sábado, dezembro 15, 2018

A CARTA QUE NUNCA TE ESCREVEREI - Take 8


Naquele tempo todo o País fervia. Ninguém desejava ficar fora da torrente. O caudal de energias, que a madrugada redentora do 25 de Abril libertou, fazia acreditar que o Futuro ali estava ao alcance de um sopro. Por todo lado se despoletavam iniciativas em vista resolver as graves carências materiais que afectavam as populações, de norte ao sul do País, designadamente, nos domínios da Educação e Ensino, da Saúde, da Habitação, do Saneamento Básico, dos Transportes, de Estradas e Caminhos etc., etc.

Vencer o atraso económico e social a que o fascismo votara o País, era então desígnio nacional, escorado na febre de participativa das populações e no envolvimento dos militares revolucionários, a que a consigna “Aliança Povo/MFA” conferia fecunda expressão político-revolucionária.

O movimento popular e os militares revolucionários lançavam-se, então, nas tarefas de democratizar as Câmaras e Juntas de Freguesia, afastando os caciques e o pessoal enfeudado ao fascismo e, em amplos plenários populares e acesas discussões, procedia-se então à escolha, de braço no ar, de Comissões Administrativas, numa genuína gestão participada, que, apesar de rudes golpes, ainda se mantém como método estruturante da actividade municipal e dos órgãos de freguesia.

Esse caudal de energias emergiu à superfície e empolgava todos aqueles, que na Revolução encontravam resposta às suas mais instantes e cálidas esperanças, procurando, cada um, sem medir interesses pessoais ou cálculos mesquinhos, ser útil a Revolução, na medida das suas possibilidades e de acordo com os saberes de cada um. Tempos empolgantes, de alegria e festa, em breve “domesticados”, que deixaram, porém, marca indelével no devir da história pátria, constituindo-se os proclamados “os valores de Abril” como a pedra de toque e matriz de qualquer acção governativa genuinamente democrática.

Militante activo da Juventude Operária Católica e iniciado na vida e na política por Padre Operário que lhe apaziguava as dúvidas metafísicas, num tempo-outro de todas as ousadias e deslumbramentos, Manuel Maria colocou-se, desde a primeira hora “ao serviço da Revolução”. Novel arquitecto, com diploma conquistado no Instituto Superior Técnico, com o suor da teimosia e persistência de trabalhador estudante, aprendendo, depressa, na austera instituição religiosa que o acolhera, na meninice, filho enjeitado, de amores espúrios, algures numa aldeia ignorada das Terras do Demo e, mais tarde, após a frequência da escola de artes e ofícios António Arroio, como desenhador na Agência de Publicidade, tempo em que Dona Ludovina, afogueada de amores serôdios, o iniciara em outras práticas bem menos cândidas e místicas, cedo aprendera pois Manuel Maria que nada na vida se colhe sem semear, pelo que o gesto de envolvimento no caudal das energias despertas, decorria nele com a naturalidade da água cristalina no percurso da sede, seguro que a Revolução de Abril permitiria, finalmente, dar expressão prática às teses, que tanto o empolgavam, de uma verdadeira Arquitectura para o Povo.

Mergulhava assim Manuel Maria nos seus habituais solilóquios, tomado como estava pela ideia, ao mesmo tempo cálida e receosa de um novo romance e, perante o aguilhão de saber-se como se constrói um personagem, num percurso anárquico da memória, vinha então à tona, com um sorriso de amargura tépida ou finíssima dor, ou descosida auto-ironia, a evocação nostálgica de um tempo de cerejas e borbulhas, como se a vida quisesse a floração de raízes mortas. E, então, nessas dobras da alma, nesse território flutuante, entre os empolgados sonhos de outrora e as inquietas razões de presente, sem nada o fazer prever, agigantava-se no seu espírito a personalidade ímpar do Artur Fontes.

