Gosto
de locais e pessoas com carácter. Por vezes, são ligeiríssimas marcas, que
traçam as linhas de fractura da “arqueologia” dos tempos sociais sobrepostos.
No outro lado do rio, Cacilhas ou a Trafaria, são desses locais de culto.
Há
tempos atrás, almocei em Cacilhas. Almoço de Domingo de famílias completas -
avós, filhos e netos à mesma mesa. O encontro semanal das solidões
compartilhadas no breve espaço da refeição. Incontornáveis aqueles
rostos-testemunho, abertos ao exorcismo da memória. Os velhos de rugas marcadas
e de olhar alto, órfãos de Alex e de Bento Gonçalves, perscrutam a minha mesa,
com a altivez e dignidade. São velhas árvores que morrem de pé!...
Os
filhos saídos do bojo dos estaleiros ou do arsenal, barcos carcaças nas margens
do progresso e da reconversão económica, afogam na espuma da cerveja, a utopia
mobilizadora de outrora. Os filhos, adolescências sem fronteiras - a cidade do
outro lado, em incursões nocturnas e brinco na orelha. A ganga, agora, é “t
shirt” em algodão de feira!...
(Donde
esta minha dor?)
Corria
em passo de trote (qual cavalo amestrado em picadeiro) o empregado de mesa. Não
andava de pressa, corria mesmo, em passo de corrida, cadenciado, sem um
momento, sequer, perder o ritmo por entre as mesas. Ligeiramente corcunda.
Quarenta/cinquenta anos, talvez!... Longe o tempo de “marçano”, subindo escadas e
galgando ruas com os caixotes de mercearia às costas. Empregado de mesa era
seguramente promoção social...
Fixei-me
no homem, seguindo as evoluções circenses de pratos e travessas. Tentando (re) escrever,
na minha fantasia, o percurso da sua vida e vislumbrar onde o homem teria
chegado na sua determinação, se porventura tivesse sido “outra pessoa”, quer
dizer, tivesse tido outras condições de vida. Enfim - desabafava eu intimamente
– “o homem é ele e a sua circunstância”.
E,
talvez, por aí me ficasse, descendo ao peixe grelhado e ao vinho branco...
Então,
minha mulher que conhece os meus silêncios e, por formação, conhece a morfologia da
repressão e do medo, intrometeu-se no meu desvario: - “imagina os estalos que este homem apanhou em criança para, nesta
idade, correr assim, com tamanho zelo!”...
(Uma
gorjeta calará a minha angústia?)
Manuel Veiga
"Notícias de Babilónia e Outras Metáforas" - pág.92 - Modocromia Edições - Lisboa 2015
"Notícias de Babilónia e Outras Metáforas" - pág.92 - Modocromia Edições - Lisboa 2015
5 comentários:
"O homem é o homem e a sua circunstância". Lembras bem o filósofo Ortega y Gasset. O teu olhar sensível e preocupado, como mostra esta tua narrativa
tão perto do coração, lembra-me que há tantas pessoas que para chegarem a qualquer lugar tiveram que trilhar os caminhos mais duros...
Entendi a tua dor...
Um beijo, meu Amigo.
um texto muito bem escrito que também me deixou com um nó na garganta...
sublime a tua prosa
boa semana.
beijo
:)
Pedaços de vida, com gente dentro.
Gostei.
Caro Manoel, esta crônica é de fato especial,
explicar o porquê iria conspurcá-la. Importante
é fazer sua leitura, quem sabe sua releitura.
Uma ótima semana.
Abraço.
Pedro.
A crónica real dos costumes 'modernos'... com laivos de outros que em nada mudaram. Infelicidade de todos.
beijo,
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