Não
há, tempo, pois, nestas “estórias”. Nem muito menos tempo contínuo, liso de
contornos. Se, porventura, tempo existe será apenas poliedro de múltiplos
efeitos, onde a realidade se veste e transveste conforme a feição ou capricho da
Memória. As comportas abrem-se então e solta-se a lava, arrastando na passagem
lugares, paisagens, momentos, ausências, lembranças ou dores até fixar-se, num
clarão inesperado, ou centelha, que arrebata por dentro e volta a superfície,
decantada, a marcar a fluência do devir. O tempo é uma então uma metáfora.
Apenas.
E,
se Autor houvera e a narrativa em que, dizendo de outras coisas, te digo, Maria
Adelaide, numa recorrência de águas profundas que atrai todos os afluentes, se
houvera autor, dizia, a Memória seria então dócil e a palavra se afirmaria
soberana e não apenas escora, em que a narrativa se embala, como se capricho de
ave fora, ensaiando o voo, desfiando nossas vidas, na precariedade de outros
rostos, quando bem sabemos dos sulcos.
Regressemos
pois à Tabanca. Fixemo-nos no Alferes em suas deambulações por território desbravado,
que é como quem diz, pelo corpo marcado e a solicitude de Dona Rosalinda, que
aqui há-de emergir como sibila de um percurso de sabedoria, como se fora a luz
limpa, que desfaz a névoa e guia nos meandros da alma e no conhecimento dos
homens.
"Come, meu filho, come a canja. Outra
tigela? Aposto que não comes uma canja assim há muito tempo. Se é que alguma
vez comeste. Tua mãe faz canjinha para ti? Claro, claro meu filho, que as mães
fazem sempre canja saborosa para seus meninos. Eu que faço canja tão boa... e aquele
cabrão nem, ao menos, um filho me fez. Uma maldição, desde que aqui chegou o
bastardo do Gaspar, por conta da C.G., que a mim nunca enganou, não só pelo ar
de rufia de que estava farta de conhecer no bar do Cais Sodré antes do meu
Armando me fazer largar tudo, a venda do peixe, as minhas amigas do Bar e a
família, mãe e irmãs que de pai nunca soube, para correr atrás dele, atrás de
mil promessas, como uma fêmea com cio e logo eu fartinha de conhecer vadios.
Mas que queres tu, o amor é uma porra e, quando bate forte, não há quem lhe
acuda e cada um é para o que foi feito e eu nasci para acabar meus dias entre
pretos.
Ao princípio não foi mau. Festa rija de casamento
no Hotel Central, em Bissau, mandou fazer esta vivenda de pedra e cal,
respeitava-me, nunca me ouviu para coisa nenhuma, claro, mas não me faltava com
nada, dois ou três pretos ao meu serviço cozinhavam e faziam a lida da casa. Se
não era uma rainha tinha tudo o que precisava e até, às escondidas dele podia enviar
dinheiro para a família.
O negócio da
mancarra dava, naquela altura. A C.G. era dona disto tudo em toda a Província,
arroz, mancarra, banco, nada mexia sem a autorização dos seus capangas, acabara
por aumentar o preço do amendoim e, por mais uns “pesos”, uma ninharia, os
pretos passaram a cultivar mais amendoim que aqui recebíamos e entregávamos nos
armazéns, em Bissau. Assim, durante anos. Depois esta ruína da guerra, que,
como doença maligna, se foi infiltrando pouco a pouco. E, se como não bastasse
a guerra, o rufia do Gaspar chegou, quis em nome da C.G comprar os armazéns e o
negócio. Não deixei. Foi a primeira vez que me bateu, aquele sacana”.
O Alferes que até então se limitava a apascentar
as emoções dispersas, num torpor que o tolhia, preso na memória de outras
cautelas e outros caldos de galinha, rompeu o silêncio íntimo e indagou num
estremecimento: “E batia-te porquê? Que
lhe fizeste?”
“Como tu és lindo, meu filho, com teu
interesse por esta velha carcaça a gemer suas dores e amargura sobre teu rosto,
ainda menino, quase imberbe, e que tão a sério se leva na sua pose de homem
adulto e autoridade militar. Meu filho, os homens não precisam de razões para
bater em mulheres. Quem lhes vai à mão, mais a mais aqui neste cu do Mundo? Os homens
batem nas mulheres, por que lhes apetece, porque estão bêbados, por hábito, porque
estão para ali virados, batem por tudo e por nada, mas batem, sobretudo, por
que têm medo. Medo, medo, sim, medo maluco de ficarem impotentes, medo deles
próprios, medo da morte. O meu Armando bateu-me, pela primeira vez quando
chegou o rufia do Gaspar e quis ficar com a venda em nome da C.G. de Bissau.
