Com a morte de Maria Adelaide, julgava-se o
narrador definitivamente liberto das
grilhetas da escrita, arrumadas que foram, no céu das coisas ardidas, todas as palavras
ditas, pois todas aquelas que não foram, podendo ser, ficarão para sempre
recolhidas no limbo eterno das meras possibilidades. Mas eis que lhe batem à
porta, uma a uma, as personagens dispersas ao longo da narrativa, desde o
soldado Assobio e o grupelho de reguilas alfacinhas, capitaneado pelo cabo Bonanza, passando pelo capitão
Mascarenhas, Dona Rosalinda e tutti
quanti, reclamando para si próprios, um destino, que seja ele qual for, mas não as deixe ficar, assim, desgarradas e suspensas,
quais mortos-vivos a arrostar, ad eternum, as inclemências de personagens
mal delineadas. E tudo para brilho e glória de Maria Adelaide - enfatizam – o alfa e o ómega desta narrativa, que ela diz não ter ponta por onde se
pegue.
Em suma, vê-se o narrador, “devorado” pelas próprias personagens, que exigem para si próprias um
final em beleza, quer dizer,
preenchida a respectiva função na arquitectura da narrativa, requerem, a final, não serem descartadas como mera quinquilharia
literária, sem préstimo.
Qual a escapatória, digam-me? Tanto mais que
assumidamente o autor não existe e o
narrador é apenas mera escora dos filamentos da escrita, que a torna possível, mas na qual ele próprio, narrador, se molda e metamorfoseia ,em função das exigências narrativa.
Assim o narrador nesta emergência e neste sonho, meio tresloucado, neste agora de um tempo
sem tempo, a abrir-se, nas alturas, sobre as águas fétidas de uma qualquer
bolanha da Guiné, toda a majestade do Céu e o esplendor da Santíssima Trindade,
Pai, Filho e Espírito Santo, incarnados no profano Corpo de Dona Rosalinda, Maria
Adelaide e a Dulcíssima Lia, como se fora Aparição inscrita em retábulo, ou
pintura, ou fresco medieval e o Valentim, escudeiro mor do Reino dos Céus, qual
centurião romano a capitanear brioso esquadrão de amazonas e a desbaratar as
arremetidas dos exércitos infernais, vindos das profundezas da bolanha a arder
em chamas ácidas e
a extensa fila dos condenados, qual centopeia de mil pernas, ligados,
derreados, chicoteados pelo chefe da Pide na Tabanca, o agente de 1ª Classe,
Antunes e o “kamenino” Gaspar, “alma negra” do Armando, que assombraram
a vida de Dona Rosalinda e que, caídos nas entranhas do Inferno, são os
fogueiros e servos e “homens de mão”,
em rigor, “almas à mão” dos Diabos maiores,
o General Comandante-chefe de todos os Diabos, Demónios e Mafarricos, na sua
máxima dignidade de Diabo, corpo peludo, patas, rabo e chifres de bode, a
chispar enxofre pela boca e os seus lugar-tenente, o coronel “cuequinhas de renda”, também com figura
de chibo, mas que, pelo avantajado cú, sempre a rebolar, se distingue do Bode
Maior e bem assim o João, marido de Maria Adelaide e árvore do mesmo chão e
amigo de infância do Alferes, herói a contragosto da narrativa, em palpos de
aranha para chegar a bom porto, também ele, o dito João, caído no eterno fogo
do Inferno, a distinguir-se das restantes classes de diabos maiores pelo
tamanho do par de cornos e o capitão Mascarenhas, suspenso da forca, com a
língua fora, a balançar com o sopro das chamas e um dístico dependurado ao
pescoço “deixai toda a esperança, vós que
entrais” e o Alferes Berros da Selva, diabo menor, com figura de mastim
negro e grande coleira, sempre a rosnar, guarda das portas do Inferno, como se Cérbero
fora, com três cabeças e filar as almas dos condenados pelo pescoço, mediante
um simples gesto do Diabo, Comandante em Chefe, de todos os diabos, demónios e
mafarricos e o Alferes Barbas, sempre de bem com todos, servindo no mesmo lance
