Regressemos, pois, a Terras do Demo e retomemos o fio das
coisas ali acontecidas, desvendando outras, ainda placenta e, no corpo mártir
da escrita, que tudo aguenta, projectemos outros escorregadios acasos e
acontecimentos, alguns já por demais conhecidos, mas que, solicitados a subirem
mais uma vez ao palco, irão abrir-se a novos olhares, que é como quem diz, a
novas determinações da escrita, matéria ígnea, onde se tece a trama da
narrativa e se fazem e refazem veredas, percursos e atribulações das sofridas
personagens e as não menos esforçadas as dores do escrevente.
Zé
Canhoto que, anos atrás, chegara aquelas terras, vindo sabe-se lá
donde, sem ter onde cair morto, definhava, ano após ano, não de sonhos, que
esses se reduziam ao mínimo, ou seja às urgentes determinações da
sobrevivência, elevando graças a Deus por lhe conceder um dia atrás do outro, mãos
fortes e corpo rijo para arrostar dificuldades, mas definhava, porém, na inclinação
e no gosto para se “ajeitar”, à carga
e à canga, como meeiro e homem de mão
de seu amo e senhor Federico Amásio Jacinto Silvestre Campelo do Rego, gosto e
inclinação que iam esmorecendo, com o passar do tempo e, como se não bastasse a
quebra da sua predisposição anímica, para se ajustar à carga e à canga, na
proporção aliás das soldadas prometidas e nunca pagas, vinham também somar-se
as rezinguices da mulher, que neste ofício de narrar, nem sequer nome há-de ter
que lhe possa conferir vida e identidade próprias, mas apenas como mulher do Zé Canhoto será reconhecida,
pois que mulher para o ser, o será em cada momento e para sempre e, assim
naqueles rudes tempos e para além deles, a mulher há-de “apagar-se” na sombra do homem, que dela serve para apaziguar o cio e fazer filhos, assim, também, exactamente,
com aquelas duas criaturas de Deus, bastante esquecido, aliás, tal Deus, das
humanas necessidades materiais do casal e da sua ranchada de filhos, assim,
pois, o Zé Canhoto e sua mulher, naqueles
lugares e naqueles nefandos tempos de miséria e servidão, empenhando energias e
ânimo para além de suas forças, a moirejar, escravos de terra áspera e
improdutiva, em que apascentavam minguado rebanho de cabras e arrancavam uns escassos
alqueires de centeio, que mal matavam a fome à filharada e que, em sua servidão
de meeiros de Federico Amásio Jacinto
Silvestre Campelo do Rego, senhor daquelas terras e muitas outras por todo o
Concelho e nos concelhos limítrofes, entregavam metade da escassa colheita, fosse ela produtos da terra ou criação
de animais e a quem depois recorriam para sobreviverem, exauridos os precários
meios de subsistência, acrescentando dívidas e favores, numa espiral de dependências
e exploração, a que ficavam acorrentados até à morte.
Acontecia, porém que Zé Canhoto e sua mulher, noites adentro,
depois de saciados os corpos e acalmado o cio, ficavam abraçados, nus e
indefesos, a ruminar na vida e espreitar o céu pelas frinchas do telhado, como
quem semeia estrelas na escuridão da noite. A mulher valia-se, então, desses
momentos de lassidão e, rodeando-se
de feminis artifícios e escolhidas palavras para não lhe soltar o génio, mansamente,
passo a passo, que é como quem diz, palavra a palavra, governando o fio da
conversa, amorosamente, ia levando a água ao seu moinho, dando seus conselhos
sobre as preocupações diárias e insurgindo-se contra aqueles fatais laços que o prendiam ao seu senhor e amo,
Federico Amásio, ó “home”, pois tu não
vês que o Amásio abusa de ti? Não lhe
deves nada, “os favores”, que dele recebes, saem-te bem do corpo, assim, inoculando, a sofrida mulher na alma
grande do Zé Canhoto, tão grande e generosa a alma, quão fecundas suas longas
mãos e seu corpo esguio, assim, a clarividente mulher, inoculando, com a
sabedoria, que nas vidas sofridas se colhe, na mente embotada do companheiro, a
semente da insubmissão e abrindo, como flor virgem, o sentido de justiça, que se
quer acreditar habite no coração de cada homem, por mais embrutecido que esteja
e enganadoras que sejam as circunstâncias da sua vida.
Calava, pois, a mulher as
afrontas. Calava mas não esquecia. E muito menos perdoava ao seu verdugo. Como
a si própria não perdoava aquela sina e aquele sarro, ou aquele gosto, ou
aquele fogo que a consumia, aquela ardência dos seios e tremura de pernas,
aquele fluxo sanguíneo a percorrer-lhe o corpo, aquele cálido estremecimento, aquele
desejo, que abominava, quando seu verdugo, seu amo e senhor, Federico Amásio
Jacinto Silvestre Campelo do Rego, dela se aproximava e a tomava, fazendo dela
gato-sapato e toma cuidado, mantém o bico
calado – aqui a puta és tu! – não vais querer que o cabrão do Zé Canhoto saiba.
O dia haveria de chegar. De sua
vergonha e catarse. E de sua limpeza de alma.
Manuel Veiga
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