No indizível lugar da escrita, território fluido da criação literária, nesse ponto sem retorno em que a vida, sem pudor, se derrama em literatura e se faz corpo e sangue e verbo, que há-de redimir o autor ou despenha-lo, a arder em chamas, pela ousadia, qual aprendiz de feiticeiro, ao pretender fechar o perfume derramado, quer dizer, recolher, das palavras, o sumo da vida vivida, nesse lugar, portanto, onde floresce o gesto de glorificação da palavra e se desenham os traços e o recorte das personagens e a metamorfose do objecto literário percorre todos os campos e (im)possibilidades da escrita para se fixar mais tarde – sinal ou padrão de descoberta e viagem – nesse ponto, enfim, de interseção e balanço, o escrevente distancia-se dos dramas e transverberações do escritor Manuel Maria e ergue-se, ele próprio, ao topo das palavras escritas e daquelas que a arquitectura da narrativa requer, para, num relance, procurar abarcar os horizontes e todos os afluentes da narrativa, quer dizer, aquele irreversível assentamento de passos e letras, entretanto escritas e, delas, fazer balanço, sobretudo, aquelas outras que, demiúrgico, o escritor fará saltar dos dedos sobre as teclas, qual chispa de pederneira e que, se os deuses o permitirem, pequena fagulha que seja, irá iluminar-se em relâmpago ou clarão de entendimento e desvendar-se fogo criativo, atando e desatando os fios de compreensão das coisas narradas e dos acontecimentos vividos, ou antecipando outros, cruzamento, assim, de tempos e lugares, em que se organiza, recreando e recreando-se, a narrativa que, sem tibiezas, se assume literária, para honra e glória do arquitecto-escritor Manuel Maria que, bem se sabe, trocou a proveitosa profissão pelos remos e pelas dores da escrita.
Confiemos,
então, nos passos e desembaraços do escritor Manuel Maria e as suas voltas e reviravoltas, ou seus
fulgores de estilo, dando-lhe corda e vara larga, acompanhando, porém, de
longe, seu mister de escrever, legítimo curador que somos perante os leitores (se leitores houver), pois, bem se sabe que todos os julgamentos são
cruéis e, no final, os leitores vão querer sangue quente, onde possam
chafurdar, mais isto ou mais aquilo,
seja vírgula solta, ou ortografia, ou figura de estilo, até a vilanagem se
fartar, o mais certo, porém, é o ostensivo silêncio ou a morte precoce, o que é
muito bem feito, pois o escrevente tem idade para ter juízo e não se meter em
cavalarias, em que as cavalgaduras são muitas e o escrevente sem lhes conhecer
as manhas e, agora, em vez de dizer direito ao que vem, mete-se por atalhos e o
criador imita a criatura e aqui o temos o escrevente engasgado a dizer que não
se dispensará de meter prosa em seara alheia, sempre que, como agora, neste
tempo presente da escrita, a prosa e o presunçoso escritor, o arquitecto Manuel
Maria, corram o risco de descambarem e perderem-se
ambos, escritor e escrita, ensarilhados, no emaranhado desta prosa, que sem
rebuço, se assume literária.
Mas confiemos que a carta
chegará a Garcia, e que, no final as
personagens, que hão encaixar-se, umas nas outras, pela mão do escritor ou
do escrevente, tanto faz, segundo os cânones, caprichos e humores de Manuel
Maria e o olhar distanciado
do escrevente,
que não deveria meter-se em assados e ter mais que fazer do que segurar as fraldas do novel e presunçoso escritor.
Confiemos, portanto. E,
sobretudo, não discutamos as razões do escritor, enquanto personagem,
mero registo de possibilidades, em um registo maior,
no qual a literatura se faz vida (ou será o contrário?) neste tempo literário a modelar
o cruzamento de todos os tempos da escrita e a conferir unidade e (in)coerência à narrativa, neste tempo assim, mãe de todos os tempos, sigamos seus
passos e embaraços, pois que as razões ele as ditará, se os humores da escrita
assim o exigirem, ou sua soberana vontade assim o determinar.
