Com o tempo, o carácter de Federico
Amásio, senhor da Casa Grande, refinou em maldade e decaiu em vigor. O pendor
femeeiro, com o correr dos anos, foi cedendo espaço ao álcool, de que aliás
sempre usou e abusou, de tal jeito, que vícios somados, ao transpor a
meia-idade, Federico Amásio era uma sombra de si próprio, alvo de zombarias e
chacotas, a propósito do seu vigor físico e não havia bicho careta, que não
acrescentasse um ponto ao anedotário que corria pelas tabernas e hospedarias
região, sobre as proezas eróticas e as monumentais bebedeiras do Senhor da Casa
Grande, não raras vezes, encontrado tombado à
porta de qualquer tasca ou casa de má fama. O Senhor da Casa Grande era,
pois, uma sombra de si mesmo, que poucos respeitavam e ninguém temia.
E, no entanto, meia dúzia de anos
atrás, lhe bastaria estalar os dedos para que surgissem, como num passe de
mágica, dois ou três jagunços que, a troco de uns patacos, estavam “dispostos a
tudo” para caírem nas suas boas graças, disputando o privilégio de ficarem ao
seu serviço, que tanto podia ser um ajuste de contas com meeiro recalcitrante,
como uma arruaça, sem outro motivo, que não fosse o seu capricho e a ostentação
do seu mando, ou, não raro, vingança mesquinha sobre mulher que se negasse.
Federico Amásio, era, portanto, uma
pálida sombra, em razão do álcool e dos excessos, já se disse, mas também pelo
lento desmoronar do edifício social que sustentava o seu mando e as suas
arbitrariedades. Na realidade. com a derrota do nazi-fascismo na 2ª Guerra
Mundial e o ascenso dos Estados Unidos a potência à escala global e a
consolidação do modelo político demoliberal nos países ocidentais, era de
esperar que Estado Novo sentisse abalado e perdesse credibilidade. O isolamento
internacional do regime acentuou-se e, no plano interno, a oposição era cada
vez mais aguerrida. Com o início da
Guerra Colonial, aprofundaram-se as contradições do regime, com os “liberais” e
a dita “Primavera Marcelista” a preconizarem algumas reformas que se
traduziram, fundamentalmente, na alteração do nomes nas instituições
repressivas e uma certa “modernização” do discurso político, o que levava, por reação, a
“velha guarda” do regime a acentuar a retórica fascista e aos extremos de
pretender erguer uma cruzada contra comunismo internacional em defesa
“Civilização Ocidental”, de que Portugal seria o último reduto. Federico Amásio fora assanhado prosélito
desta fação, mas, depois de umas farroncadas malsucedidas, pelos corredores da
União Nacional, regressou amargurado à Casa Grande, dizendo a quem o queria
ouvir que “vivíamos num País de castrados e maricas.”
E nunca mais voltou a Lisboa.
Abrutalhado, não era, contudo,
destituído de inteligência, a convier diariamente com “a sua gente”,
conhecia bem a índole do povo beirão, e juízo que este fazia governantes, a
quem humildemente servia, mas, que lá no fundo desdenhava, mesmo quando mesmo
quando os aclamava, por ocasião de qualquer vista oficial, ou então durante as
famosas caçadas que Federico Amásio oferecia, com frequência, aos altos
dignitários do regime.
Assim, Federico Amásio, com grande
desgosto e depressa se deu conta, martirizado, que História era soprada por
outros ventos (os ventos da Liberdade e da Democracia) que não os ventos da “histeria” dos “legionários salazaristas”. de quem durante muitos anos
foi aguerrido paladino, ,Assim o “esboroamento” do regime,
que ele pressentia, azedava-lhe ainda mais a vida, de forma que Federico Amásio
apenas somava motivos para cada vez mais. desbragadamente se afundar nos seus
vícios.
Enfim, faltava ao titular da Casa
Grande competência e sabedoria (ou dir-se-ia, instinto de sobrevivência) que
outros “velhos aristocratas” demonstraram e, por isso. se salvaram, não se
importando de “mudasse
alguma coisa para que tudo permanecesse na mesma”, quer dizer, para manter o essencial do poder
económico e social e a sua permanente influência política.
