Sou um sujeito de palavras (e espero
também que os meus amigos me tenham em conta como um homem de palavra.) Quero dizer
que, desde que me conheço, as palavras têm sido meu alimento, não pelos
livrinhos publicados, mas como ferramenta de trabalho no exercício de meu múnus
profissional.
Algumas palavras, eu amo. Outras nem
tanto. Outras, engasgo-me com elas. Mas julgo poder dizer, sem excessiva presunção,
que a todas elas sei usar, com propriedade, no momento e nos locais certos.
E, confesso-vos, que ultimamente trago
engasgada a palavra “metáfora”, tal é a profusão de metáforas, que empanturram
nossas vidas. Mais de que uma moda, são uma autêntica praga! Não acreditam? Basta
espreitar as “metáforas do consumo” (p. exemplo, as marcas, as embalagens, etc.)
ou alguns blogs (ditos literários) e
teremos “metáforas” para todos os gostos, algumas das quais, embora emproadas,
não passam intragáveis charadas.
Não imaginam, por exemplo, como depois da
consagrada e certeira “Jangada de Pedra”, a “pedra”
medrou no mundo das charadas, perdão das metáforas. Um verdadeiro filão. E quando
digo pedra é pedra mesmo – não calhau! Calhau não tem dignidade de metáfora. Pode
até, (no mundo das metáforas, está bom de ver) descobrir-se, no interior da
pedra, “um coração ardente a palpitar” –
mas calhau, nunca!...
Por isso, proponho-me daqui em diante,
prestar mais atenção às “palavras
emboscadas”, ou seja aquelas que verdadeiramente “determinam o sentido do discurso, sem porém o dizerem”. É que se
as metáforas “reluzem”, as palavras emboscadas seduzem-(me).
Como se sabe o sentido metafórico, é
sentido figurado, cujo efeito se extingue no momento em que a metáfora é lida. É
uma espécie de embalagem reluzente que atrai a leitura, mas se deita fora, mal
a mensagem “metafórica” seja decifrada.
As palavras emboscadas são “coisa” diferente. Não se exibem, actuam.
Não proclamam, “decidem” a
significação e o sentido. E até o contexto(s) de leitura. Estão presentes, mas não gritam. Podem até conviver com
metáforas e usá-las e desventrá-las, mas “o
seu reino é de outro mundo”- as palavras
emboscadas fingem o que (não) são! E negam-se. Negam-se, sempre! Qual “poeta fingidor/ que finge tão
completamente/ que até parece ser dor/ a dor que deveras sente...”
Ou se quiserem, de uma maneira mais
prosaica, as palavras emboscadas fazem lembrar certas senhoras da sociedade,
que garantem, juram e trejuram que nunca comem carne à Sexta-feira. E que,
surpreendidas e engasgadas, com bife filet
mignon, garantem, juram e trejuram que comer
carne, à Sexta-feira, é outra coisa...
Claro que as palavras emboscadas são “perigosas”,
porque seduzem e convencem. Talvez por isso são tão queridas da publicidade e
da política (de alguns políticos, helás!, que muitos são tão básicos que, nem
sequer sabem de metáforas). E na literatura também. São elas que revelam os
escritores de talento. E definem as obras-primas.
O problema é que, as palavras emboscadas,
como qualquer outro signo linguístico, se prestam ao engodo e à trapaça. E quando
assim é a literatura não passa de uma farsa. Ou ainda mais grave, de mera
agência de recados literários, ou outros.
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Garanto não existirem, neste texto,
palavras emboscadas. Mas se descobrirem alguma, NEGO!
Manuel Veiga.
24 comentários:
Mas que belo e implacável arremesso que acertou em cheio em muitos narizes-de-cera que por aí andam a fungar.
Um abraço fraterno
Certeiro como sempre. Ai as palavras emboscadas que tu lês e eu leio. "But Cesar is an honourable man"...
Abraço sentido.
Belo texto, menino heretico, estruturado, estudado, completo - algo mordaz (?)
