quarta-feira, janeiro 31, 2018

POEMA CATIVO (editado)


Desdobra-se o poema em seu itinerário de luz
Antes de explodir

E na branca claridade dispersa depois sopro
Advinha-se a poeira dos dias côncavos
Em luxuriantes acenos.

Como se a distância
Fosse apenas o toque dos dedos
Ou o gesto suplementar do voo
E as palavras seta…

Desdobra-se o poema.
E em seu destino volátil.
Devolve-se à carne dos dias
E retoma cativo a matriz de água e o grito
Latejante no peito arfante
Do poeta...

Manuel Veiga 


POEMAS CATIVOS - Poética Edições .- pág. 21
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domingo, janeiro 28, 2018

FRAGMENTOS - Final (ou talvez não)



Ficamos, portanto, apenas os dois. Estendi os braços sobre a mesa para recolher tuas mãos nas minhas, fixei-te o rosto um tanto amargo e o fulgor de teus olhos perdido e de coração apertado, num prenúncio nefasto, quis saber “que se passa contigo, Maria Adelaide, estás doente?” rolou então uma lágrima de teu rosto, que disfarçaste com os óculos escuros e quebraste o silêncio pesado e agoirento “dá-me um cigarro!” e eu aflito por não te poder valer, “mas eu deixei de fumar, minha querida! Mas peço cigarros para ti” - fazendo um gesto para o empregado que a curta distância aguardava - “não, não deixa lá, não te preocupes” – insististe – e já senhora de ti, aparentemente apaziguada, “que bom teres deixado de fumar” – numa gaiatice risonha – “tu consegues sempre tudo aquilo que desejas” e nessa lisonja ensaiaste a fuga a que não dei margem “não é de mim que falávamos, que se passa contigo, Maria Adelaide? Estás doente?” e, então, todas as tuas defesas ruíram e, um choro galopante e incontido, toma conta do teu corpo, acorri a ti, envolvendo-te em meus braços e saímos, por entre a curiosidade do público e a solicitude do empregado, a quem estendi duas notas.

Já dentro do automóvel, dominado o choro, ainda soluçante, “estou muito doente, meu querido, na próxima semana sou internada para retirar um seio”, abracei-te, então, perplexo, não sabendo bem se te para te proteger, se para em ti, Maria Adelaide, encontrar refúgio no meu desamparo, assim ficamos, longamente abraçados, vítimas indefesas, do destino, dos deuses, ou do acaso ou da merda que seja que comanda a vida e a morte até tu me arrancares do torpor, enxugando os teus olhos e compondo a maquilhagem “estás proibido de me visitar ou telefonar” e, perante a minha contrariedade, “quero ficar para ti sempre bela e perfeita” e, antes que eu pudesse reagir, calaste-me com um beijo ardente e longo, e afastando o meu gesto de reter-te, saíste abruptamente, compondo a lágrima que afogava o verde de teus olhos, debaixo dos óculos escuros.

Foi a última vez que te vi, Maria Adelaide. Passados menos de dois meses soube da tua morte. Foi a Lia quem me telefonou, chorosa e meu deu conta das cerimónias de que a morte se reveste. Escolhi a hora mais adequada para te prestar homenagem silenciosa, evitando amigos e conhecidos e poupar-te a inevitáveis falatórios. O Pedro saiu do seu lugar e veio abraçar-me, comovido. Despedi-me, passados minutos. Deixei-te uma orquídea, de que tanto gostavas!

À saída, cruzei-me com o João, pai de teu filho! Trocamos um breve aperto de mão, frios e distantes.

Manuel Veiga

FIM (ou talvez não)


quinta-feira, janeiro 25, 2018

FRAGMENTOS LV


De regresso de África, África minha, a que te arrastei, Maria Adelaide, neste tempo sem tempo, a que a narrativa se molda, como efervescência de memória e capricho fora, que tanto se ergue faiscante, como se esbate e retrai, bicho-de-conta a evitar a luz, para mais adiante, aparecer, fixando-se, coisa ardida, no corpo inerte das coisas ditas. De África, fomos o verso e o reverso, incisão e ariete na mesma tatuagem, tu, em Angola nascida e “menina e moça” de casa de teus pais te levaram e desembocaste em Lisboa, em colégio de freiras, para te dobrarem o génio e receberes a esmerada educação a que estavas destinada não fora tua rebeldia de menina mimada por tuas criadas e amas, que amor de mãe não tiveste e este teu garboso Aspirante a Oficial de Cavalaria, que Alferes seria meses depois, por acaso de graduação militar Alferes-Adjunto do Comandante da Companhia de Cavalaria, na Guiné e o Valentim seu inseparável camarada, - como gostarias tu, Maria Adelaide, tê-los visto ambos, brilhantes de solaria e “cagança”, em trote, pela Calçada da Ajuda rumo a Monsanto, em exercícios militares, montados em soberbos alazões - tempo de cerejas ainda e verduras, que tempo maduro de “outros Maios” viria depois, desfeita a guerra e ajustados os sonhos colectivos, no refluxo de uma Revolução que percorreu o sangue dos homens e o fulgor de cravos vermelhos no cano das espingardas. Nesse tempo tu vieste, tempo de refluxos e interrogações sobre o rumo das coisas em devir incerto, capricho teu certamente, que “nunca viras um comunista tão perto” e encanto meu pelo verde de teus olhos e curiosidade confessada por ti, mulher elegante e “chic”, casada com amigo infância, em tempos outros, algures numa aldeia perdida no norte do País e que, árvores do mesmo chão, se distanciaram numa separação consentida de opções radicais de suas vidas – o João, teu marido, a singrar na política de ajuste contas e este teu amigo, fiel aos seus princípios e valores a arrastar os dias numa anódina Repartição Pública, tal pária que o zelo apostólico-político do Director-geral não lhe consentia qualquer trabalho, ao menos para justificar o horário e o vencimento, tempo nosso, portanto, totalmente nosso, vivido como um perfume raro ou um gole de vinho que na paleta de vibrantes sabores, se desfaz no palato.