Prossigamos
pois a senda de contar, tendo como referência a performance de Manuel Maria, que é como quem diz, a pedra
angular (ou circular?) onde assentam os esteios da narrativa, que se diz
literária e que, noutro tempo narrado, tempo de prenhe de sonhos e euforias
revolucionárias, o sabemos, ainda não escritor, mas jovem arquitecto, entregue ao
seu desígnio de dar expressão prática ao ideário de uma arquitectura para o Povo e que, intermitentemente, se interroga, perplexo, o que faz ali Cléo, sendo que ressalta óbvia cumplicidade amorosa com José
Augusto Esquerdino, o que naturalmente intriga o jovem Manuel Maria que, acompanhado
por uma auto complacente ironia, se interroga sobre a precaridade das juras de
amor, procurando intuir que laços, compromissos ou cumplicidades, poderão ligar
o austero Presidente da Comissão Administrativa de um grande Município da Área
Metropolitana de Lisboa, com a Cléo dos “velhos tempos” da Leitaria e da selecta Tertúlia literária, que não
prestava na cama e, agora, naquele tempo
narrado, em palpos de aranha para dominar uma turbulenta reunião com a população
de um bairro “clandestino, assumindo o porte e o fulgor revolucionário de uma Marianne,
ou a cintilação cristalina de uma Passionária, em aguerrida versão lusitana, espartilhada, como
estava, numas calças de ganga, que lhe evidenciam a elegância das pernas.
Interrogava-se,
portanto, Manuel Maria, insistente, sobre o que fazia
ali Cléo, mas seria bem mais produtivo, sob o
ponto de vista de escritor, interrogar-se o
que fazer com Flávia, que permanece, lá
atrás, objecto de um desejo manso, em que o arquitecto-escritor, em momentos de
maior vulnerabilidade ou inquietação, se
refugia, deixando tombar livremente as suas lucubrações mais íntimas e
secretas, ainda que Flávia permaneça suspensa de um capricho ou de um deslace
do acaso, ou imprevisto, ou dor que lhe possa conferir densidade, no corpo mártir
da escrita, que tudo consente, e lhe permita afeiçoar o caminho e traçar-lhe um
destino, nesta Babel da escrita, que muitos, coçando erisipelas várias, dirão enfadonha e sem nexo e – haja Deus! –
outros não lhe regatearão incensos e louvores, mais não seja por elegância de
maneiras e declinação de amizade.
Deixemos,
pois, discorrer o
aquitecto-escritor e deixemos que nas
linhas e alçados desta escrita descuidada e redonda que, apesar de tudo se vai
erguendo, sem regra, nem cânone, como quem acrescenta, em hipotético habitação,
quarto ou arrumo, conforme as urgências sentidas, sem que a mão invisível que lhe traçou a estruturas e a matriz e lhe desenhou
o perfil se faça sentir e assuma por inteiro a obra.
Não
perturbemos, pois, querendo antecipar razões ou colher frutos ainda em flor, o
lento ruminar da escrita, a acumular afluentes e tactear percursos, pois que em toda a obra da
criação, o homem põe e os deuses
dispõem, de tal forma que o que hoje julgamos
certo, amanhã, é uma impossibilidade e o que hoje pretendemos adquirido e
fundado, amanhã se revela mera circunstância, não perturbemos, pois, o lento maturar
da sede, nem a decantação do vinho, pois que, das dores e suores de Manuel
Maria e no erguer da espada ou na servidão
dos remos, a escrita se fará ritmo
e rumo e o escritor tabelião rigoroso
e exigente das vontades e caprichos das personagens e, então, talvez a insistente
questão que faz ali Cléo se revele, em toda a sua nudez, diáfana e
transparente, em sua fantástica improbabilidade e talvez Flávia ganhe, no corpo
mártir da escrita, harmonia de tempos e movimentos e uma densidade significante, na arquitectura da narrativa, como aquela que os
antigos construtores de catedrais, atribuíam ao fechamento
ou abóbada do edifício.
Mas, por enquanto, não! Por enquanto, regressemos a Terras do Demo, onde tudo começa e é matriz. E onde o arquitecto-escritor, Manuel Maria, tem ainda muito para contar.
