Na distância de
metros um tempo de eternidades, pois bem sabemos que o tempo do pensamento é
tempo sem tempo, uma corrente com suas leis de mistério, um magma que se
derrama procurando os veios mais profundos da consciência e a agitação mais
febril do espírito, de forma que o que se passa na mente não tem controlo, nem
medida certa, evoluindo de acordo com o acaso ou as circunstâncias, sempre
prontos, as circunstâncias e o acaso, a ocuparem os espaços vazios e a
estimularem o fluxo permanente do pensamento e da imaginação.
Assim, o
Alferes, adjunto do Comandante de Companhia de Cavalaria, a fervilhar e, em
passada larga, atravessando a ampla sala de operações que, num outrora de dias ainda
frescos, fora boudoir de Dona
Rosalinda e campo de refregas outras, que não de guerra, assim o Alferes,
dizíamos, a atravessar a sala, com a ansiedade a martelar o cérebro e o desfile
dos momentos vividos, qual balanço das encruzilhadas de guerra e da vida da
Tabanca, desde que das mãos do soldado Eusébio da Silva Ferreira, urbe et orbe, conhecido por “Assobio”, já não “apoucalhado” recruta, provindo dos desolados cumes da Serra da
Gardunha e de seus ermitérios de solidão, mas arvorado em “impedido” da messe dos oficiais, recebera a notificação, pronta a
ser lida, depois dos traços, letras e números desordenados em que a mensagem se
dizia, ganharem, pelo engenho do “cabo da
cifra”, expressão gramatical, ficando então a saber-se que “todos os civis iriam ser imediatamente
evacuados” e, nesse mesmo dia, deveria chegar para assumir o comando, ele, o
Capitão Mascarenhas, Comandante da Companhia de Cavalaria, que o despacho militar subscrevia, a quem os desígnios
da vida, os gráficos e mais papelada do Estado-maior e as ordens do Comandante-chefe
da Guarnição Militar da Província haviam de atribuir aquele pacífico chão fula, delimitado pelo território da
Tabanca, como “zona de quadricula”, com poderes de jurisdição militar e civil.
E apreciado remanso a apascentar o resto da comissão militar, em patrulhas de
rotina, depois de ano e meio de intervenção militar, nas zonas mais quentes da guerrilha, em todo o território da Província,
às ordens do Comando-chefe do Corpo Expedicionário do Exército Português na
província da Guiné.
Em trânsito pelos
corredores da memória, atravessado por flashes
tão vivos e tempos tão díspares e imagens tão densas como de um filme “nouvelle vague”, com Alain Resnais
atrás da câmara, se tratasse e onde, ele Alferes, adjunto do Comandante de
Companhia, capitão Mascarenhas, que, encerrado o bridge e o conhaque, ordenara
a sua presença, fosse enredo e personagem.
Um estampido rouco
e seco, logo seguido do estrondo cavo de morteiro e mais outro e mais outro e
outro ainda, numa cadência de orquestra circense como se os disparos fossem
prenúncio do espectáculo de suspense e medo, revisitado no esquentado cérebro
do Alferes em direcção do Capitão Mascarenhas. Segundos que foram uma eternidade,
pois bem se sabe que, nos corredores da memória, se perfila um tempo sem tempo,
assim os gritos e a surpresa do ataque, as ordens gritadas, os soldados seminus
de G3 aperreada, o Capitão Mascarenhas com a pistola Walter no coldre a
rascunhar mensagens que o “cabo da cifra” haveria fazer seguir em grau de
“urgência operacional” para o Comando de Batalhão, as G3 descontroladas num
coro de desafinado de tiros sem alvo à vista, mas apenas rajada sem controlo,
nem destino, a exorcizar a tensão e o medo, as ordens gritadas dos comandantes
de secção e dos comandantes de pelotão, a procurarem um controle que lhes fugia
sobre os soldados, em transe de nervos e tensão.
E, então, se nada
o fazer prever e mesmo antes da Companhia de Cavalaria, desfalcada de um grupo
de combate em missão premente de evacuação dos civis, conforme a notificação, lida,
depois dos traços, letras e números desordenados ganharem, pelo engenho do
“cabo da cifra”, expressão gramatical e conforme brevemente se saberá neste
registo desordenado do tempo da narrativa, antes mesmo, dizíamos, da Companhia
de Cavalaria recuperar seu tom e sua medida de grupo de homens hierarquicamente
organizado e assentar em suas posições de defesa estabelecidas à volta da
Tabanca, obedecendo, em escala devida, como um só homem às ordens de comando, antes
mesmo do Alferes, neste tempo da escrita, agora ao encontro do Capitão Mascarenhas,
antes porém, em tempo outro narrado, poder esfregar os olhos da cegueira
momentânea e afastar o clarão violento e apalpar-se, menino de sua mãe, se vivo
ou morto, antes de Alferes poder erguer-se do estampido que o projectou, quando
ao encontro, não do capitão Mascarenhas, neste tempo de agora, mas, no tempo
narrado, buscando o “senhor Gomes”, velho caturra e degredado, que um dia, na
verdura da vida, no distante ano de 1936, com um grupo de marinheiros, seus
camaradas de armas e de ideias, se rebelou contra a “apagada e vil tristeza” em
a Pátria tombara e, por isso pagou com os costados em África e a Tabanca a
servi-lhe de casa e abrigo, antes de toda a desarrumação dos momentos de
surpresa e pânico ganharem forma e estabilidade, assim, sem nada o fazer
prever, os estampidos roucos e secos, logo seguidos do estrondo cavo de
morteiros se calaram, como orquestra cósmica em suspensão de movimentos ou
imagem paralítica a interromper o fluxo dos fotogramas.