Como eu gostaria que viesses, ainda hoje, neste tempo melancólico a anunciar o fim. Sei que jamais será possível, mas é ainda em ti, Maria Adelaide, que me refugio, pois ainda que definitivamente perdida, tu és o veio e a seiva que alimentam a minha escrita e esta narrativa, prestes a esgotar-se e que, sem rebuço, mais que uma vez, disseste entediante. E revivo-te hoje, como se uma luz branca e fria inundasse toda a cena, o momento grave, como um terramoto de alma, em que anunciaste o tumor que te roía o seio e a que te negavas numa teimosia dorida, iludindo a urgência da cirurgia. Havia “séculos” que não nos víamos, éramos passado e cinza quente e num fulgor de instantes, todos os momentos em mim renasceram, assim as dores de teu divórcio e a nódoa negra, dissimulada por cremes, a agressão e a brutalidade boçal do insulto do João, meu “velho” companheiro de infância e teu marido, a tua emancipação como Mulher e tua decisão unilateral de pores fim aos nossos encontros, que “amante e marido” – disseste – “são verso e reverso da mesma subjugação feminina”, a fome de nossos corpos acesos, noites de Santo António engalanado e a embriaguez das noites cálidas, a gota de vinho nos teus lábios por meus dedos, a tua prodigiosa ideia de celebrares comigo e com o champanhe de teu marido as minhas derrotas eleitorais, dividida que eras entre o voto do coração e os “dever” de o acompanhares, como esposa, no voto e na vida – eu, derrotado eleitoralmente, celebrava contigo e o João, vencedor, perdia, perdendo-te todos os dias – a livraria na Baixa, os teus seios rijos nas minhas costas em teu abraço de surpresa, o murmúrio de teus lábios no ouvido, e transgressão amorosa de um livro roubado, que exigiste, a pergunta a queimar-te na boca e na tua voz rubra, ainda hoje sem resposta – “amas-me?” - a lassidão dos dias burocráticos, os teus, que eras mulher de quem eras e os meus porque era comunista – um pária! – a rotina das horas, nossos corpos, por milímetros, a deslizarem, pelos elevadores e corredores, a festa madura, como cachos, de tuas pernas descuidadas, balançando-se, sentada sobre a secretária, Antonioni e o “Grito”, e a frágil Monica Vitti, a derramar talento sobre a tela, o encontro das mãos e a febre, o beijo a explodir, a limpidez de teus olhos verdes e o Acaso de um comunista na tua vida e, assim eu te revia nesse micro momento de todos os deslumbres, quando ao telefone, atónito, a recompor-me da surpresa, me anunciaste o desejo de almoçarmos juntos “um destes dias, tão breve quanto possível” e que levarias contigo uma pessoa minha amiga, “que não vês há muito tempo”, Claro que sim, Maria Adelaide claro que sim! E numa ironia desastrada, “se não por ti, pelo menos pela surpresa que me reservas”! E tu, em gargalhada nervosa, “meu querido, não há mais surpresas entre nós, sabemos quase tudo um do outro”, e a adensares o mistério “e a surpresa não é minha, mas estou certa que será tua”, num tom de voz melancólica e algo estranha, apesar do sorriso.

Presidias então, Maria Adelaide, ao Conselho Directivo de uma Escola do Ensino Secundário da Área Metropolitana de Lisboa, disso eu sabia, que instalado num 7º andar, da Avenida 24 de Julho, no afogadilho do Gabinete Jurídico do Ministério da Educação, por entre urgências e pausas e um relance, de vez em quando, sobre a magnifica paisagem do Mar de Palha, necessário se fazia conhecer os capilares organizativos, quer dizer, as escolas e as diversas estruturas e departamentos e quem era quem, no conjunto do sistema de Ensino, mas, em verdade, havia passado longo período de notícias um do outro que íamos colhendo apenas por terceiros, tu ocupada e o tempo dividido por mil tarefas de mulher moderna, o filho adolescente, que era o centro tua vida, o Pedro que te merecia, a direcção da Escola, as aulas, a ginástica, etc.. etc. e eu, qual “bonus pater famillia” lusitano, a dividir-se por mil tarefas, Escritório, Ministério, Sindicato, informações jurídicas, estudos, pareceres, tribunais, contratação colectiva, com o sangue, em boa medida apaziguado, e a vida “medianamente” resolvida, fui deslassando de ti, por força das coisas, que nada na vida dos homens é eterno e por bem saber que mais vale guardar o perfume evanescente das nossas vivências mais queridas, que atropelar o destino no vão desejo de as pretender eternas. Seja como for, acertado o encontro, acelerou em mim o desejo de te ver e quase esqueci, entretanto, o engodo da surpresa, desnecessário que era, pois de ti colhia a razão de minha ansiedade de ver-te novamente e – cala-te coração! – e sei lá se a afeiçoar intimamente o cálido desejo de ti, vaidade masculina, ou vibração bem mais profunda, ferida escondida, que desperta, bem sabendo, porém, seres mulher de um só homem e que o Pedro, teu colega no ensino, preenchia teus dias, se não completamente feliz pelo menos razoavelmente satisfeita na partilha da tua vida com o Pedro, teu actual companheiro, depois de duas ou três experiências funestas.

Fui pois ao teu encontro “tão cedo quanto possível”, assim o desejavas, cheguei, porém, depressa de mais e então consumia a minha ansiedade pela tua chegada, bebericando um whisky, coisa rara em mim, que não aprecio a bebida, breve, porém, tu chegavas, fantástica no ondular de teu corpo, notei o carmesim a subir-te ao rosto, depois do beijo (evitaste os lábios e demoraste o abraço) e, um passo atrás, uma mulher alta, razoavelmente bonita, de uma idade indefinida, mas definitivamente mais velha, vestida com gosto, mas modesta, onde dominavam as cores escuras, olhar tímido e um sorriso embaraçado e tu, Maria Adelaide, num sorriso, “aqui tens a surpresa!”, fazendo um gesto exagerado de apresentação e eu de mão estendida no cumprimento, suspenso, sem sinal de reconhecimento da “intrusa”, a aguardar o desenlace com um sorriso cortês e então uma voz suave de mulher a acariciar-me os ouvidos  “não me reconhece, doutor?” e eu levemente encavacado (salvo seja), pela formalidade do tratamento um pouco deslocada e pela situação de embaraço, que me escapava, em leve agastamento “não, não conheço, devia?”, a vossa troca maliciosa de olhares e a gargalhada” e a “intrusa”, divertida, “sou a Lia! Brincamos juntos quando éramos miúdos!”…

“A Lia?...”-  gaguejei. “Mas como é possível, seres a Lia?” e dando livre curso â afectividade à flor das emoções, abracei-te, Lia,  e, em exclamação interrogativa, “há quanto anos não nos víamos!?”… E agora, sim, puxando pelos fios da memória, das linhas do rosto de Lia, marcado por ligeiras rugas e emerge então o seu rosto infantil e a voz de D. Elisa, do outro lado do muro, “ai, malandros sem vergonha, que ides direitinhos para o Inferno” e do lado de cá, por baixo do vitral da sacristia, a pequena e amorável Lia deitada de costas, a exibir o sexo impúbere e ele, menino, a obedecer, a tocá-la e a mexer, entre a inibição e o deslumbramento e então a Voz, qual trombeta do juízo final a explodir como bola de fogo a derreter a sua alma “pecaminosa” e o choro diluviano e a Lia, a sereníssima, a categórica Lia a estancar-lhe as lágrimas e a salvá-lo das penas do Inferno “nada, não aconteceu nada – proclamas, majestosa, perante a mãe aflita – “estávamos a jogar e Manuel caiu e aleijou-se num joelho”.