Periodicamente encontravam-se. Sempre que descia a Lisboa nos seus afazeres profissionais, o Artur Fontes telefonava e era pretexto para um almoço em comum e aferir de opiniões sobre a situação do País e do Mundo, amizade caldeada, bem se sabe, naquela época de todas as iniciações e desenfreados sonhos, tempo de gomos e rebeldias a apascentar correrias e ócios e a desenhar revoluções e poemas em guardanapos de papel, em ronda pelas pastelarias da Avenida de Roma, onde o Artur era incontornável, como então os seus maiores prosélitos acentuavam, carregando as sílabas.

Seja como for, a verdade é que o Artur Fontes exercia sobre todo o grupo inegável fascínio, decorrente da sua forte personalidade, a raiar a teimosia, mas sobretudo pelo seu percurso de vida, ponteado pelo exercício da coerência e pela volúpia da acção política, que o levou a algumas invejáveis peripécias e algumas imprudências.

Terminada licenciatura em Direito, o Artur Fontes rumou às suas raízes na Beira Alta, onde organizou camponeses em luta por direitos ancestrais sobre os baldios, contra os serviços florestais e os esbirros do fascismo, numa saga digna de Aquilino Ribeiro e de seu célebre romance “Quando os lobos uivam...”

Com a Revolução de Abril”, o Artur Fontes, foi assim chamado a desempenhar funções de relevo na Administração Pública na área da agricultura e da reforma agrária, que exerceu com mérito, mas por escassos meses. Como bem se sabe a “revolução devora (quase sempre) os seus melhores filhos”, pelo que a curto prazo o Artur Fontes foi afastado das funções, num contexto, assaz divertido, mas que, de momento, não vem para o caso relatar.

A partir daí, refugiou-se o Artur Fontes numa advocacia honrada, colocando o seu saber e o seu talento ao serviço das causas em que acredita, longe dos holofotes das grandes causas e grandes interesses...

Manuel Maria, em seu itinerário de memórias e afectos, recordava a última que estivera com o Artur Fontes, numa tarde cálida de fim de Verão, ao encontro do meu amigo Quim Remédios, que por um qualquer motivo, decidira proporcionar uma noitada de convívio aos velhos amigos da juventude, na convicção de que o prazer do encontro, com umas larachas sobre política, zurzindo a "tróica" e quejandos, temperadas com umas garrafas de bom tinto do Douro e umas incursões no futebol e as “desgraças” da equipa de todos nós, seria o melhor tónico para reagir à depressão que se abatera sobre o País e que, de uma forma ou outra, a todos afectava.

Fora o Manuel Maria, que levara o Artur, ocasionalmente em Lisboa, para o encontro, pois bem conhecia a particular estima e admiração, a rasar a devoção, que o Quim Remédios nutria pelo amigo comum, mas que as contingências da vida raro lhes permitia verem-se.

Assim, pois , também nessa ocorrência o encontro entre ambos foi especialmente efusivo e grato. O Quim Remédios, abrasivo, caiu  do alto do seu metro e noventa, literalmente, nos braços do Artur: “Ó pá, ó Fontes, nem imaginas o prazer que me dá a tua presença!”:- balbuciava o Quim, num abraço arrebatado, acompanhado de dois sonoros e inesperados beijos, na face escalavrada do atónito Artur Fontes.

E o Artur, procurando libertar-se, num sorriso pleno:- “Já chega, pá!... Estás a ficar piegas com a idade!...” E, perante a gargalhada geral:- “E essa dos beijos não tem perdão. Que assédio é este? Queres levar-me ao altar, ou quê?!”

Assim o Artur, de uma ironia, por vezes cáustica, em que disfarça uma generosidade e uma sensibilidade sem mácula. Sem nunca virar a cara a uma boa refrega pelas causas em que acredita. Assim, desde sempre. Quando jovens, alguns de nós fazíamos a “revolução de café”. Porém, o nosso amigo abalançava-se na aventura de “passador de fronteiras”, na tentativa de livrar muitos jovens, carne para canhão na guerra colonial.

A iniciação do Artur nessas lides teve, porém, o seu quê atribulado. Beirão de gema, daquela estirpe (cada vez mais rara) de “antes quebrar que torcer”, voluntarioso quanto baste, movido pela mais genuína amizade, o Artur prontificou-se, em certa ocasião, a colocar em França um amigo, que gemia, pelas esquinas e cadeiras de café, o pavor de embarcar para África, cuja mobilização estava iminente...