Mas só lhe digo: um Professor muito conceituado das Letras dizia que a metáfora é única figura de estilo; todas as outras decorrem dela. Se calhar até as «palavras emboscadas»...
Aristóteles dizia que «através da metáfora a alma vê mais e mais longe» e isto, só por si, é muito belo!
Beijinhos metafóricos...
Até fiquei apreensiva... Vou ler devagarinho e seguir muito atenta as palavras.Vou pé ante pé,com muito cuidado, não se dê o caso de cair nalguma emboscada.
:)
Caro Manoel,
Li com toda a atenção que merece este seu texto, que muito me agradou, e no final fiquei pensando se você já leu poemas de João Cabral de Melo Neto, um dos nossos poetas mais importantes, estando à altura dele apenas Carlos Drummond de Andrade e Manoel Bandeira. A poesia de João Cabral é a mais econômica em metáfora, e quando a faz é com inquestionável precisão, como no poema
CEMITÉRIOS PERNAMBUCANOS
Para que todo este muro?
Por que isolar estas tumbas
do outo ossário mais geral
que é a paisagem defunta.
A morte nesta região
gera dos mesmos cadáveres?
Não os fabrica de caliça?
Terão alguma umidade?
Para que a alta defesa,
alta quase para os pássaros,
e as grades de tanto ferro,
tanto ferro nos cadeados?
– Deve ser a sementeira
o defendido hectare,
onde se guardam as cinzas
para o tempo de semear.
-/-/-/-/-
Um bom domingo.
Grande abraço.
meu caro JRD
olhamos, olhamos, desejamos ver um cachimbo, "mas não é um cachimbo" - salta de lá uma metáfora!
e se calhar não nos vemos livres delas (das metáforas), mas ao menos que venham em bom estado!
abraço, meu irmão
pois é, minha querida amiga Licínia!
mas não podemos deixar degradar as palavras, nem as metáforas que ambos gostamos - e usamos! rss
beijo
Graça Sampaio, minha amiga
... e que não viesse daí uma gracinha tua!
pois fica sabendo que gosto muito de metáforas! por uma boa metáfora até sou capaz de mergulhar no rio Liz.
mas como sabes Aristóteles e seu projecto de "vida boa" recomendam equilíbrio e moderação e não excessos.
beijo.
Grato, Pedro, pelo seu tempo (que imagino escasso) para ler e comentar o meu texto.
e muito grato também por ter evocado João Cabral de Melo Neto, de facto, também para mim, um poeta dilecto.
que a cinza das metáforas sirvam o "tempo de semear", como desejaria o Poeta!
forte abraço, meu amigo
Luisa,
já tinha notado que a minha amiga não gosta de "meter o pezinho na argola"...
mas deixe que lhe diga que as palavras emboscadas não quer dizer que sejam uma armadilha - há tantos motivos para as palavras se esconderem.
beijo
Que viva a poesia
mesmo a que respira por guelras
Abraço amigo
Caro Manuel,
Este teu brilhante texto nos proporciona evidenciar a diferença da
importância da linguagem metafórica na literatura e principalmente
na poesia e do excesso desta linguagem a sujar os elementos
simbólicos linguísticos com o uso na vulgaridade de expressar algo menor,
onde se localiza o espaço das palavras emboscadas, uso da linguagem
indireta, uma expressão para mim, covarde e desprovida de uma
elegância de caráter e alma.
"As palavras emboscadas fingem o que (não) são!"
Enfatizo a explicitação conceitual do texto sobre as palavras emboscadas
são "perigosas" e "como qualquer outro signo linguístico, se prestam
ao engodo e a trapaça." As ricas metáforas, criações originais e
nobres (quando são...), "revelam os escritores e talento. E definem
as obras-primas."
Este teu excelente texto (confesso que aprecio a ironia mordaz nele...)
com conteúdo didático sobre os elementos linguísticos a diferenciar da
vulgaridade e excesso do uso destes elementos no caminhar com
o exercício do ato de escrever.