Agora eram teus olhos, Lia, a ler meu rosto e quase num murmúrio “o tempo passa tão depressa!...” como que embalada na mesma onda de recordações em que te pressenti (ou te inventei) no breve estremecimento do corpo de mulher madura, a denunciar-te. Valeu, então, Maria Adelaide no embaraço, olhos e ouvidos atentos e sentido de oportunidade, “é altura de deixarem de se olhar como dois basbaques e passarmos ao almoço” – e aguçando a ironia – “têm a vida a vossa frente para desfrutarem o prazer do encontro”. Sorri-te, Maria Adelaide, e calei o teu vago despeito e o “discurso” desastrado, com um ligeiríssimo gesto de contrariedade e arrumei a questão, ironizando também “mais a mais somos funcionários públicos, não podemos estar a defraudar o patrão”.

Sentamo-nos. Maria Adelaide, adivinhando-me, apressou-se na explicação, “a Lia é Auxiliar da Acção Educativa na minha Escola, que em boa hora, fui a descobrir no Quadro Geral de Adidos”, onde, “retornada” de Angola com a independência esperavas a tua oportunidade de ingressares na Função Pública, onde se arrimaram milhares de concidadãos, vítimas dos “ventos da História” e das manobras estratégicas da “guerra fria”, com os americanos a promoverem e a instigarem o terrorismo e a guerra civil em Angola e a fuga dos portugueses, que deixaram o novel País sem quadros que pudessem assegurar o funcionamento da economia e da Administração, criando assim dificuldades adicionais no processo de descolonização e dificuldades acrescidas à afirmação da Democracia em Portugal, pois que a integração económica e social, de centenas de milhares de cidadãos portugueses exigia recursos que não havia e tu, Lia, ali estavas à minha frente, “viúva”, do macilento e imberbe Padre Francisco que, num final de Verão, inesperadamente, um dia partiu e, tu com ele, de uma aldeia no norte de Portugal, onde, ministro de Deus e de Sua Santa Igreja, ele Padre, apascentava o seu rebanho de fiéis e te levou, num carro ligeiro, por caminhos de terra batida, entre solavancos, poeira e enjoos e, no ventr, o fruto sagrado da tua tentação e de teus amores pecaminosos. E da tua solidão...

Em Angola te acolheste, com teu filho nos braços e o jovem e macilento Padre Francisco a tiracolo, roído pelos remorsos e pela tísica, que em breve faleceu. Valeu-te então, teu irmão Manuel que em Angola te acolheu e que hoje, solteiro e sem propósito de casar, te concede o tecto e a educação de teu filho, ele que na adolescência subiu os degraus do Seminário em vista a ser padre, como teu padrinho, o velho e santo Padre Manuel, de quem herdou o nome, mas não a côngrua e, em consequência, em Angola fez sua vida modesta e honrada, que depois da debandada dos portugueses, em Lisboa, lhe permitiu integrar-se como empregado bancário.

Assim tu o disseste, Lia, que eu não o sabia. Apenas revesti a tua vida com palavras minhas e a Maria Adelaide como testemunha, que comovida a pressenti (e já não crítica da minha narrativa sem ponta que se pegue) com tua história, a derramar-se , fraterna, no beijo em teu rosto e na sua (dela Maria Adelaide) “surpresa”. E na foto de teu filho…

“Já se deram conta das horas?” – interrogas-(te), Lia, obsequiosa, e as tuas palavras ficam a pairar sobre a perturbação do momento – “os doutores poderão ficar!” – sorris cúmplice e irónica – “mas eu tenho horário a cumprir” e Maria Adelaide “sim, sim, Lia, pode ir, eu ficarei mais uns momentos, mas não demoro “ – replica então, afagando-te num sorriso. Levantei-me da mesa e ajudei-te a vestir o casaco, Lia. Apartei-te em meus braços. E uma carícia no rosto.

Ficaram os dois, apenas. O Alferes que alferes já não era! E Maria Adelaide que sempre seria.

Manuel Veiga




segunda-feira, janeiro 22, 2018

Hei-de Plantar Uma Árvore...


Hei-de um dia plantar uma árvore
No canteiro mais nobre de meu jardim de prodígios
E hei-de rega-la todas as manhãs
Com o suor do meu rosto e
O melhor de meus afectos.

E até com o sangue de meus pulsos
Se necessário for. Para que a árvore cresça e floresça
E se desprenda generosa em apetecíveis frutos.

E abrirei então, de par em par, meus portais abertos
E hei-de gritar ao Mundo e a todos aqueles
De amor famintos.

E a todas as invejas
E a todas as pestes
E a todos os ódios

E a todas as palavras predadoras:
“Este é meu corpo, tomai e comei!...”

Mas ninguém de mim espere que ofereça
A outra face. Ou que, de hipócritas perdões,
Me faça espúria Lei…



Manuel Veiga

domingo, janeiro 21, 2018

BRINCAR COM O FOGO - O Populismo



“Quem não quer ser lobo não lhe veste a pele. O acumulado saber popular da expressão encontra prova na vivência que nos envolve.

Deixemo-nos de rodeios. O que se assistiu em torno do financiamento dos Partidos é mais um afloramento de uma perturbante corrente com que se quer impregnar o País: o populismo, enquanto expressão mais vendável de uma dimensão de pensar e de agir antidemocrática que, não tendo coragem de se assumir com os objectivos que transporta, semeia os ingredientes para fazer germinar a desorientação e o desencanto, desvalorizar a acção política organizada ou difamar o próprio sistema partidário.

Não se aflorarão neste texto raízes históricas do populismo e do originário pendor liberal de há quase século e meio. Enfrentemo-lo como hoje se assume (…)”

ver artigo completo em FOICEBOOK

quarta-feira, janeiro 17, 2018

SONHO E MÁGOA...


Benignos são os deuses que espelham
Sua majestade no coração dos homens
E dulcificam tempestades
No fogo dos poetas.

Néscios os homens que caminham rente
Aos pés e de olhar perdido
Receiam a nuvem
E gota de luz

E gemem as dores
Como funestas danças no corpo interdito
De auroras negras.

A liberdade é esta chama. Que busca
A inquietação dos anjos 
Em busca do barro redentor
E se glorifica eterno
Na fusão sonho
E mágoa

Emanação fruste
Que fecunda a Vida!...

