Beja, era
entroncado e moreno, de barba espessa e bem cuidada, lábia pronta e ligeiro
sotaque. Um desatino no engate, como já dei a conhecer. Quando jovens, eu
vegetava à sua sombra, em contraste com ele, magricela e desengonçado. Calhava
por vezes, que amiga tem amiga, sair sozinha dava então mau aspecto, de forma
que sempre eu ia “facturando” uma namorada ou outra, à pala do meu amigo Zeca.
Como pendura, está bem de ver...
Conhecemos na Praça da República, em
Coimbra, em noites de fantasias várias, nos idos de sessenta. Em Lisboa, onde
por razões idênticas, concluímos a licenciatura, aprofundámos a nossa amizade.
O Zeca nunca casou, como sabem. Em verdade, receio que as únicas mulheres que
verdadeiramente amou fossem a mãe e a irmã, pelas quais nutria desvelos
comoventes.
E as restantes mulheres?! Bem, as
restantes “ou eram, foram ou para lá
caminhavam”. Não me perguntem para onde, que não me atrevo à curta palavra
que o Zeca, sem rebuço, lhes chamava. Quando, em grupo famélico de lobos sem
freio, alguém do nosso grupo comentava os hábitos mais ou menos “liberais” desta ou daquela, era certo e
sabido que o Zeca desbocava: - “que Deus
a faça cada vez mais e que a mim toque alguma coisa” – gargalhava.
Um predador este Zeca. Mas de uma
generosidade espantosa e amizade à prova de bala!...
Quis o destino que uma tarde de Junho,
já em Lisboa, em plena Feira do Livro, o Zeca embicasse com duas desprevenidas
gazelas, que de stand em stand se
bamboleavam... - “Vamos àquelas!...”
- atirou-me, felino em plena caçada. E meu dito, meu feito: passados minutos
estávamos os quatro a comer pastéis de nata na esplanada do Parque Eduardo VII.
Eram a Diana e a Andreia, nomes
fictícios, como calculam, pois à época ainda não haviam “dianas”, nem muito menos “andreias”,
com que modismos posteriores vieram colorir o arco-íris dos nomes femininos.
Naquele tempo, as mulheres eram todas santinhas, quer dizer, ostentavam, quase
todas, gloriosos nomes de santas e mártires. Mas que importa agora o nome?
Assentemos, portanto, que se chamavam Diana e Andreia...
Durante umas semanas, saímos os quatro.
Umas matinées, umas idas à Sanzala, no Campo Grande, para umas tardes de calor
tropical, umas saídas para a praia, etc. ... Enfim, todo o percurso de um
engate “à maneira”. Com o Zeca como
maestro, está claro. A determinada altura, porém, as coisas entre Andreia e o
Zeca deixaram de funcionar, enquanto eu estava todo filado na Diana...
Habitava eu, então, o apartamento de um
militar em comissão de serviço na Guerra Colonial, em África, que a troco do pagamento da renda,
consentira que o irmão e uns amigos (nos quais me incluía) ocupassem o
apartamento. Uma pechincha e um luxo. Havia mobília, cozinha, tv e gira disco e
até uma pequena biblioteca, que o militar era dado a leituras... E polícia à
porta, pois no prédio residia um ministro. Circunstância que, aliás, trouxe
mais tarde a nossa desgraça, que dizer, nosso despejo sumário, como um dia
contarei, se vier ao caso...
Por ora importa referir, que apesar de
todo esse luxo, não havia maneira de convencer a Diana a conhecer o famoso
apartamento. Que não, que sem a Andreia,
nada feito! (vá lá entender-se as mulheres), de forma que não tive outra
hipótese senão abrir-me com o Zeca e propor-lhe que retomasse o namoro com a
Andreia, ao menos durante um fim-de-semana...
O Zeca ainda torceu o nariz, mas, na sua
generosidade, soltou: “está bem, sou mais
que teu pai; mas promete que não me deixas ficar mal e “comes” a gaja!...”.
Confesso, que havia semanas que não pensava noutra coisa; porém, não era assim
tão categórico quanto à certeza do desfecho. Mas, enfim, convenci o Zeca que
sim, “que comeria a gaja!”...
Finalmente, a noite “D”. As meninas
tiveram o talento de convencer a madre superiora de uma urgência familiar que
as obrigava a ficar fora nessa noite e eis o quarteto (não o de Alexandria, é
evidente... rss) no celebrado apartamento. Na fase da cerveja e dos pregos tudo
esteve bem. A Andreia e o Zeca estavam amorosos. Até pareciam um par de noivos, como irónica, a Diana sugeria.