Deus e o Diabo, alma penada agora, a gemer pelo espaço a sua eterna solidão, pois
que nem o Inferno o quer, nem o Céu o deseja e a extensa fila de almas, fora do
tempo e do espaço, a agitarem-se e a protestarem o seu lugar na fila, e o
Soldado Assobio, misto de Arcanjo S. Miguel e de bobo, saído de qualquer página
de Gil Vicente, sem mãos a medir, a registar e a pesar a almas e gritar “ó da barca!” e a encaminhá-las, as almas, para a barca do
Céu ou para a barca do Inferno, conforme o respectivo peso, e agora neste tempo
fora do tempo, o glorioso Padre Manuel, tio e padrinho de Lia, por sua
santidade nomeado Prior-mor do Reino dos Céus a chegar à porta para serenar o
chinfrim do dito Manoel Caetano avô paterno do Alferes de Cavalaria, que
alferes foi, oficial adjunto do Comandante de Companhia, por acaso de graduação
militar e seu padrinho de baptismo, algures numa aldeia ignorada no norte do
País, bem como o Padre Casimiro, que de padre tinha o direito de rezar missa,
mas ele a rezava quando muito bem entendia, que outros afazeres e prazeres o corpo
lhe pedia, unha com carne, Padre Casimiro e Manoel Caetano, que ambos se
negavam a entrar no Céu sem as pipas de vinho e os presuntos que com eles
traziam, pois Céu não concebiam sem boa pinga e uma boa lasca, mais a mais o
Assobio descobrira na nesga do registo de almas, serem ambos putanheiros e
brigões, de tal forma que o Arcanjo Assobio lhes negava a entrada no Céu, não
fossem eles, brigões e putanheiros, a desfazer o equilíbrio perfeito da Santíssima
Trindade, o que seria o verdadeiro Caos, com o Céu e o Inferno a confundirem-se e
misturarem-se e, daí então, a alma piedosa do Padre Manuel, Prior-mor do Reino
dos Céus, a garantir ao atarantado Arcanjo Assobio que conhecia aquelas almas há mais de uma Eternidade e que eram,
apesar dos seus exageros, almas generosas e pias e que aquilo escrito nas
laudas do registo de serem brigões e putanheiros eram calúnias levantadas pelos
“talassas” do Paiva Couceiro, que nos tempos idos da “traulitada monárquica” no
norte do País, apenas os dois, Padre Casimiro e Manoel Caetano, valentes e
feros, à força de bordoada, correram com a secção” de “talassas”, aboletados na sede do
Concelho e arriaram a bandeira monárquica do edifício da Câmara Municipal e, em seu lugar, como era devido, colocaram a
bandeira da República, removendo assim um inesperado obstáculo ao livre curso
dos desígnios da Divina Providência, sendo de levar também a julgamento, como
atenuante dos dois amigos, brigões e putanheiros, a circunstância do Padre
Casimiro, com a sua imensa sabedoria das coisas do Mundo, ter salvo o jovem Aspirante
a oficial miliciano, tenro ainda em primeira recruta, que aliás exibe o nome
honrado de seu avô, Manoel Caetano, das garras e da cobiça da menina Gertrudes,
mais conhecida por “Papa alferes” e de sua tia Dona Miquelina, que a imensa
Misericórdia e Bondade de Deus as levou para o seu Santo Regaço e fez delas as faxineiras
do Céu e, assim, disse, ao
atarantado Arcanjo Assobio, a alma do santo e piedoso Padre Manuel, que morreu,
como bom pastor, no exercício de seu múnus sacerdotal, rodeado de suas ovelhas,
que nunca lhe faltaram com a côngrua e, louvado seja Deus, nem com a
assistência à missa, roído por uma ferida
ruim que lhe corroeu a garganta e agora por mercê de Deus, Todo Poderoso,
Prior-mor do Reino dos Céus e, assim dito, se aprestou, ainda que contrariado, o
atarantado Arcanjo Assobio, que apoucalhado
fora e agora, neste tempo sem tempo, zeloso pesador de almas, a deixar passar
para a Glória dos Céus os dois amigos brigões e putanheiros, as pipas de vinho
e os presuntos, sem que S. Pedro, em breve (ou propositada) soneca, tivesse
dado por conta.