Manuel Veiga







segunda-feira, janeiro 15, 2018

FRAGMENTOS LIV


Ao que vinha, pois, aquele bando de reguilas alfacinhas, capitaneado pelo corpolento “Bonanza”, “cabo da cifra”, posto em que o Exército, por suas específicas aptidões, o graduara  e lhe concedera os segredos e códigos das comunicações militares, que ele, “cabo da cifra” jurara preservar e manter segredo e, de regresso à peluda, voltaria operário tipógrafo da Imprensa Nacional, por cujas mãos e dedos hábeis e atentos olhos haveriam de passar, com minúcia, a composição e fotolitos das Leis, Decretos, Portarias e Despachos e outras minudências legislativas com que o Governo fascistóide e os restantes órgãos legislativos seus apêndices, estatuais e para-estatuais, Assembleia Nacional, Câmara Corporativa e Corporações, faziam publicar no “Diário do Governo” e bolsavam à profusão sobre o “pacífico e ordeiro” Povo Português, circunstância essa, que apenas ao “cabo da cifra” diz respeito, de ser operário tipógrafo e outras razões suas que para aqui não são chamadas, lhe permitiram adquirir aguda consciência de si e dos outros e alargada visão da vida, em que a solidariedade, os laços e cumplicidades entre os homens constituem, tantas vezes, alimento da vitória sobre as adversidades, bem se sabendo que aquilo que um homem produz, ou faz, forja, de forma imperecível, o seu carácter.

Coerente, pois, consigo e com as pulsões mais genuínas da sua personalidade, o nosso Cabo da Cifra, natural da Freguesia de Alcântara, na zona Ribeirinha de Lisboa, tipógrafo desde os 16 anos, na Imprensa Nacional, filho de tipógrafos e mais conhecido por Bonanza que pelo nome de registo, que o seu baptismo foram as correrias frente à Polícia nas ruas do seu bairro, onde granjeara a sua afamada alcunha e, ele mesmo, se sentia mais interpelado pela alcunha do que pelo seu quase esquecido nome, pois então o famoso Bonanza, cuja popularidade no Bairro de Alcântara lhe permitia conhecer “todo o Mundo”, dando-se conta que a sua vida estava a andar para trás, que é como quem diz, a celeridade do regresso à peluda comprometida pela teima do Capitão Mascarenhas de que “a sua Companhia” regressaria à Metrópole, se não intacta, pelo menos completa, tratou de ele próprio, à sua maneira, contribuir para resolução do imbróglio, em que o “caganças” do Capitão criara e parecia não ter fim à vista. E já que o métodos ortodoxos da hierarquia militar, a que o Capitão, na sua teima, naturalmente se submetia, não atavam, nem desatavam, haveria, em desespero de causa, que lançar mão de métodos menos ortodoxos e mais radicais, que, certamente, seriam bem mais eficazes, do que a “via-sacra” do Capitão Mascarenhas ou os salamaleques do Coronel “Cuequinhas de renda”, disso estava ele, Bonanza, completamente seguro.

E, se assim pensou, melhor o fez. Antes porém de por à “prova de vida” a viabilidade de seus métodos, que é como quem diz, testar a sua eficácia prática, mediante o convencimento da sua utilidade por parte do Alferes, Oficial Adjunto do Comandante da Companhia por acaso de graduação militar e herói a contragosto desta narrativa a enredar-se em si própria, o brioso “cabo da cifra”, discutiu o seu plano de “salvação nacional”- passe o exagero, pois que a Pátria gemia então outras agruras e outras bem mais instantes lutas clandestinas – com seu bando de reguilas alfacinhas, tão ligados estavam eles, cabo Bonanza e seus compinchas, que mais pareciam ser irmãos siameses, não de sangue, como é evidente, mas tão umbilicalmente ligados, como se dedos unidos de mesma mão fossem, vínculos de tal forma cimentados que, ao gregarismo primário da sobrevivência perante os perigos da vida, em geral, e da guerra, em especial, acrescentavam ao dito gregarismo instintivo um mínimo de estruturação orgânica, que mantinha unido e sólido aquele bando de reguilas, mediante a livre aceitação da expressão específica de cada um no interior do grupo, elevadas assim as relações intergrupais a um patamar superior de consciência social, por muito que a post modernidade abjure tal palavrão e lhe negue fundamento científico, mas isso são contas de outro rosário que para aqui não são chamadas, pois que o cabo Bonanza e seu bando dispensam dissertações teóricas e justificações mal cozinhadas para serem as pessoas que são e fazerem aquilo que consideram dever fazer e sempre assim fora, desde a longínqua recruta, em desafio ao poder do Alferes, Comandante do Pelotão, que Alferes ainda não era, mas tão-somente Aspirante Oficial Miliciano, em palpos de arranha para conseguir dobrar-lhes a crista nos dias narrados desta narrativa redonda, em que se inscreve também o “baptismo” do soldado Assobio, que chegou ao Quartel com três dias de atraso, como encomenda extraviada e não seria, pois, agora, com um pé no barco e outro em terra rumo à peluda, que deixariam por mão alheias resolver problemas que eram seus e de seus camaradas de armas.

E, assim, determinados se apresentaram ao Alferes, fazendo-se eco de viva voz do mal-estar e revolta generalizada dos militares, pelo lance mal jogado do Comandante da Companhia de Cavalaria de, à viva força, pretender regressar com s “sua” Companhia completa, sendo porém sabido, de ciência certa, que o Alferes Valentim, morto, se estava a borrifar quanto ao seu destino, que é como quem diz porco morto, cevada ao rabo e, em caso algum, um homem morto, por muito que seja o respeito que os mortos devem merecer, poderá sobrepor-se à vida de uma centena, todos eles desejosos de regressarem, depois de mais de dois anos, metidos neste buraco negro, que é a guerra.

E, colhendo silenciosos aplausos dos seus compinchas, inflamando o discurso e o remoque e já que entre os oficiais desta Companhia parece não haver ninguém capaz de “safar” o capitão Mascarenhas, atascado na sua teimosia e excessiva vaidade, prejudicando, sabe-se lá por quanto tempo e com que consequências, o regresso de todos os militares da Companhia de Cavalaria, estamos nós – enfatizou – em condições de garantir, uma vez todos os militares da Companhia dentro do Uíge, que este não levantará ferro sem o corpo do Alferes Valentim estar também a bordo. Apesar do desgaste dos últimos dias e do pesar pela morte do amigo, o Alferes, não resistiu à gargalhada, face a tão ousada proposta e tão estapafúrdia ideia e, assumindo a pose de “oficial de cavalaria”, um tanto ou quanto abalada pela gargalhada e pela indisfarçável simpatia pelo grupelho mas vocês, suas abéculas, julgam que não tenho mais nada que fazer do que estar aqui a ouvir esse chorrilho de disparates? Punham-se a andar daqui! E num rebate, sabe-se lá ditado por que intuição ou pressentimento mas já agora poderão dizer-me como pensam levar a cabo tal façanha? Agora, era a vez de o grupelho sorrir e o Bonanza, solene, em surdina o Uíge com uma avaria na casa das máquinas não levantará ferro! E o Alferes, fingindo morder o isco ah, sim? E vais tu, minha “amélia”, vais tu e o Assobio, os dois de braço dado, à casa das máquinas do Uíge, roubam uns parafusos e está feito! Devolves os parafusos apenas quando o corpo do Valentim estiver a bordo. Ora, ora… se não têm nada mais sério a dizer, desandem!