E foi assim que, no dia aprazado, os dois rumaram à fronteira, algures no norte do País. A noite de breu gelava. A chuva fustigava o rosto. As urzes rasgavam a roupa e a carne e os silvos do vento, ecoando nos penhascos, ganhavam dimensão apocalíptica. Em cada ruído inesperado, que a noite ampliava, passador e fugitivo viam a aproximação da polícia. Desconhecedores do local, perderam o rumo, às voltas em círculo, mal se afastando 10 km do local da partida.

Até que por fim, de madrugada, apavorados e rendidos, tiveram um rasgo de bom senso e desistiram. O fugitivo foi entregue, no Porto, a “quem devia ser entregue”, isto é, a quem estava preparado para a missão, que então sim, mais tarde, pelos circuitos da clandestinidade, acabou por se refugiar em França.

Mas o desaire não afectou a determinação do Artur Fontes, Pelo contrário, serviu-lhe de aguilhão e estímulo. Hoje, confessa, com uma pontinha de orgulho a brilhar nos olhos, que passado algum tempo, conhecia, como ninguém, todas as veredas, caminhos e atalhos, ao longo de toda a fronteira com Espanha, que lhe permitiam ludibriar a vigilância fronteiriça e os esbirros da PIDE.

Para a aquisição de tão valoroso “know how”, nas suas múltiplas deslocações a Espanha permitia-se correr riscos e passar a salto, estudando a topografia do terreno e memorizando pormenores, de forma a que, no dia em que fosse necessário, não haver hesitações ou dúvidas. Aliás, o método tinha tanto de simples, como de eficaz. Munido da respectiva carta topográfica da área geográfica em causa, encenava uma viagem turística a Espanha e seguia com a família de automóvel até a proximidade da fronteira.

Resguardada que fosse alguma distância de segurança, apeava-se e os acompanhantes prosseguiam normalmente submetendo-se aos respectivos controlos fronteiriços. Entretanto, o Artur avançava a pé, a corta mato, de carta topográfica em punho, registando mentalmente qualquer acidente de terreno, qualquer marca ou sinal, memorizando uma espécie de “abecedário do território”, que lhe permitiria mais tarde decifrá-lo, mesmo de noite, quando fosse necessário.

Do outro lado da raia, no local previamente combinado, os acompanhantes aguardavam, simulando, no caso de aproximação da Guarda Civil, uma avaria ou outro qualquer expediente, que despistasse a vigilância policial, até o Artur chegar e poderem prosseguir viagem. No regresso, o mesmo percurso para cimentar o itinerário no registo da memória.

Foi, aliás, a propósito de uma dessas viagens de reconhecimento da fronteira, que o Artur Fontes contou, naquela noite de confraternização de amigos, quando os vapores do álcool se acendiam nas mentes e nas conversas, uma cena digna das melhores anedotas a que, por vezes, no negrume daqueles tempos, serventuários do fascismo e o miserabilismo do regime se prestavam.

O episódio conta-se aliás em poucas linhas. Já em fins do regime, algures na fronteira do Alentejo, de regresso de Espanha, o Artur, acorrentando ao seu destino de mapear na memória os percursos da evasão, vindo de Espanha, deparou, em sentido contrário, na vereda onde seguia, já no lado português, um soldado da GNR, que à distância lhe pareceu acenar...

Que fazer?! Recuar não podia, pois seria denunciar-se; prosseguir era cair na boca do lobo, que é como quem diz na ferocidade da polícia portuguesa. O dilema, porém, demorou uns escassos segundos: - “P´ra frente é que é o caminho e seja o for!...” , animou-se o Artur, apelando ao melhor do seu sangue frio...

Meteu a mão na algibeira das calças, onde por cautela trazia engatilhada, para qualquer emergência, uma pequena pistola e desabafou para os seus botões: “De homem para homem, neste ermo, não me apanhas! No primeiro gesto hostil ficas estendido no chão com um tiro na testa!...”