Assim se abriram as portas do Céus, aos dois
amigos, feros e brigões, mas capazes de darem a camisa, a quem, dos seus, dela
precisasse e, em cortejo celeste, guiados pela alma tísica do Padre Francisco,
a quem as humaníssimas dores e o amor de Lia haviam resgatado das chamas do
Inferno, era agora, neste tempo fora do tempo, Auxiliar dos Serviços Gerais da Corte Celestial e, à passagem, ia
fazendo notar aos dois novos comensais da Graça
Divina, os amigos brigões e putanheiros, as divinas figuras a povoarem o
incorpóreo Reino de Deus, que bem se
sabe ser Eterno e assim, de passagem,
à esquerda ou à direita, não se sabe bem, pois tudo no Reino de Deus não tem
distância, nem forma e tudo se passa num Momento, em qualquer caso a voar no
espaço celestial, em harmoniosa formação de “Ordem Unida”, um coro de magníficas vozes, dirigido pelo Prof.
Eduardo Filomeno, que a remissão de seus pecados e a sua enorme paciência e
tolerância com um “bando de reguilas
estudantes”, antecipando um “bando de
reguilas alfacinhas”, capitaneados pelo “cabo da Cifra” “Bonanza”, tipógrafo da Imprensa Nacional,
que cabo da cifra já não era, a pinchar clandestinamente os muros de Lisboa “Viva a Liberdade!”, assim o anteciparam
os reguilas estudantes de um Liceu,
algures no norte do País, a escrever no quadro negro com giz vermelho “Viva Humberto Delgado, o general sem Medo!” para
pânico e o desespero do Prof. Filomeno, que estudantes, imprudentes, lhe estragavam a vida, e agora, neste
tempo sem tempo, a harmonizar e fundir, no mesmo amplexo divino da música de
Bach, os dois grupos de reguilas, estudantes e operários, irmanados no mesmo desígnio
redentor da Pátria profanada pela injustiça e pela guerra, ambas filhas do
Diabo.
E o Alferes Cartuchadas, médico e pediatra, nomeado Responsável-mor da Secção Infantil do Reino dos Céus e, como bom alentejano. a ir ao vinho e ao presunto dos abençoados transmontanos, pois bem se sabe que, no Céu, aquilo que é de um é de todos, deslumbrados que estavam os transmontanos com o Coro Celeste, agora a ensaiar “Cante Alentejano”-
E o Alferes Cartuchadas, médico e pediatra, nomeado Responsável-mor da Secção Infantil do Reino dos Céus e, como bom alentejano. a ir ao vinho e ao presunto dos abençoados transmontanos, pois bem se sabe que, no Céu, aquilo que é de um é de todos, deslumbrados que estavam os transmontanos com o Coro Celeste, agora a ensaiar “Cante Alentejano”-
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Naquele tempo sem tempo, em que
os sonhos residem, a bolanha acesa era, então, água negra de mil decomposições, fétida, arrastando detritos e todas as
sínteses, como o caldo primordial de todos os acasos de vida, esqueletos,
carapaças, jacarés apenas olhos seguindo a presa, algas venenosas, insectos,
batráquios, vermes, minúsculos seres, quase invisíveis, filando-se na carne
dorida de homens inocentes. E sobre eles o Céu a abrir-se em esplendor de
Luz e Cor, qual La Nave, de Fellini
(ou seria o Uíge?) e toda a Paródia da Vida, em metamorfose rodopiante pelo espaço!
Acordou. Sobre a cidade, um dia de sol
primaveril. Era um dia claro e límpido! Floriam
cravos vermelhos no cano das espingardas…
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E este
pobre narrador, que não é um homem justo e que, por vezes, tem a pretensão de
jogar aos dados com a vida, declara que ateia fogo, em praça pública, às
palavras e cenas atrás escritas, em expiação, não de seus pecados ou culpas,
mas de seus exageros...