Era o momento do tudo ou nada, bem percebendo o perspicaz “Bonanza” que a conversa passara a interessar ao jovem oficial miliciano isso é segredo nosso, não podemos dizer! E o Alferes, em fingida indignação, não podem dizer, mas querem que eu os leve a serio? São parvos, ou quê? Desembuchem! Ponham cá fora o que têm para aí maquinado! Insistiu o Alferes agora percebendo que alguma coisa se passaria entre o grupo que importava conhecer, pois o grupelho desenfreado, entregue a si próprio, por melhores que fossem as intenções, bem poderia estar a deitar lenha em fogueira acesa e acabarem todos por ficar chamuscados. E, perante o mutismo embaraçado, o Alferes fez peito e voz grossa então? Estou à espera! … Tratem de me contar tim-tim o que têm para me dizer… E o “Bonanza”, meditabundo, diremos se o meu Alferes der a palavra de honra que mais ninguém saberá! E o Alferes, apertando o cerco Palavra honra? Eu dar a minha palavra de honra? A vocês? Mas falamos de quê? Estamos na tropa ainda. Ou esqueceram-se disso? É vosso dever informarem-me de tudo! E num fingido tom de mágoa, quase num amuo, aliás eu julgava que era um dos vossos e tivessem confiança em mim, desde quando foi necessária a palavra de honra entre nós? Finalmente, as últimas palavras do Alferes, a puxarem para o sentimento, quebraram a resistência do grupo e o Bonanza”, acabrunhado, Ok, meu Alferes, vamos contar tudo…

E contaram. Em síntese, a maquinação da camarilha de reguilas alfacinhas em vista a manter o Uíge atracado no porto de Bissau, contava com a própria tripulação do paquete, cuja marinhagem, nascida e criada no Bairro de Alcântara, amigos do peito, portanto, do Bonanza e a sua trupe de reguilas alfacinhas, que juntos trilharam os mesmos trilhos e beberam pela mesma cartilha de “malandragem” se propunha provocar uma “avaria” na casa das máquinas, paralisando o navio pelo tempo que fosse necessário. A “coisa” estava de tal forma bem urdida e sofisticada que o próprio “Oficial Imediato do Comando” do paquete daria cobertura à conjura.

Enquanto o Bonanza falava, o rosto do Alferes espelhava a mais genuína perplexidade, que percorria diversos timbres, desde a incredulidade à plena adesão, pois se é verdade que o bom senso o fazia céptico, por outro lado, sabia que a “a fortuna protege os audazes” e entrava em euforia, não podendo contudo ignorar que a urdidura do bando de reguilas tanto poderia resultar em beleza, como constituir um retundo desastre e, neste caso, era certo e sabido que o feitiço se viraria contra o feiticeiro e, em primeiro lugar, contra o grupelho e matéria não faltaria para os incriminar, desde logo, o uso não autorizado das comunicações militares, usadas para o contacto com a tripulação do Uíge, mas também o Alferes Adjunto do Comandante da Companhia que, tendo tido da conjura conhecimento não lhe pusera cobro, dela não informara os seus superiores e então apanharia por tabela, apanhado na armadilha em que se deixara enredar.

Ora, última coisa que o Alferes desejaria, para si e os seus amigos, a dois passos de embarcarem rumo à peluda, era apanhar com a violência do RDM (Regulamento da Disciplinar Militar) no costado. E, então, o Bonanza, prevendo o embaraço e os receios do oficial, acelerou a pedalada, que é como diz a pressão ou acredita em nós e a Companhia embarca conforme está previsto, ou então o meu Alferes tem que ver-se com uma revolta generalizada, pois ninguém está disposto a ficar, nem mais uma hora e não vão ser as falinhas mansas do meu Alferes, nem as ameaças do nosso Capitão que nos irá convencer do contrário. E se não acredita, veja por seus ´próprios olhos, acentuou, arrastando o Oficial à janela com vista para a parada – em redor do edifício os militares da Companhia de Cavalaria, em grupos de rostos fechados ansiosos acompanhavam ostensivamente as diligências do Bonanza e seu grupo, cujo insucesso determinaria um nível superior de luta.

Compreendeu então o Alferes que estava cercado e que “a coisa” era mais séria que uma aventura inconsequente e que os acontecimentos corriam mais depressa e mais longe do que se apresentavam à primeira vista e, fosse qual fosse a sua decisão, sempre seria uma má decisão, na perspectiva da hierarquia militar que, bem ou mal, lhe competia representar. Porém, - o Alferes interrogava-se - não estivera ele, Alferes Adjunto do Comandante de Companhia de Cavalaria, com pé do lado de lá da fronteira prestes a desertar? E, se não fora a palavra sábia e a opinião autorizada do “Senhor Gomes”, forjada no terreno da rebelião política e nos longos anos de degredo “a Revolução aqui em África é deles e tu se amas a Revolução terás tua oportunidade em Portugal”, muito possivelmente estaria agora, por ter medido mal o passo, metido numa aventura desastrosa, além de inconsequente? Essa experiência frustrada obrigava-o, assim a reflectir, com a necessária ponderação, sendo porém que a mesma pergunta vinha sempre à superfície, recorrentemente, a impor-se, cada vez mais, nessa luta de contrários, em que sua mente ardia, afinal que “autoridade” era a sua, ou que exemplo de bom senso decorria da sua vida que lhe permitisse travar a marcha de acontecimentos que outros consideram inscritos em sua dignidade de homens? Não ele, Alferes, por acaso de graduação militar, adjunto do Comandante da Companhia de Cavalaria que, além do mais, nutria pelo inconformado grupelho inegável simpatia.

Estava portanto o Alferes decidido a embarcar naquela aventura e, tendo bem presente que, uma vez que não estivera na génese dos acontecimentos para lhe imprimir seu desígnio, não podia, por isso, desistir de procurar controlar os seus efeitos e, assim motivado, esclareceu o grupo estou quase convencido a ficar de vosso lado, mas antes quero falar com o “Imediato” do paquete Uíge. E, então, o Bonanza, estendeu a mão ao Alferes, num forte cumprimento paisano, antes da continência militar trate o meu Alferes de convencer o nosso Capitão Mascarenhas, que eu trato do “Imediato”, dentro de minutos terá o que pretende.

E assim foi de facto. O oficial da Marinha Mercante em radio mensagem cifrada, confirmou o que havia a confirmar e “abriu” a conjura a outros desenvolvimentos que extrapolavam a iniciativa dos “reguilas alfacinhas” seguramente que o Governador e o Comando Militar da Província não desejam que se saiba em Lisboa de uma insurreição a bordo do Uíge, assim terminava a mensagem.