Para mim, a linguagem é também uma forma rica da expressão
comportamental e ética daqueles que escrevem.
Apreciei deveras e grata pela valiosa partilha, meu amigo!
Bjs.
Mar Arável
que viva a poesia que merece viver - a que respira livremente!
("Poesia, Liberdade Livre", A.R. Rosa)
poesia a "respirar por guelras" deve ser um enorme sufoco!
abraço amigo
Suzete, minha amiga
grato pelo fecundo e informado comentário que, na minha perspectiva, abre novos caminhos de reflexão.
de facto, para além da dimensão "estética" (digamos assim), a minha amiga remete também para a dimensão "ética" da escrita e do escritor.
oportuno tema, que espero a minha amiga, com o talento e a sensibilidade que lhe reconheço, possa vir a tratar com profundidade para maior esclarecimento e gosto daqueles que como eu, são seus admiradores.
beijo
Se o dizes ...
quem sou eu artesão de metáforas
para te sugerir mais um prefácio.
Abraço
novo livro? que bom!
mas vou ter convite para o lançamento. espero
abraço
Olá, Manuel, muito pertinente seu texto. O que tenho visto, com muita frequência, é o uso indiscriminado de metáforas, inclusive em pequenos poemas, mas isso em demasia distorce, dificulta a ideia de quem lê o poema, pois é um uso muito individual, e que mais sabe é quem o pratica.
Sou a favor das metáforas, são belas, poéticas sim, porém com cautela! Certos poemas vêm tão carregados de metáforas que requerem várias leituras. E por que que não construir algo mais puro - sob o ponto de vista linguístico?
Não sou poeta, mas sou leitora deles! E as coisas precisam ser mais simples, menos empoladas!!
bjs, amigo.
Tais, minha amiga
grato por meu texto merecer a sua atenção e o seu comentário.
é exatamente isso que me "irrita" nesta questão das metáforas - o "empastelamento de sentidos" e o "forçar" das palavras que por vezes tornam o poema intragável.
beijo
Então, meu querido Amigo Manuel? As metáforas começaram a mexer com os teus nervos? Compreendo-te. Tantas vezes, mesmo sem querer abusamos delas...
Lembrei-me de um poema de José Jorge Letria do excelente livro "A sombra do Rei Lua" em que ele faz intertextualidade com Mário de Sá Carneiro e que diz:
"Pudesse eu interromper este ciclo em que as metáforas me atormentam e ter um rosto apenas para medir a intensidade da mágoa que me empurra para a dispersão total..." Como vez todos os poetas se atormentam com elas... Antes não nos desse para escrever... Gostei de te ler.
Um beijo.
Graça, minha querida amiga
"antes não nos desse para escrever..."
uma vez que nos deu para escrever aguentemos então as grilhetas da nossa servidão.
abaixo as metáforas!
beijo
Sujeito de palavras e sujeito às palavras. Se o mundo (de) hoje roda muito para além da sua própria animação, onde tudo é simulação, onde a verdade é palavra escondida, emboscada, onde mora o brilho da metáfora espontânea?
Importa é que o sujeito se mostre activo, reactivo à metáfora de lata da gente com muita lata que por aí abunda.
Como sempre, muito bem escrito.
Agostinho,
grato pela tua esclarecida opinião que, de alguma forma, aprofunda este tema.
agradeço também a amabilidade, que registo, de teres comentado os textos anteriores
abraço, meu amigo
Acho que ao vir aqui, caí numa emboscada! Para a próxima venho embuçado como o do fado - o outro! também monarca! - Desse modo não me apanhas, desnudado e sem vontade de pensar!
Diria que de tão pouco pensar, quase já não existo!
Um abraço e bom natal
oh, oh, até tu, Monarca de quem e de além, vens a "embirrar" comigo?
não existes, mas marcas ponto(s).
no Natal temos metáfora grelhada, no lugar do courato de costume...
palheto ou tinto?
abraço
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