Como constelação de destinos
improváveis, que antes das trajectórias se amalgamam na mesma tensão
criadora, na procura, ainda indefinida, de um “rosto”, uma forma ou um
itinerário que lhes confira “anima”,
ou sopro que as molde e as projecte no mundo das coisas reais, ou vivas, já não
possibilidade apenas, mas pulsar de escrita, ela própria, tensão criativa e
simulacro de um pulsar outro – o pulsar da vida – em que a narrativa literária
se joga e imita e que, dizem-me outros, porventura, mais fecundos, ser o próprio latejar da
História esteio, onde a literatura se funda e de cuja seiva se alimenta,
assim, nesta oscilação ociosa, a presente narrativa, a ousar dizer-se literária, se vai desenhando, qual nebulosa de improváveis destinos, que se
buscam e encenam, em seus múltiplos impulsos e retroacções, a procurarem erguer-se
nas dores da escrita e, neste tempo de agora, a forjarem as personagens, que à Casa Grande são chegadas, vindas de norte
para sul, ao sabor das águas, como é o caso de um tal Zé Ninguém ali desaguado e logo nomeado Zé Canhoto, por quem, sendo senhor e dono, tem poder de nomear e que o sabemos a ajeitar-se à
vida, na maneira que melhor pode e sabe, isto é, com o suor de seu rosto e suas
fortes e longas mãos, tão longas e grandes mãos que, na mente de uma criança
nervosa e sensível, hão-de ir da Terra ao Céu, como, a seu tempo se verá, neste
amálgama, em que a narrativa se despenha, a granjear, pois, o dito Zé Canhoto umas terras improdutivas, com
sua mulher, que outro nome não tem, a não ser a circunstância de ser sua
mulher, graças a Deus, mãe de seus filhos, dada por vezes a uns
incompreensíveis abatimentos e, ultimamente, a acicatá-lo contra seu amo e
senhor, Federico Amásio Jacinto Silvestre Campelo do Rego, “és um banana” solta, azeda, “o
Federico Amásio abusa de ti e não és capaz de te impor”, mas como pode um
homem impor-se, se tudo aquilo que é
e tem, até mesmo a mulher que Deus lhe deu, a seu amo e senhor o está devendo, verdade, verdadinha, porém, que, por
vezes, é obrigado a dar razão à mulher, conhecida apenas como a mulher do Zé Canhoto, pois, na realidade
como pode um homem guiar-se por outro homem, que falta à sua palavra e não paga
o que foi prometido na hora perturbada do perigo e da vida salva, que, se não
fora a determinação de um Zé Ninguém,
aquelas terras chegado, seria, é bem certo, não somente a hora de perigo, mas
funesta hora da morte, sendo, por isso, pela tão evidente
ingratidão e quebra de promessas, forçoso reconhecer que a mansidão de carácter
de um pobre zé ninguém é bem pior que
a mansidão de um burro de carga, pois que, aquele a si próprio coloca a albarda
e, assim o acreditava, a remoer pensamentos, o tal Zé Canhoto, que então, canhoto,
ainda não era, mas tão somente Zé ninguém sem ter onde cair morto, chegado
à Casa Grande, ao sabor das águas, dois
dias depois do faustoso casamento de seu amo e senhor, Federico Amásio Jacinto Silvestre Campelo do Rego, com uma senhora
de alta estirpe, vinda de sul para norte, ao arrepio das águas, Dona Camila Simone de Bernardette e
Malafaya, senhora frágil e delicada, qual flor de estufa, educada em
colégio de freiras, em Coimbra, em regime de internato, filha dilecta de uma
família distinta e de nobres pergaminhos, prestes, a distinta família e os
nobres pergaminhos, a naufragarem na ignomínia da insolvência, mas que o
casamento salvador com herdeiro abastado, de uma não menos distinta família, um
pouco boçal e rústico, é certo, o noivo, haveria, na fusão das duas nobres Casas e das duas distintas famílias, haveria
– dizia-se – de salvar-se, a primeira das familias, do opróbrio.