Entretanto, as diligências do Capitão Mascarenhas, acolitado pelo coronel “cuequinhas de renda”, estavam a produzir alguns resultados positivos, que longe satisfazerem integralmente a teima de não deixar para trás, abandonado, um oficial sob seu comando e, “pour cause”, longe também de gratificarem a sua vaidade, permitiam, no entanto, uma saída airosa, salvando-se a honra do convento, que é como quem diz a imagem do Exército e o orgulho e cagança do capitão de Cavalaria. Efectivamente, as dificuldades iniciais levantadas pelos Serviços Jurídicos do Estado-maior, sobre o cabal esclarecimento das “circunstâncias” do acidente, que havia vitimado o Valentim, foram ultrapassadas, sem dificuldades de maior, por acção do Oficial Adjunto, um Alferes miliciano, licenciado em Direito, mobilizado sem apelo, nem agravo para a Guiné como retaliação das autoridades escolares, pela destacada participação nas lutas académicas, que fez o que seria expectável, face ao seu percurso académico, ou seja,  fez a leitura adequada do “auto de notícia”, propondo o respectivo arquivamento sem mais diligências, fundado para tanto em “douto parecer”, que sabiamente engendrou, repleto de citações doutrinárias e jurisprudenciais que, no seu hermetismo calculado, o tornavam ininteligível para os broncos oficiais do Estado-maior, mas que conferiam, ao seu autor, autoridade intelectual indiscutível.

Remanescia, no entanto, um intransponível obstáculo ao embarque imediato a Companhia de Cavalaria, se não inteira, pelo menos completa, que, nem os nobres apelidos da família Mascarenhas, nem as mesuras do Coronel, Comandante do Batalhão de Cavalaria, urbe et orbe, conhecido como “coronel cuequinhas de renda” se mostravam capazes de ultrapassar, pois esbarravam na força das coisas e na teimosia dos factos e, no caso, o factor determinante era a impossibilidade do médico legista e os serviços funerários se encarregarem do corpo fúnebre do Valentim, face avalanche de óbitos que a guerra despejava naqueles serviços, com os gavetões frigoríferos a abarrotar e bem se sabe que, se na vida,  os homens poderão ser uns mais iguais que outros, na morte, porém, há uma igualdade de facto, pelo que cada um terá que esperar a sua vez, assim o declaravam firmes o médico-legista e os seus funcionários e se alguém pretende que seja diferente, então que esse alguém venha ele próprio tratar do “servicinho”. E quem, se atreve a brincar com a morte, mesmo entre aqueles que por profissão ou dever de ofício, com ela lidam todos os dias?

Estava, por isso, o capitão Mascarenhas prestes a aceitar a proposta do Gabinete do Comandante-geral, permitindo o embarque de regresso da Companhia, mediante garantia de que o corpo do Valentim, transportado de avião para Lisboa chegaria a tempo de, após o desembarque de regresso, a Companhia poder prestar-lhe as respectivas homenagens fúnebres. Ele próprio, Capitão Mascarenhas, conforme previsto no acordo de cavalheiros, permaneceria em Bissau, vigilante sobre o acordado e assim garantir a satisfação do ponto de honra que Oficial de Cavalaria não deixa nenhum dos seus homens para trás.

Assim o disse o Capitão Mascarenhas ao seu oficial adjunto, por acaso de graduação militar o Alferes miliciano, herói a contragosto desta narrativa, que, num sorriso, algo mefistofélico (aprendiz), respondeu quem sabe? Talvez o Valentim ainda se “despache” a tempo e possamos regressar todos juntos. O que importa agora é tratar do embarque da Companhia. E perante o olhar inquiridor do Capitão quem sabe se uma avaria salvadora bordo do Uíge não permitirá ao Valentim apanhar o barco.

E, assim as cousas ditas e interditas se passaram. Embarcou a Companhia de Cavalaria, em seu tempo próprio, no paquete Uíge de regresso à Lisboa. Ficara o capitão Mascarenhas, que Oficial de Cavalaria não deixa nenhum de seus homens para trás. Com ele o seu fiel “escudeiro”, o soldado “Assobio” e o corpo do Valentim à espera de ser encerrado num caixão de chumbo. As marés esperavam o levantamento das âncoras e o balançar solto do barco. O paquete porém não se erguia. Assim o exigia o próprio Oficial da Marinha Mercante Portuguesa, Comandante do elegante paquete Uíge, pois que se oficial de Cavalaria não deixa nenhum de seus homens para trás, também marinheiro que se preza, não deixa nenhum homem em terra, no seu desejo de embarcar!

Não constam desta narrativa mal cerzida, as razões do Comandante do Uíge, nem das suas eficazes diligências. Mas, passadas menos de 24 horas do embarque da Companhia de Cavalaria, foi glorioso ver a elevarem-se no escaler, os restos mortais do Valentim, coberto o caixão com a bandeira nacional, ladeado pelo Capitão Mascarenhas e pelo soldado "Assobio" em posição de sentido e impecável continência militar e os soldados e marinheiros perfilados na amurada do barco, em uníssono, enorme e emocionado Hurraaaaaaa!

Por esses dias, uma notícia discreta, no jornal República: “O Uige atolado “na lama” da Guiné, atrasa regresso de tropas”.

Novos tempos se aproximavam…


Manuel Veiga

sexta-feira, janeiro 12, 2018

COMO SE MÁGOA FORA (editado)


Sorvo o vento no búzio do tempo
Glória sem eco que me devora...

Alinho ternura no arco sem volta
De doce ventura...

Denso perfume que se acende em lume
Na ilusão de arder…

Ausência rola como se mágoa fora
Fingindo não ser...


Manuel Veiga

“POEMAS CATIVOS” – Poética Edições – pág. 34
Maio 2014

quinta-feira, janeiro 11, 2018

SEARA NOVA no blog CAUSA NOSTRA


"Saúde-se com o devido destaque o lançamento, no passado dia 14, da edição online do acervo da revista "Seara Nova" (1921-1984), um dos maiores monumentos da história das ideias e do debate democrático em Portugal no século passado, que ficamos a dever ao empenho do Seminário Livre de História das Ideias, no âmbito de um vasto programa de disponibilização das publicações periódicas de ideias e de cultura do século XX, que já leva a seu crédito um numeroso elenco de publicações.

Tendo nascido já na fase de declínio da República e resistido ao longo período da ditadura, a SN findou depois de o regime democrático-constitucional de 1976 estar implantado e consolidado, cumprida portanto a sua missão. Dando voz a todas correntes da oposição democrática ao chamado "Estado Novo" (basta ver a enorme lista de colaboradores, entre os quais me incluo), a SN contribuiu decididamente, como nenhuma outra publicação (por causa da sua duração e da sua influência), para o combate político-doutrinário ao regime autoritário e para a edificação do novo regime democrático.


Por isso, esta edição eletrónica constitui uma enorme contribuição para o conhecimento das ideias políticas em que as gerações anteriores ao 25 de Abril se formaram. Obrigado!"

VER  CAUSA NOSTRA

domingo, janeiro 07, 2018

FIO DE PRUMO...