Findas as libações, a dança... Soltam-se emoções do gira-discos, na voz
delicodoce de Adamo (lembram-se?). Tacticamente (ou não estivéssemos nós em terreno
militar), escolhemos cada um de nós sua divisão da casa. Dançava-se já, sem
música no gira-discos, em inércia de corpos em ebulição, segregando prazer por
todos os poros. No encontro de coxas, das línguas, das mãos...
Eu sentia-me em glória nos sorrisos e
nos doces lábios da Diana...
Inesperadamente, como um raio numa noite
quente, o bater seco da porta de saída: o Zeca desaparecera e a Andreia estava
debulhada em lágrimas! Nunca percebi as razões, nem o Zeca alguma vez me
contou. O certo, porém, é que receei o pior, que dizer, que a minha estratégia
militar redundasse no maior fracasso e o crepitoso corpo de Diana ficasse
apenas, mais uma vez, como promessa de batalha adiada.
Uma dramática situação, de facto. Voltar ao lar nem pensar, soluçava a
Andreia. Que explicação daria às freiras? Logo seguida do assentimento da
Diana, que solícita lhe limpava as lágrimas. Eu descorçoava: via a minha vida a
andar para trás e elas não descolavam uma da outra. Aos beijinhos e outras
pieguices...
De súbito, a Diana luminosa e salvadora:
“Ficamos os três!...” E eu,
gaguejando: “mas... mas... os três?!... os três como, Diana?!..."
E a Andreia decidida: “Ora, ficamos os três na mesma cama!...”
Ficamos. Uma noite gloriosa e um pequeno
favor que devo ao meu amigo Zeca, como ele não imagina. E uma pequena vingança
que os deuses me propiciaram!...
......................................................................
E, quando palhaço (pobre) dos deuses, o
senhor Álvaro de Campos, engenheiro, e seu Poema
em Linha Recta, amargos, me vistam
“Nunca
conheci quem tivesse levado porrada/todos os meus conhecidos têm sido campeões
em tudo...”
a evocação da Diana e da Andreia e essa “noite gloriosa”, abrem-se em bálsamo florido
a escorrer pelo túnel da Memória.
Manuel Veiga
8 comentários:
~~~
Não há dúvida
que os meninos ''magricelas e desengonçados''
são um perigo...
Relembrando
tempos de glória, numa escrita impecável...
~~~ Bj ~~~
aqui lembrei-me de quem tem fama e nunca teve proveito, que quanto a mim deve ser o caso do Zeca...
e será que ele nunca desconfiou do que se passou nessa noite?!
bem escrito sem dúvida e com um final que eu não esperava.
beijinhos
:)
É se Andreia fosse um homem, e que esse segredo ninguém jamais contaria?? Abraços.
Andrea Liette,
estas "estórias" do meu amigo Zeca não têm outra pretensão que não seja definir, sem preconceitos ou juízos morais, personagens, porventura, caricaturas, comportamentos, situações e ambiências de uma determinada época da sociedade portuguesa, que em boa medida persistem.
não confundimos "literatura" com realidade...
nem, muito menos, revelamos "segredos de alcova"...
seja bem vinda!
abraço
Mas eram gazelas de trote elegante a correr pelo prado do Eduardo VII? Da feira do livro aos lençóis houve um tempo de corte de unhas.
Boas memórias fixadas a preceito em escrita exemplar.
Abraço.
Agostinho, meu caro amigo
lamento desiludir-te mas não "fixo" minhas memórias. quando muito "reinvento-as" , o que dizer que talvez apenas 5% do que aqui se diz seja "realidade" - mas essa parte é "pessoal e intransmissível" : nunca saberás qual é rss
abraço, meu caro.
o poeta é um fingidor
lá diz o outro sagaz
um mais um mais um dá três
e fica um casal maior...
Geralmente, destas vidas passadas, mais ou menos reais, mais ou menos inventadas, o que ressalta é o encantamento de cada um, o que guarda na memória, às escâncaras ou guardado a sete chaves... E só se perderam mesmo as que caíram ao chão. Haja um sentido para a vida que , de outro modo, nem faz sentido nenhum.
E a imaginação voa por estes lados, caro Herético e eis que lhe sai da manga bela crónica que, aqui e ali, deu-me ares de Fernando Sabino - cronista brasileiro.
;)
abç amg
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