domingo, março 24, 2019

A CARTA QUE NUNCA TE ESCREVEREI - Take 12


Assentemos pois que os portões da Casa Grande se abriram ao forasteiro - entre, quem é!... – com o leve soltar do pesado  batente. Que estava de passagem, a noite vinha fria e pelas alminhas do Purgatório rogava onde pudesse dormir. Nunca na Casa Grande, por dever de caridade e tradição antiga, se recusava abrigo fosse a quem fosse e havia sempre uma malga de caldo, uma manta e mais um lugar nos palheiros para os desgraçados que à porta batessem, fosse pedinte em devota peregrinação, fosse ladrão ou foragido, ou alguém perdido em noites de inverno e nevoeiro e, quem ali se acoitava, estava protegido. Pelo menos provisoriamente protegido.

De facto, naquela velha Casa, cujos pergaminhos se confundiam com os mais gloriosos feitos da História Pátria e em cuja galeria de ilustres titulares constam nomes de Bispos e Generais e Pares do Reino, sendo, porém, verdade que as velhas glórias, com o ruir dos tempos, eram neste tempo narrado, como santos nos altares, que despertavam temor reverencial, mas dos quais, santos e altares, ninguém espera milagres e esta circunstância da usura do tempo, bem a conheciam os diversos ramos da vetusta linhagem, disseminados pela região, fossem eles tios ou tias ou primos mais ou menos afastados, que, em conjunto, ao longo da história, constituíram vasta rede de poder e influência e, agora em processo de preclaríssimo aggiornamento, (“avant la lettre”) a cavalgarem os novos tempos e a refundarem seu prestígio e poder na intimidade com o fascismo caseiro então impante e em fase de consolidação, zelando por assento destacado nos escaninhos da União Nacional, e garantindo presença permanente no Governo, na Assembleia Nacional e nas Corporações, assim recuperando o poder social e o prestigio que a 1ª República, de alguma forma abalara, continuando, nessa arte de adaptação aos tempos, a fazer e a desfazer influências, lugares políticos e empregos na Administração Pública e nos organismos da Lavoura, bem podendo dizer-se, como faziam questão que se soubesse, que “nem uma folha bulia nas árvores, sem autorização da Casa Grande”, pelo que não seria meirinho, guarda-republicano, regedor e até juiz ou presidente câmara que pudessem entrar portas adentro, para perseguir fosse quem fosse.

Aliás, como bem se compreende, nas terras e quintas da Casa Grande, que se estendiam pelo termo de três Concelhos, nunca faltava trabalho. De tal sorte, que muitas vezes, um ou outro daqueles que ali pedia guarida, acabava por ficar, por longos períodos, ocupado na reparação de muros, limpeza de açudes e margens de ribeiros ou na guarda de animais, a troco de protecção e comida, até que o cerco da justiça ou o capricho dos ventos ou a violação das regras da Casa obrigassem o forasteiro a novo poiso. E, neste jogo de conivências e convivências com os desgraçados que à porta batiam, quem ganhava sempre, aliás, com a bênção de Deus, que, como muito bem se sabe, escreve direito por linhas tortas, quem ganhava sempre, dizíamos, na lógica de qualquer processo primitivo de acumulação de riqueza, era a Casa Grande, que granjeava trabalhadores, ao menor custo possível, quer dizer, sem pagar salários.

O senhor da Casa Grande era, neste tempo de cerzir fios e lançar caboucos da escrita, Federico Amásio Jacinto Silvestre Campêlo do Rego, recém-casado com Dona Camila Simone de Bernadette e Malafaya, senhora natural da região de Lafões, onde as serranias da Beira Alta se desdobram, como páginas, no grande livro da natureza e a geografia se abre, depois, em fecundos vales e então se prenunciam as terras baixas de Águeda, onde o rio Vouga se desembaraça, finalmente, do “petit nom” de “vouguinha” para depois, remansoso e pleno, se fundir nas águas do Atlântico e desfazer-se na encantadora Ria de Aveiro.

Quando o , um sujeito de tudo desprovido, até de nome, obedecendo ao ritmo e à direcção das águas, se acolheu debaixo da asa protectora da Casa Grande, ninguém ali sabendo ao certo quem era, nem ao que viera, ecoava ainda o assombro das festas do casamento, com a população a contabilizar o número e o lustre dos convidados ou número de bois e carneiros abatidos e dos almudes de vinho bebidos nos festejos para os quais a população da aldeia, criados de lavoura, e trabalhadores avulsos haviam sido convidados. De tal sorte que, não há fome que não acabe em fartura, o , que Canhoto, em breve, seria, para além da costumeira malga de caldo e dura côdea, caiu-lhe, como sopa no mel, lauta ceia, com os restos do festim que, de travessa e travessa, andavam abandonados, pela cozinha, E, digam-me, poderá um homem morto de fome virar costas, a quem, alguma vez, não apenas lhe matou a fome, mas lhe encheu a barriga? Assim ruminava, o nosso herói ocasional, perspectivando as linhas do futuro e fazendo balanço de seus dias por montes e vales, enquanto com a mão esquerda, segurava nacos de carne que, com sofreguidão, deglutia, famélico, quase sem mastigar. E no íntimo, a desejar oportunidade para falar e poder oferecer aos ilustres e hospitaleiros senhores, seus préstimos que não seriam grandes, mas seu corpo forte e jovem nunca temeu trabalho por muito pesado que fosse.