Para o João Pedro,
Meu filho

Para além da linha curva em que o olhar
Se desprende. E do azul do sonho que por vezes
Decai em nevoeiro.

Para além do murmúrio de água e do cântico
Em que a alma se acolhe. Apenas
Solidão e eco.

Para além da brisa agreste a macular
O rosto – incisão de frio - e os dedos retesados
No bafo das coisas a expelir escórias.

Para além de solidões feridas. E da transumância
Dos afectos. Em que o nada é quase tudo e o tudo
Se esboroa. Coisa de nada – viciados ritos.

Para além de artifícios e sinais errados a venerar
Enredos. Nesse magma de logros em vertigem
E ilusões perdidas.

Nesse repositório de palavras inflamadas
Emerge da vara do tempo uma voz rubra que do alto
Fende. Fio-de-prumo que separa.
Como se joeira fora – fina…


Manuel Veiga   


sábado, janeiro 06, 2018

O RITMO DA VIDA...



Coração, meu coração, que afligem penas sem remédio!
Eia! Afasta os inimigos, opondo-lhes o peito adverso.
Mantém-te firme nas ciladas dos contrários
Se venceres, não exultes abertamente
Vencido, não te deites em casa a gemer.

Mas goza as alegrias, dói-te das desgraças
Sem exagero. Aprende a conhecer o ritmo
Que governa os homens!

Arquílogo - Grécia – Séc. VII a.C.

“ROSA DO MUNDO – 2001 Poemas Para o Futuro”
Assírio&Alvim – 3ª Edição – Lisboa 2001



sexta-feira, janeiro 05, 2018

FRAGMENTOS LIII


O contingente militar da Companhia de Cavalaria, seguindo a ordem de antiguidade, deveriam ser o primeiro a embarcar, quer dizer, seria o primeiro, com o pé no barco, a lançar ao rio Geba os anos, meses e dias contados ao segundo, que assim eram os dias contados, canga de um tempo gasto na inutilidade da guerra e na dor das vidas ceifadas, tantas vezes estropiadas, mortos-vivos a arrastar o opróbrio na inutilidade e na miséria, pois bem se sabe que dinheiro algum vale um homem inteiro e, em País pobre, pensões de guerra são rateio de orçamento, que outras urgentes premências mais urgentes se contam que pernas perdidas, ou braços, ou olhos, ou testículos, arrancados na explosão das minas, homens e armas atirados ao ar, no rebentamento, cabriolas circenses numa fantasmagoria dantesca e os destroços, como esgar burlesco do Destino, caídos no solo, ensanguentados, estropiados, vísceras à mostra, tantas vezes.

O capitão Mascarenhas, neste lance de tropas rumo à peluda, teimava e na sua teima ia adiando o embarque da Companhia, pressionado embora pelas ordens superiores, pela ansiedade dos militares e pela urgência das marés, pois bem se sabe que no ciclo das enchentes e das vazantes, o Uíge apenas em maré alta poderia descolar, atascado que estava, ao largo, no fundo lamacento do porto de Bissau e qualquer atraso, no sincronismo das operações de embarque, representava um atraso de vinte e quatro horas, até que o ciclo dos Oceanos e da Lua se cumprisse e de novo retomasse a fase da enchente.

Teimava, pois, o capitão Mascarenhas que Oficial de Cavalaria não deixa seus homens para trás, sejam eles mutilados ou doentes, ou mortos, seja a morte matada por balas inimigas, ou seja a morte acontecida em acidente de viação no cumprimento de pacíficas e rotineiras diligências de serviço, assim o exigia o exercício de comando militar, a sua honra e a “panache” de cavaleiro, pois que assim fora educado e era seu timbre e não seria nenhum dos filhos da puta do Estado-maior, que passam a vida a coçar os tomates agarrados à secretária que iria impedir que “a sua Companhia” regressasse à Metrópole, se não intacta, pelo menos completa e o Alferes Valentim, ainda que morto, haveria de regressar incorporado no contingente militar, sob seu comando, nem que para tanto tivesse que enfrentar todas as burocracias e todas as borrascas do Estado-maior e dos Altos Comandos Militares da Guiné.

Assim o dizia e jurava e agia em conformidade o capitão Mascarenhas, correndo de Repartição em Repartição, de Gabinete em Gabinete em Gabinete do Estado-maior, ou do Comando Territorial, ou da puta que os pariu a todos, qual Cristo em Via Sacra, de Herodes para Pilatos e de Pilatos para Herodes, nessa sua teima, ou ponto de honra ou desafio que a si próprio se impusera, quer lá saber o capitão Mascarenhas dos Serviços de Justiça que pretendem instrução de um processo de inquérito às circunstâncias do acidente, que vitimou o Valentim, como se o “auto de noticia” não desse conta de todos os elementos necessários à compreensão do acidente, avalizado, aliás, tal  auto com assinatura de um capitão de Cavalaria, condecorado com “Cruz de Guerra” por feitos em combate e que, em verdade, tais feitos não passavam de fanfarronada e verduras de Alferes durante a invasão de Goa, Damão e Diu ao oferecer o corpo às balas, quer dizer, o seu pelotão homens e sua esquadra de enferrujadas “Panhards” ao avanço do poderoso Exército indiano.

Não, não, com ele, Capitão Mascarenhas, não seria essa cáfila de imbecis, que outra coisa não fazem que não seja pavonearem-se em briefings e outras merdas sem interesse algum para o desenrolar das Operações quem iria obriga-lo a deixar ficar trás, abandonado, o corpo de um oficial sob seu comando ele, capitão de Cavalaria, ou não se chamasse ele Fernando José de Albuquerque Ávila e Mascarenhas, oitavo Visconde de Barro Seco, oriundo de uma Família, cujos pergaminhos, ao longo dos séculos, se confundem com a história pátria e que, ainda em tempos recentes, deu dois generais ao Exército Português e à Arma de Cavalaria e vários ministros ao regime do Estado Novo, fazendo-se, presentemente, sua Família representar entre os dirigentes da União Nacional e nas altas esferas do Regime. Não!... Com ele, não!... Nem que, para tanto, tivesse que revolver o Céu e a Terra e tal feito fosse último gesto ao serviço do Exército Português!...