Da Tabanca, com
a discreta e gradual recuperação dos movimentos, erguia-se agora o odor acre da
pólvora e dantesca coluna de fumo e as chamas e o desespero e grito do Alferes,
que atordoado ainda, galgou a distância e obedecendo, sabe-se lá a que ordem ou
instinto, irrompeu pelas chamas, que a vivenda do senhor Gomes era archote
aceso, happening de um espectáculo dantesco,
como se Wagner, por entre chamas e fumo, regesse a infernal orquestra e o
Alferes, cordeiro imolado, fosse lástima ou brinquedo das Parcas, a enfrentar o
destino e a desafiar as chamas pelo interior do edifício até ao corpo ardido do
senhor Gomes, marinheiro e desterrado, que nos idos anos de 1936, ousou o sonho
de uma Pátria livre e justa e por ela se bateu e perdeu e que fez da Tabanca a
sua Pátria, que outra não reconhecia, madrasta de seu Povo e fazedora de guerras
contra os povos das colónias que oprimia e que ele, colono e desterrado, amava
e compreendia e que teimara em ficar, que sua Pátria era aquela e ao destino
daquela população se sentia ligado e assim o dissera à insistência do Alferes e
à ordem militar que determinara “todos os
civis deveriam ser imediatamente evacuados”.
E mais dissera o
senhor Gomes, agora carbonizado nos braços Alferes a arder em chamas e febre, em
jeito de conselho, nunca pedido, que Dona Rosalinda reclamava maternal, cobrindo
seu corpo de beijos e blandícias para o “seu
menino”, embora Alferes e Adjunto do Comandante de Companhia, mais dissera
o senhor Gomes ao jovem oficial miliciano do Exército Português em sonhos e
fantasias de deserção e glória de se colocar do lado certo da História, por entre a incredulidade
e seu alívio “e tu, meu rapaz, deixa essa
fantasia de desertares – e não negues que para mim basta-me a febre de teus
olhos – a Revolução aqui em África é deles; tu se amas a Revolução terás tua oportunidade
em Portugal” .
E assim o
Alferes, agora, protegido das chamas e acarinhado pelos seus camaradas de
armas, se deixou cair de joelhos com os restos mortais do “senhor Gomes”
carbonizados nos braços e derramou lágrimas de sangue, por ele e pelo destino
de tantos homens, que querem o bem e fazem o mal.
7 comentários:
Tudo o que nos contas pode ser até ser pensado como uma memória tua.
Mas esta, é nossa:
«...as G3 descontroladas num coro de desafinado de tiros sem alvo à vista, mas apenas rajada sem controlo, nem destino, a exorcizar a tensão e o medo, as ordens gritadas dos comandantes de secção e dos comandantes de pelotão, a procurarem um controle que lhes fugia sobre os soldados, em transe de nervos e tensão.»
Caro Rogério,
"esta é nossa"? ora, ora, era o que me faltava!
porventura uma experiência idêntica!
"e já é tanto", como diz o outro ...
abraço
Li de um fôlego, mas tenho que voltar para entrar, em direto, em cenário de guerra e com as emoções à flor da pele.
Só escreve assim quem viveu, sentiu e tem talento de escritor.
Grande abraço, caro amigo Manuel.
Tenho de regressar... ao início, no tempo, à Tabanca, àquele lugar.
Lá teria 'nascido' um talentoso escritor.
(e não é favor...)
É um enorme prazer ler-te.
Abraço, Manuel
Um narrador que se confunde com o autor, assim entendo. E entendo e sinto o desencontro, o torvelinho de emoções a arderem(-nos) nos braços, naquele tempo. Hoje ainda?
Excelente, MV.
Não me quero repetir, mas como dizer de outro modo?
(Fui recordar o comentário ao fragmento anterior)
Prosador de gabarito a elevar este(s) testemunho(s) à condição de História!
Riqueza de pormenores, bem entrosados nos segmentos descritivos e a permitir a sua cabal visualização. Verdade nua e crua (como o nosso Fernão Lopes), com a emoção de quem está dentro da história.
Bjo, Manuel
Leitora assídua e atenta nesta tua obra literária,
acompanho esta viagem narrativa que nos proporciona
a uma leitura fascinante, todos que apreciam uma
literatura de qualidade ficam encantados e a desejar
a continuidade...
Aguardo mais, Manuel!
Um beijo.
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