Disse-lhes a minha parte não venderia, era o que faltava. Com o rufia do Gaspar
a acicatar, “não tens mão na mulher, és um banana, que em “casa com galo não
manda galinha” e o meu Armando aos gritos, primeiro vieram os insultos, “sua
esta, sua aquela”, não calei, que isto de uma mulher como eu aguentar calada
dói e custa, barafustei também e foi a primeira chapada e os pontapés a seguir
e a ameaça do cinto depois, e eu teimar “que não assinaria papel nenhum” tudo
na presença do Gaspar, ali sentado naquele cadeirão, com um copo de whisky na
mão, a cuspir um sorriso velhaco, como uma cobra-cascavel. Com meu corpinho amassado
de tanta porrada e a sangrar da boca, por fim lá se levantou, passou o braço
pelos ombros do meu Armando, segredou alguma e saíram os dois, abraçados um ao
outro, cada um com sua garrafa de whisky e foram meter-se no armazém da
mancarra a beber e a gargalhar com um bando de putos pretos e umas “bajudas”,
umas lambisgóias que nem seios têm e que, por umas bugigangas ou a troco de uns
pesos, fazem o que, nem muitas mulheres adultas são capazes de imaginar.
Sabes porque os pretos chamam “kamenino”
ao Gaspar? Porque gosta de garotinhos que a troco de umas guloseimas lhe
frequentam a casa e lhe apagam os ardores. Passa a vida a assediar os pretitos
“anda cá menino” e ninguém se importa, nem a pretalhada sem lei, nem roque, uns
selvagens ao sabor da natureza, nem as autoridades. Apanhei muita porrada por
querer por cobro a esta pouca vergonha, o meu Armando acabou por apanhar-lhe o
gosto e seguir as passadas do rufia do Gaspar. Quem me valeu muitas vezes foi o
senhor Gomes, daquela venda aqui em frente, o primeiro branco chegado a esta
terra, que os pretos respeitam e as autoridades em Bissau, antes do estupor
desta guerra, escutavam.”
O
cérebro do Alferes era fornalha, o sangue a latejar nas têmporas, a palavra
presa no interior da indignação, apenas o torrencial discurso da mulher ganhava
asas como via-sacra percorrida de vidas sem retorno, o nojo, a banalidade do
mal em carne vida, assim exposto, em monocórdica e neutra palavra, como fel
seco, que não adianta revolver e do qual apenas se guarda o estertor e que
agora era subterrânea água e emergir naquela ternura solta, como redenção
espúria e migalhas de uma vida inesperada.
O
Alferes era então um melro esquivo a povoar-lhe a mente e os dedos da mãe
alisando os caracóis e o beijo a beber as gotículas que deslizam na sua testa,
inesperado orvalho em pétalas de açucena e a familiar cantilena da água em
sobressalto. E agora a mão a cobrir-lhe os olhos e a esconder do menino a dor e
os gritos de aflição de Rosalinda,
“acudam-me, quem me acode, que o meu homem mata-me...” e as dores partilhadas de mulheres de negro
vestidas em luto permanente, e a mãe a larga-lo e correr para aflição “ó homem, ó Xico a bater dessa forma
desalmada na tua mulher, não tens vergonha!...” e a intrometer-se e a
procurar segurar-lhe o braço e o empurrão do homem que a fez tombar ”meta-se na sua vida, que aqui não é chamada” e o choro agora do menino a
ajudar a mãe a erguer-se e mais pessoas a acorrerem aos gritos e a travar o
Xico, cinco filhos pequenos uma parelha de jericos umas jeiras de terra
arrendadas nas ladeiras para semear centeio que mal chegava ao Natal – puta de
vida!
E também
a náusea agora a apanhar por dentro o Alferes e os espasmos no estomago e o
vómito incontido que se solta como purga e a evocação de Lia de sua meninice e
suas brincadeiras infantis e seus impúberes seios abocanhados, abastardados,
emporcalhados pelo falsete do riso e pela baba e a peçonha e o gozo alarve e
malsão do “kamenino” e o verdete do ódio a estoirar no peito e o asco e o grito
rouco, espontâneo como trovão justiceiro, impotente em sua angústia – “filho de uma grande p. que merecia ser
castrado!”
E
a maternal devoção de Dona Ermelinda a desaguar em seus olhos húmidos e a
beijar-lhe a mão “como és lindo, meu
filho!”...
O toque de clarim acordou o Alferes de
seu torpor. Ajustou a farda e os cabelos e saiu apressado ao encontro dos seus
deveres militares. O “Assobio”, graduado em ordenança do comando, acompanhado pelo
“cabo cozinheiro” aproximava-se de tabuleiro em riste para prova do rancho.
Em devida forma, os soldados alinhados
aguardavam revista para entrarem, no refeitório, para a última refeição do dia.
Manuel Veiga
2 comentários:
"O tempo é uma então metáfora."
Sim, acontecendo na urgência do sentir
das palavras que localizam os seus
significados mais profundos.
"A memória seria então dócil e a palavra se afirmaria soberana."
As camadas da memória se propagam no voo em que as palavras
existem como narração de uma história que se faz
dona do seu percurso (narrativo).
Neste percurso narrativo, as palavras trazem as feridas de Ser
mulher (Dona Rosalinda) no universo de homens "machos" que
escravizam e violentam o corpo e a alma feminina.
Neste universo também existem homens (Alferes) que entendem
a igualdade no respeito e nos gestos de carinho humanos.
Para mim, é um dos mais belos fragmentos escritos por ti,
devido ao conteúdo sublime e sensível da emoção que
inscrita nas palavras, como um rio muito transparente
de uma beleza humana!...
Parabéns, Manuel!!
Os anjos e demônios que nos povoam a memória são/foram a prova mil vezes repetida da nossa condição de semelhança divina?!
Belíssimo trecho.
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