O Comandante do Batalhão de Cavalaria, Coronel “cuequinhas de renda” como era conhecido na caserna, na parada e na messe e até mesmo, por entre sorrisos e cochichos, nos corredores do Estado-maior, sempre diplomático e diligente a evitar conflitos e situações críticas, que na sua imprevisibilidade possam lançar algum desalinhado grão de areia na vaselina com que se oleiam percursos da promoção a brigadeiro e ao almejado topo do generalato, torcia o nariz à teimosia do Capitão e procurava chamá-lo à razão, entalado que estava o coronel entre o dever militar de meter na linha o capitão recalcitrante ou ter que afrontar o poder político e o prestígio da família Mascarenhas que, dentro do regime, fazia e desfazia ministros, e generais e, se fosse o caso, comeria “coronéis cuequinhas de renda” ao pequeno-almoço. Assim, o Coronel, Comandante de Batalhão de Cavalaria, crismado, urbe et orbe, como Coronel cuequinhas de renda, no cálculo dos prós e dos contra, quer dizer, entre o rigor dos regulamentos militares que o obrigavam e os eventuais favores futuros da Família Mascarenhas que o seduziam, o coronel optou pela moderação e jogou na bolsa de seus interesses, pois mais que agarrar oportunidades, é necessário merecê-las e, assim, o “nariz torcido” do coronel cedo evoluiu para a amistosa palmada nas costas do Capitão Mascarenhas, num óbvio sinal de consentimento e apoio ao seu desígnio de não deixar para trás, abandonado, o corpo de um oficial sob seu comando.

A Companhia de Cavalaria que, em ordem de antiguidade e seguindo o roteiro e o sincronismo das operações e a urgência das marés, deveria estar de armas e bagagens, que é como quem diz com as mochilas e as armas ensarilhadas depositadas no bojo do paquete Uíge, mantinha-se, porém, em terra, à beira de um ataque de nervos, assistindo, contrariada e injustiçada ao embarque dos seus camaradas do Batalhão, risonhos e felizes no tão ansiado regresso ao Futuro, quer dizer, ao regresso das suas vidas, depois do “buraco negro” que foram os dois anos de guerra. Ao Alferes, herói a contragosto desta narrativa que Maria Adelaide, Licenciada em Literatura e Línguas Modernas, insiste em considerar qual beco sem saída, chegavam, entretanto, sinais de mal-estar e mesmo queixas explícitas por parte daqueles militares mais afoitos ou daqueles que com o Alferes tinham maiores laços de proximidade, fazendo-lhes sentir que, por muito respeito que um morto mereça e a morte inesperada do Valentim a todos chocara, um homem morto não pode condicionar a vida de cento e tal, e tão forte vinha o apelo das “bases”, que subira aos sargentos e aos próprios alferes milicianos, com o médico “Cartuchadas”, num argumento de força, dirigindo-se ao Alferes, herói a contragosto desta narrativa e Adjunto do Comandante de Companhia, por acaso de graduação militar que se não falas tu ao capitão e não o convences desta asneirada eu próprio me encarrego disso, pois a amizade pelo Valentim está deixar-te mais cego que o capitão na sua teima. E, neste entretempo, chega o cabo de cifra “Bonanza”, acompanhado do inevitável soldado Apoucalhado e por seu bando de reguilas do bairro de Alcântara que pedem uma conversa em particular. O Alferes, por acaso de graduação militar, oficial Adjunto do Comandante de Companhia de Cavalaria, mal refeito da morte do amigo Valentim e pressionado com estava por acontecimentos fora de seu controle, desencadeados pela teima do capitão Mascarenhas em não deixar para trás, abandonado, o corpo de um oficial sob seu comando, desejava tudo menos que ter que aturar aquela pandilha de reguilas, pela qual mantinha indisfarçável simpatia e amizade, bem sabendo ele que decilmente iria resistir a qualquer pedido, sobretudo, quando assim formulado “em colectivo” e, para varrer a testada, quer dizer, para marcar o território e seu espaço de autoridade, o Alferes barafusta mas que merda de balda é esta? Mas vocês julgam que estou aqui de pernas abertas para vos aturar? E, exagerando o tom façanhudo, têm dois minutos para dizerem ao que vêm, mas antes, “aparência” de soldados, tratem de abotoar as camisas manterem-se aprumados que a peluda ainda não chegou. E, então, o bovino “Bonanza”, cabo da cifra, desembrulhando a placidez e corpulência, com os oficiais que nos saíram na rifa, nesta Companhia, bem podemos esperar sentados que, quanto à “peluda” vou ali e já venho, ainda acabamos por apodrecer na Guiné e, sem dar tempo ao Alferes se recompor do murro em cheio, mas estamos aqui para lhe dizer a Companhia seria bem mais útil dentro do Uige, que aqui a “apodrecer” no Quartel da Amura – o Alferes Valentim compreenderia e ira agradecer. E certo de que vergara o Alferes, oficial Adjunto do Comandante de Companhia, por acaso de graduação militar, o cabo “Bonanza”, empertigado na sua condição de Comandante do grupo de reguilas alfacinhas, mas isto é assunto para discutir em privado e não no centro da parada e, sem se deter avançou, com seu séquito, afoito para o interior do edifício. A que vinham, pois, o cabo da cifra, o pachorrento “Bonanza” e seu bando de reguilas alfacinhas?

Um pouco mais de azul, Maria Adelaide, que é como quem diz, prosaicamente, uma pouco mais de paciência e retornaremos ao céu de nossos dias e à avidez de nossas vidas, antes destas “memórias de caserna” serem, que cada um conta as memórias que tem, sendo que tantos existem que memórias nunca terão, nem de caserna, nem outras, floridas que sejam, ou, tendo-as, se recusam, lestas, tais memórias, ao aparo rombo de conta-las, tu suspensa de uma urgente pergunta – “amas-me”? - e o autor (como se autor houvesse), em prosa enrolada a evitar a resposta, em longos percursos por África. Mas, decisivamente, minha amiga, África ficou para trás! Como te digo, estamos com um pé no barco e o outro em terra. E nem tua vida, nem o odor acre da caserna, nem delicadas pituitárias(literárias) , nem gloriosas façanhas embalsamadas, nos obrigarão a desistir do final que tu mereces.  Prosseguiremos, pois, prosa redonda que seja, até a narrativa se esgotar por desnecessária,

Manuel Veiga


quarta-feira, janeiro 03, 2018

Umas Perguntas Retóricas... e Oportunas


Carlos Moedas o ex-Secretário de Estado de Passos Coelho, correia de transmissão da Troika e agora Comissário Europeu disse em entrevista ao DN (…): "Quem não estiver de acordo com os valores europeus não deve estar connosco”.

Mas digníssimo Comissário Europeu a que valores europeus em concreto se refere?

Ao da solidariedade com os emigrantes, como se viu no caso da Grécia...?

Ao da transparência, como se tem visto no funcionamento da Comissão ou do Eurogrupo, de que o caso Varoufakis é exemplar?

Da igualdade entre Estados, em que como diz o seu Presidente: a França é a França!

Da Democracia, em que os Referendos quando não dão o resultado pretendido  são repetidos até darem o resultado certo ?

Da coesão económica e social? Do nivelamento por cima?
(…)
Do "Estado de Direito" - com as suas leis, directivas e regulamentos ditados pelo Directório das grandes potências?


Publicada por Pena Preta, dez Dezembro

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Orquestração de Hinos

  Polpa dos lábios. E a interdita palavra Freme… E se acolhe Em fervor mudo E sílaba-a-sílaba Se inaugura… Percurso De euf...