Assim,
pois, Dona Camila Simone de Bernardette e
Malafaya, ali chegada, à Casa Grande,
em luzidio cortejo, que o senhor, seu augusto Pai, visconde de Malafaya, apesar de ruído pelas dívidas
e pela sífilis, que o jogo e a putaria não perdoam, fez o questão de comandar,
já que filho varão não tinha para, em seu nome, acompanhar a sua Camilinha ao altar e dela fazer entrega
ao noivo que, boçal e rústico que seja tal noivo, consumada a cerimónia do
santo sacramento do matrimónio, a tomará como esposa e serva e, na santificada
missão de conceber filho barão, haverá depois, tal rebento, fundir numa única
descendência as duas Casas e,
respaldado no prestígio e nas melhores tradições das duas fidalgas famílias e
na militância aguerrida na fileiras do Estado Novo e nas hordas da União Nacional
e da Legião Portuguesa há-de alargar o património, o poder e a influência,
projectando, a âmbito nacional, como deputado ou ministro, o prestígio da decrépita
e provinciana família.
Assim,
pois, a inocente e dócil Camilinha, ali
chegada à Casa Grande, ao arrepio das
águas e ao arrepio de sua própria vontade, cúmplice involuntária das
maquinações e projectos urdidos por quem, na Família, como na vida, detêm o
poder de tudo decidir, até mesmo o destino, quando necessário, daqueles sob sua
alçada, vivem e, assim, que pode uma frágil mulher, pouco mais que adolescente,
fazer que não seja obedecer, pois bem se sabe a mulher tem a obrigação de
servir e aceitar a vontade de Deus, que assim o quer, e a vontade dos homens, que
assim o reclama, cm fundadas razões, dado que as mulheres são frágeis e, por
vezes, bem tresloucadas, a exigirem pulso firme, seja pai, irmão ou marido,
para as manter, a elas, mulheres, no bom e são caminho da obediência e da humildade,
qualidades intemporais que a sabedoria divina inscreveu no âmago da natureza
humana e da organização do Mundo, pois que a mulher foi feita da costela do
homem e não o contrário, portanto, o homem é forte e sábio e a mulher fraca e
gentil, dotada da suprema ventura da maternidade.
E como
bem se sabe, porque tal em devido tempo foi dito, nesta narrativa que, sem
rebuço, se diz literária a Camilinha, que,
em breve, novo e mais áspero petit nom
merecerá por parte de quem é dono e senhor e, portanto tem o poder de nomear, a Camilinha ou a Machorra, que
em breve será, para suavizar suas agruras, fez-se acompanhar, como dama de
companhia e confidente, pela jovem e crepitosa Violante, companheira e cúmplice
das brincadeiras de infância e dos jogos da adolescência, ali
chegada a Violante, qual peça do enxoval, montada de pernas
abertas, como briosa amazona, sobre o lombo da poderosa azémola, que teve o
privilégio de arcar com suas rijas e bem nutridas carnes.
3 comentários:
Mais um episódio que li com muito agrado. E que me deixa a vontade de quero mais.
Abraço e um mês de Outubro com saúde e alegria
Eis mais um capítulo, de grande fôlego, de "A Carta que nunca te escreverei", que não só nos situa na história como também nos apresenta o núcleo familiar da Casa Grande que irá movimentar esta narrativa, desde o seu início, provavelmente.
E aqui aguardamos, ansiosamente, a reaparição dos personagens já nossos conhecidos, sem querermos pressionar o autor, naturalmente... :)
Grande escrita, Manuel Veiga.
Abraço
Olinda
Realmente este é o ponto da situação, para não voltarmos páginas atrás, para vermos quem é quem nesta trama literária que sigo com interesse. O perfil dos personagens está, pois, traçado. Ou teremos mais surpresas à porta da casa grande? Aguardamos a evolução dos acontecimentos.
Beijinhos, Manuel.
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