Não passou despercebida ao ilustre titular da Casa Grande, nem a voracidade, nem a queda para uso dominante da mão esquerda, nem o porte do forasteiro, nem a harmoniosa compleição física, cuja elegância era digna do homem de Vitrúvio, onde apenas o tamanho das mãos destoava, verdadeiras garras que se filavam nos nacos de carne, uns a seguir aos outros, numa fome insaciável.

E, como quem, antes da compra, avalia as qualidades de um cavalo, Federico Amásio concluiu para os seus botões que aquele espécimen da raça humana e aquelas enormes mãos lhe interessavam e lhe podiam ser úteis. E logo ali o baptizou, interpelando-o, peremptório, sem sequer o escutar ou ouvir-lhe uma fala e tu aí, Canhoto, podes ficar o tempo que quiseres, não falta por aí trabalho e eu sempre desejei ter um canhoto cá em casa! E, numa gargalhada estridente e alarve, dizem que dá sorte…

Zé Canhoto não ficou um dia, nem dois, ao serviço da Casa Grande. Nem um mês. Nem um ano ou dez anos. Ficou a vida inteira, como veremos.
(…)

Manuel Veiga

6 comentários:

Ronilda David-Loubah Sofia disse...

Me causou certa nostalgia acompanhar todo esse trajeto da casa grande
ainda alcancei por cá na nossa caatinga nordestina, esse proceder e
apesar de escasso muitos de nós ainda temos o costume da hospitalidade que
acode seja lá quem for.

Aprecie sua construção e achei interessante o Zé ser canhoto eu sou canhota.

Graça Pires disse...

Sei que não tenho seguido sempre "A carta que nunca te escreverei", mas pelo que tenho lido, sei que vai resultar daqui um livro bem ao seu jeito, meu Amigo. Venha ele.
Uma boa semana.
Um beijo.

José Carlos Sant Anna disse...

Caro Manuel,
E agora? Ansioso pelo desdobramento para conhecer a verdadeira história do Zé.
Gosto desse estilo folhetim, do suspense a cada carta, para manter vivo o interesse do leitor. O domínio da linguagem prende o leitor, ávido, pelo restante da "novela", rss.
Um forte abraço, caro amigo!

Emília Pinto disse...

Gostei de ler, Manuel e ao fazê-lo recordei certos termos usados na minha aldeia onde, alguns lavradores se comportavam como estes senhores da casa grande. Trabalhava-se duro nos campos desses ditos senhores a troco, muitas vezes de quarto e comida. Quando assim não era, pagavam muito pouvo aos " jornaleiros " e a merenda era um naco de pão de milho já bastants seco e, com alguma sorte, um copo de água pé. No tempo das vindimas, lá vinha o pão que seria acompanhado com os bagos caídos no chão. Frquentava muito a casa desses lavradores, pois costumava brincar com as filhas e chocava-me esse tipo de trabalho escravo. Não eram capazes de deixar que os pobres coitados levassem para casa alguma fruta caída no chão e, na apanha da batata, também era impensável levar algumas para casa, mesmo aquelas pequenas, chamadas " batatas para os porcos " Ainda hoje, na minha aldeia existe a " casa do regedor; ficou para sempre com esse nome por ele lá ter vivido em tempos idos. Amigo, fico à espera de mais novidades, certo.? Um beijinho e obrigada.
Emilia

Teresa Almeida disse...

Cada vez mais entusiasmada com os contornos da carta que não escreverás. De quando em vez surgem uns laivos de humor, estilo que te é tão próprio.
E esse "entre, quem é!", identifica a origem do autor. Poderia não ser, mas é.

Abraço amigo.

Olinda Melo disse...


Olá, Manuel

E aqui vejo eu o Canhoto a entrar pela porta grande ou pela porta estreita na Casa Grande. Pelo que foi dito no texto a Casa albergava pessoas que depois trabalhavam pelo menor custo possível, isto é, não recebiam nada. Tendo em conta que ele lá ficou a vida inteira (quanto tempo terá durado essa vida?) resta saber quais seriam as funções que o senhor da Casa reservaria a um canhoto.

Manuel Maria, à vous de répondre!

Abraço

Olinda

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