Manuel
Veiga
14 comentários:
Onde o narrador afirma que ..." a literatura se faz vida" e logo se pergunta "ou será o contrário?", juraria eu que será o contrário.
Abraço, Manuel!
Conheço este teu magnífico jeito de narrar e já estou a adivinhar outro belíssimo livro que, tenho a certeza, irei ler com todo o prazer. Adorei o texto.
Uma boa semana com muita saúde, meu Amigo Manuel.
Um beijo.
Obrigado, Maria João.
abraço.
como estás?
ça marche bien?
Graça,
beijo, grato.
livra-te de faltares no lançamento rss
Adivinha-se novo Livro?
Bela tecitura.
Beijo
Temos o autor, num belo recorte literário, a fazer o balanço das várias hipóteses de continuar a obra, já assente em lajes largas e seguras.
Continuaremos a desfrutar da aliciante aventura da palavra nas mãos de quem a sabe esgrimir.
Beijos, meu amigo Manuel Veiga.
Não tenho conhecimentos técnico para fazer crítica literária, pelo que só me posso guiar pelo meu gosto pessoal e pelo muitissimo que tenho lido no tempo de uma vida já longa.
Assim sendo, te digo que aprecio imensamente o que escreves e espero que publiques em livro o que partilhas connosco.
Abraço caloroso, meu amigo.
"...o escrevente tem idade para ter juízo e não se meter em cavalarias,..."
O que eu posso dizer é que o escrevente desenvolve aqui um trabalho meritório, não só fazendo chegar até nós a trama de Manuel Maria como metendo um pouco de ordem no desenrolar da escrita, aliás, como se vê neste capítulo.
Eu, como leitora atenta, registo com agrado que os próximos passos serão no sentido de o autor nos desvendar "que faz ali Cléo" e o papel da Flávia nesta bela e emocionante história.
Bela escrita, Manuel, sempre a surpreender-nos com a sua capacidade de sobrepor e entrecruzar vários tempos sem se perder. :)
Abraço
Olinda
Ana Tapadas,
advinha-se novo livro? que bom...
quem diria! rss
beijo, grato
Teresa,
..."assente em lajes e seguras!", nem mais!- assim é que é falar, minha amiga!
e, pelo sim, pelo não uma velinha ao Menino Jesus da Cartolinha para a "coisa" não descarrilar ... rss
beijo, grato
bem hajas, Sâo
caloroso abraço
Olinda,
os próximos passos? uhummm
compreendo que a Cléo e a Flávia espicacem a sua curiosidade...
mas - como constata - é grande o talento do "escritor"
e insondáveis os "palpites" do "escrevente",,, rss
sabe-se lá se uma nova personagem feminina, ainda mais encantadora!... rss
grato, Olinda, pela sua leitura atenta e amiga
abraço
E o que digo eu? Eu não digo é nada. Esperarei porque eu sei que o arquicteto-escritor ainda nos vai espicaçar com a sua história muito bem entremeada que, em breve, resultará em nossos aplausos porque "nas Terras do Demo, onde tudo começa e é matriz", ninguém sai ante que a escrita se inscreva nos muros do tempo.
Um abraço, meu caro Manuel Mariua!
P.S.: Desculpe-me o ato falho! risos!
Leia-se Manuel Maria!
Devo confessar que a catarata está irremediavelmente comprometendo minha visão. Falta-me coragem para resolver esta situação com o oftalmologista. Ele me garantiu o cumprimento dos protocolos. Mas...
Acho que vou privar-me a escrita pelo menos a noturna...
José Carlos, meu caro Amigo
parece-me muito bem que trates da tua catarata, mas não vou recomendar o meu médico! Imagina tu que enquanto me operava, o sem vergonha contava anedotas com um colega aprendiz. Resultado: fiquei sem visão na minha vista esquerda (a esquerda paga sempre pela incompetência dos outros, como bem sabes rss)
de tal forma que ando um tanto atrapalhado e a confundir o escritor e o escrevente e receio que no final, em vez de livro tenhamos "um molho de brócolos" .
grande abraço, grato
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