No filme de Orson Welles, “O Mundo a seus pés”
(Citizen Kane), o protagonista, magnata da imprensa, numa cena célebre, afirma
categórico que os “leitores dos seus
jornais pensam aquilo que ele decide que pensem”. O filme é de 1941, data
anterior, portanto, à plena afirmação da televisão, a partir da década de
cinquenta do século passado e, mais distante ainda, da divulgação da internet
com toda a parafernália de meios de comunicação que as novas tecnologias
permitem.
O filme, bem se sabe, é uma obra-prima. A frase,
no entanto, assume uma importância simbólica que extravasa a dimensão de obra
arte reconhecida e laureada. Na realidade, “decidir
o que os outros pensam” constitui a mais absoluta afirmação de poder e a
denegação mais radical dos fundamentos históricos da autodeterminação do
individuo, que nos chega da civilização greco-romana e que, na idade moderna,
se expressa na proclamação dos Direitos do Homem.
Era assim, portanto, em 1941. A imprensa, enfim,
o meio de comunicação social na época dominante, almejava estabelecer o que os
leitores (os cidadãos em geral) “deveriam
pensar”; isto é, a visão do mundo era mediada e moldada pela lente
multifacetada dos magnatas da imprensa. Naturalmente que os interesses da “imprensa livre”, então em efervescência,
se articulava com os interesses pessoais, económicos e políticos de todos os “citizens kanes” desta vida, presentes,
passados e futuros.
De facto, desde sempre os poderosos souberam
quanto é perigoso o exercício da força e da violência físicas (sempre os
escravos se revoltaram) e cedo compreenderam que mais eficaz que a coerção
física seria domar o espírito e conquistar “livre” adesão dos indivíduos aos
desígnios da dominação.
Essa, portanto, a função da ideologia e o papel
dos aparelhos ideológicos, que a segregam e difundem, como que “oleando” os
mecanismos de articulação e funcionamento da(s) sociedade(s) e do Estado de
que, nos tempos modernos, a imprensa e a comunicação social constituem o
paradigma, mas que estão longe de esgotarem os instrumentos de produção e
difusão do poder ideológico.
Que poder é esse? O que é a ideologia e qual o
seu papel? Que função para os chamados aparelhos ideológicos?
(...)
A especificidade da questão é que o poder
mediático se realiza numa espécie de “submissão
voluntária”. A interiorização subjectiva dos modelos e comportamentos
sociais e, sobretudo, a interiorização do “olhar
do outro”, que o poder mediático exponencia, transforma cada indivíduo no seu
próprio vigilante.
O temor interiorizado “do que os outros vão pensar” (por não se frequentar tal o tal
meio, conhecer a vida de tal celebridade, usar tal marca de vestuário, etc.
etc.) constitui motivo de submissão voluntária à ordem estabelecida e ao
consenso social, ou seja, constitui um poderoso e subtil elemento de
sustentação (pela inércia) do sistema de poder.
Como romper o cerco?
(…)
Importará ter presente que, se é verdade
que somos produto da sociedade, também somos nós, cidadãos, os produtores da
sociedade que almejamos. Não somos meras marionetas de um jogo de forças, nem
meros expectadores dos embates dos diversos poderes. Cada um de nós é co-autor
da trama em que os poderes se tecem. E, portanto, o nosso silêncio e
passividade, ou a nossa acção decidida irão contribuir para manter ou alterar o
estado das coisas.
Afinal, onde “há
poder há resistência”. E toda a resistência cria por si novas “formas do poder-saber”.
Quer dizer, os fundamentos de uma vida-outra.
Manuel Veiga
SEARA NOVA nº 1725
Outubro 2016
15 comentários:
É isso
(e ainda por cima
impecavelmente bem escrito)
O poder, quase sempre gosta de decidir sobre o que as pessoas pensam...
O filme estará sempre actual.
Felizmente, como disse o poeta Carlos Oliveira "Não há machado que corte a raiz ao pensamento".
Um bom fim de semana, meu Amigo.
Um beijo.
Pensar é uma trabalheira... e, depois, há quem trabalhe as nossas fraquezas.
O verdadeiro Poder reside aí: condicionar consciências.
Muito bom artigo (ainda por cima, publicado). Lúcido e Esclarecedor.
Um bom domingo, caro Amigo Manuel.
Subscrevo, caro amigo Manuel. A frase é, realmente, paradigmática e a luta pela passagem da informação que convém aos poderosos é titânica.
Lembremos que " Cada um de nós é co-autor da trama em que os poderes se tecem".
Beijinho e boa semana.