E prosseguiu caminho, com os nervos e músculos retesados, de encontro ao inevitável guarda. Ao cruzarem-se na estreita vereda, o guarda correspondeu à saudação e seguiu como se nada fora, o que o levou o Artur a presumir que “daquela já estaria safo”... Eis senão quando, uns metros andados, o guarda se voltou, gritando:

- “O senhor aí, faça favor!...” Gelou o sangue nas veias do Artur Fontes e a mão acariciou a coronha da arma. Voltou-se, calmamente, como se nada fosse: “Que se passa, senhor guarda!...

E o agente da autoridade, a quem a Nação confiara a vigilância e a guarda das fronteiras e, quiçá, a honra da Pátria, que uns desnaturados, a soldo do comunismo internacional, abastardavam, num sorriso comprometido, indagou timidamente: “Será que por este caminho chego a Espanha sem ninguém me ver?! Sabe como é - a minha mulher faz anos e gostava de lhe poder oferecer uns caramelos!...

Respirou fundo o Artur Fontes. E, na sua melhor bonomia, respondeu, sorrindo: “Sem dúvida, senhor guarda! Quer melhor prova? Aqui me tem – acabei agora de fazer o mesmo!...”

E, cada um, ao seu destino...

Nesta altura, a rebolar-se de gozo, o Quim Remédios, com uma formidável gargalhada e soberba palmada nas costas do Artur, apanhado em contra fé: “Que grande nabo me saíste! Se em devido tempo, em lugar da política te tens dedicado ao contrabando de café, hoje bem poderias ser um grande nababo. E rematou, acentuando a gargalhada e a amistosa provocação: “Porventura, Comendador com medalha ao peito!...”

E o Artur, sempre tão austero e arredio a modas, num sorriso tolerante, socorreu-se de um obsessivo slogan, instalado nas noites televisivas, para afirmar:  “Lá poder, podia!... Mas não era a mesma coisa!...”

Assim os homens. Alguns homens...


Manuel Veiga

6 comentários:

_ Gil António _ disse...

Bom dia:- Sem dúvida alguma. " Poder podia ... mas não era a mesma coisa"...Nem mais.
.
Feliz fim de semana
.
*** Flor de Linho de Amor Vestida - "" Poetizando e Encantando "" ***

Suzete Brainer disse...

Manuel, meu amigo

Grata por este momento de leitura aqui, a tua
literatura é pura Arte. Uma narrativa envolvente
e excelente, o trabalho da linguagem, levam as
palavras como palco, corpo e alma da arte desta tua
literatura de alto nível.

Como fiz no teu livro romance anterior, que segui aqui,
carimbando a viagem da minha leitura a cada partilha
tua no Relógio de Pêndulo. Farei o mesmo com este
novo romance-livro, viu?!...rss

Deixo meus votos de Boas Festas com harmonia, alegria
e paz junto com tua família, amigo!
beijo.

Olinda Melo disse...

Olá, Manuel

Uma forma de escrever que prende. Um periodo da nossa História relativamente recente, com testemunhas vivas que se identificam com grande parte da narrativa. Dias empolgantes, esses!

Abraço.

Olinda

Teresa Almeida disse...

Já tinha passado de raspão, mas queria ler e mastigar as ideias. E a verdade é que visualizamos cada personagem. As características e o enredo vão-se desenhando com a qualidade a que estamos habituados. E eu não quero perder.

Beijos, meu amigo Manuel Veiga.

Agostinho disse...

Assim foi. Parece ter sido ontem, até hoje.
Uma narrativa apaixonante que nos é querida pelos meandros e caminhos percorridos. São tempos que guardamos religiosamente, para que não se apague a memória, o que foi do bom e do pior e do péssimo.
Os gajos amarelos, do "dantes é que era bom", estão a querer levantar a garimpa mas nem na mímica são bons. Mas pelo sim pelo não... é preciso "avisar toda a gente".
Abraço.

José Carlos Sant Anna disse...

Quanta coisa em comum têm Manuel Maria e Artur Fontes?
Bela tomada, o diretor se orgulha dela.
Um abraço,

ESCULTOR O TEMPO

Escultor de paisagens o tempo. E estes rostos, onde me revejo. E as mãos, arados. E os punhos. Em luta erguidos…  S ons de fábrica...