Manuel
Veiga
Lisboa 05/02/2018
Fim
9 comentários:
Bom dia, Manuel
Como leitora recente dos seus escritos devo confessar que as vezes (duas?) que por aqui passei ative-me com particular atenção à sua poesia, que considero de grande qualidade.~
Desconhecia os seus dotes como prosador, aliás, pensava, erradamente, que o Manuel apenas escrevi poesia.
Pois fiquei agradavelmente surpreendida!
Este texto/excertos é muitíssimo bom.
Gostei imenso.
E, já que aqui estou, aproveito para fazer um convite:
Como não possuo o seu email venho aqui dizer que gostaria de partilhar consigo a postagem que publiquei no dia 01/02/18, no meu blog A CASA DA MARIQUINHAS/
Desde já o meu “Bem haja!”
Beijinhos
MARIAZITA / A CASA DA MARIQUINHAS
PS – Desculpe o “copy & paste”
Fabuloso e poderoso texto.
Bjos
Feliz Terça-Feira
Não tenho podido seguir os teus "Fragmentos", com a atenção que requerem, por isso não faço qualquer comentário ao conteúdo, à trama narrativa.
Da forma, no que respeita a todos os parâmetros textuais, reafirmo o que já disse em outros momentos: muitíssimo completa, pois que o modo de narração, a riqueza lexical, a literariedade são, por ti, manuseados com o saber fazer de um grande prosador e que, nestes aspetos, não podes desculpar com o narrador.
Aplausos, Manuel. Bjinho
E o narrador, que gosta de "jogar aos dados com a vida", não resistiu a queimar os pesadelos em público. Ao fechar "Fragmentos", talvez suados a cada página, escancara a janela do dia esperado e limpo.
Apesar de tantos desacertos, Portugal escreveu, na história mundial, a revolução dos cravos. E a guerra em África teve, assim, o seu epílogo.
Parabéns, Manuel, por este perfume de liberdade.
Beijinho.
Olá, Manuel Veiga
Muito bem visto.Os personagens tinham todo o direito a um fim para as suas vidas, embora aqueles a quem coube o inferno como última morada não terão ficado muito satisfeitos.
Mas, este capítulo que põe fim a esta narrativa é um desfilar de cultura. Temos aqui um encontro imediato com deliciosos fragmentos de muita sabedoria ligada à História, à Literatura. E tudo muito bem urdido.
Um narrador de Qualidade.
Abraço.
Olinda
Parabéns pelo projeto literário, um livro de excelência, originalidade
e cultura.
A narração é outro ponto do autor, que domina muito bem a arte da
escrita. Vai muito além de um contador de história, é um criador
de personagens com alma, devido a competência da estruturação do
perfil psicológico e descritivo de cada personagem.
Outro ponto de rara beleza neste livro, é que o escritor é um
Poeta e isto nos encanta com vários momentos de prosa poética
a ficar impregnada na nossa alma!...
Fui uma leitora desde do começo da tua generosidade das
publicações aqui no teu blog, me dando a oportunidade das
leituras preciosas.
Meus votos de muito sucesso com o livro, caro amigo Manuel.
Bjo.
Um final apoteótico, Manuel, onde se passa em retrospectiva todas as personagens incorporadas nestes Fragmentos... um texto de uma riqueza literária e descritiva, absolutamente geniais!
Muitos parabéns, Manuel, por este projecto, que não deixa cair Abril no esquecimento... antes vem relembrar, porque se tornou necessário...
Beijinho! Feliz semana, e um óptimo feriado!
Ana
Caro amigo,
Acabou o recesso carnavalesco. Retomo as "passadas" aqui aonde elas foram interrompidas e aproveito para dizer-lhe que incorporei este final ao meu conjunto.
Espero dar conta em breve da leitura deste livro.
Forte abraço, "espirituoso" amigo!
Deu-se vir ler.
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