Assertivo +, descritivo +, jornalistas? Viste-los!
A nossa principal frente de combate tem de ser os media! Não com intrusos mas com tiro de fogo como, por exemplo, fazem no facebook os "Truques da Imprensa Portuguesa"
Um abraço e boas searas
“leitores dos seus jornais pensam aquilo que ele decide que pensem”...
Pois é, Manuel, a coisa é difícil e muita coisa já vem decidida... o homem talvez consiga ser dono de sua vontade e de seu destino quando é excepcionalmente dotado.Não as massas. Os cidadãos comuns são incorporados a todos os poderes: a mídia forma opiniões, a ‘ditadura da moda’ os veste, a ditadura da beleza empurra tudo o que pode e dita nosso tipo físico, indústrias alimentícias poderosas, empurram comidas que querem e do modo que lhes convém, e o Estado se encarrega de fazer as cabeças. E isso tudo é mais importante que a felicidade do indivíduo. A liberdade é muito difícil.
Gostei do texto.
Beijo, amigo.
Tais,
é como a minha amiga diz:
. o poder ideológico excedem o quadro da imprensa e da comunicação social
. e a liberdade é difícil, sem dúvida.
daí a enorme responsabilidade da chamadas "elites intelectuais" e a sua "vocação" de esclarecimento.
como aliás o seu blog faz, que não perde a oportunidade de sempre "meter um grão de areia na engrenagem". e por isso é escutada pelos de seus leitores.
M.V.
Actualíssimo...
(Orson Welles esteve muito para lá do seu tempo...)
Este artigo prima pela excelência no que respeita: (1) à forma de manipulação das massas, tenha ela a natureza que tiver; (2) aos seus objetivos; (3) aos fatores intervenientes no processo de aceitação das mensagens que se pretendem inculcar e replicar. E isto vale para todos os campos dos atos humanos!
Como romper o cerco, questionas. Nada fácil, mesmo nada fácil. Em todo o caso, a aposta em formar pessoas, desde cedo, para uma atitude crítica perante o que nos é apresentado, seja pelo meio que for, é um caminho; para tal, também seria necessário que todo o educador/professor tivesse formação adequada; depois, é cada vez mais necessário haver gente conhecedora, isenta e respeitada que desmitifique o que nos querem impingir.
A formação do espírito, processo que se fazia pela família e/ou pelas leituras, acrescida das longas e acesas conversas que aconteciam no grupo social em que interagíamos, já é cada vez mais raro. As fontes de doutrinação e de formatização são, hoje, poderosíssimas.
Termino deixando-te os parabéns pela qualidade literária do artigo e pela honra de escreveres para esta tão prestigiada revista.
Bj, Manuel
Odete Ferreira,
minha Amiga
agradeço-te o teu generoso olhar sobre o texto as referências elogiosas à SEARA NOVA, que como sabes tem quase um século de publicação ininterrupta (apenas não foi publicada dois ou três anos logo após 25 de Abril") e que se mantém viva e com a mesma independência e "espírito crítico" que foi ideário dos seus fundadores.
permite que acrescente que partilho com alegria das tuas palavras quando referes os Educadores/professores e a Escola como determinantes na urgente necessidade de "romper o cerco"
beijo
Teresa Almeida,
minha Amiga
é para mim muito cálido e estimulante que a talentosa Poeta e a distinta pedagoga que és, possa subscrever textos por mim escritos.
muito amável, acredita.
beijo
Rogério, meu amigo
grato pela presença de sempre
fraternal abraço
Pata Negra, meu amigo
Majestade,
e jornais "viste-los"?
excelente "dica" a tua e ao que parece bom trabalho dos "Truques da Imprensa Portuguesa" (que não conhecia)
mas olha que o assunto excede o quadro da dita "Comunicação Social"
forte abraço
MJ FALCÃO
agradeço a presença amiga
sinta-se confortável. sempre
grato
O caro Manuel Veiga coloca o leitor perante um espelho, onde cada um poderá ver o que foi, o que é e o que será (ou não).
Será que o "homem coelho", (esqueçam o coelho homem), vai continuar a seguir o engodo (engano) da cenoura sem reflexão, sem fazer uso da sua capacidade de pensar e decidir livremente? É o mais provável, mas alimentar o sonho dum mundo melhor é a UTOPIA LEGÍTIMA QUE TEM DE PREVALECER.
Poderíamos discorrer sobre este assunto tão velho e tão novo, sempre actual, da educação, manipulação, eugenização à formação, normalização, acreditação, disfuncionalização, neutralização...
Uma bela peça a chamar Orson Wells com propriedade.
Parabéns.
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