Mas o Senhor da Casa Grande não!
Ciente que o seu mundo de poder arbitrário de “posso,
quero e mando” acabou ressabiado com
a política e os políticos que governavam o País (uns frouxos) e enredado nas
determinações do seu carácter, Federico Amásio chafurdou nos seus vícios e
excessos – gozaria até à exaustão seus prazeres e seus caprichos e “o resto do Mundo que se fodesse… “
Assim, Manuel Maria, num dos seus
habituais solilóquios, à vista do cadáver, exposto na nave central da Igreja, não
pode deixar de dizer para os seus botões, com amarga ironia, “afinal o fodido és tu, entregue aos bichos, nessa
cama. de que nunca mais te levantarás…”
Manuel Maria “acordou”
do seu monólogo, com a maciez de uma mão
feminina a acariciar-lhe as e um beijo de Violante, que abrindo caminho entre
os fieis, segurando-lhe a mão entre as dela. murmurava “vem comigo”, puxando entre as assistência, pedindo licença
para, ele mudo e sereno pois bem sabia que a fidalga o esperava e o desejava a
seu lado, durante as cerimónias religiosas, numa manifestação pública de que
Manuel Mania, apesar de nunca perfilhado, seria o herdeiro natural da Casa Grande e o legitimo herdeiro dos seus títulos
e bens.
Com a presença de Manuel Maria a
seu lado, no funeral do Senhor da Casa Grande, a fidalga dava a conhecer a sua
vontade e separava águas dos muitos bastardos,, candidatos ao reconhecimento de
filhos de Federico Amásio.
Entretanto, vindo do exterior, perpassava
um sururu, na assistência, bem pouco digno da cerimónia, de forma que o Vigário-Geral
da Diocese, que presidia à cerimónia, antes de passar a reprimenda se sentiu
compelido a interromper, por momentos, as orações e jaculatórias para tentar
saber o que passava. Fora o Secretário do Administrador do Concelho que chegara
com a notícia que rebentar uma Revolução em Lisboa e que estava detidos pelos
militares revolucionários Suas Excelências o Presidente do Concelho, bem como o
Presidente da Republica-
A notícia teve o efeito de uma
bomba, sem cada um dos actores soubesse como reagir. O Administrador foi o
primeiro a sair, levado a tiracolo o respetivo Secretário (adivinhava-se o muito que teriam a fazer na limpeza de gabinete)
e o Vigário-Geral da Diocese, consultado o seu séquito, terminar as cerimónias,
pois “Deus na Sua Infinita Misericórdia
não deixaria de abençoar aquele defunto, uma alma generosa e temente a Deus e
como tal haverá ser recebido entre os justos”.---
Dito isto, cada um o seu destino;
Padres recolhidos na Sacristia, Federico Amásio, Senhor da Casa Grande, seguiu
em procissão para o cemitério e o túmulo da Família. Manuel Maria, ladeado pelas
duas mulheres qua ambas amavam como se filho de ambas fossem, tomam lugar no reluzente
V8, conduzido pelo velho Viriato, rumo à
Casa Grande, onde havia muito a conversar,
Manuel Veiga
4 comentários:
Um belo capítulo que muito gostei de ler
.
Feliz domingo … abraço cordial
.
Pensamentos e Devaneios Poéticos
.
Creio que já o referi em tempos, mas a sua excelente narrativa faz-me lembrar mesmo Saramago.
Gostei imenso, como sempre.
Boa semana, caro Veiga.
Um abraço.
Gostei muito, a sério.
Boa semana e um abraço
E claro que quero seguir esta trama até ao fim. Esta que se cruza com a revolução dos cravos. A realidade e a ficção vão desembocar numa obra imperdível.
Vou passando, caro amigo Manuel. Não sei o que faço ao tempo, mas nunca estou quieta.
Beijinhos e saúde!
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