Para que serve um
soldado se ele se nega, visceralmente, a dar um tiro? Essa a preocupação dominante,
porém, momentânea, do Comando da Companhia de Cavalaria, perante o agudo conflito do “Assobio” com as armas de
fogo. Havia, assim, que encontrar solução rápida e prestável, antes que o
Comandante de Companhia desse o dito por não dito e o “Assobio”, qual encomenda mal enjorcada
e sem préstimo, fosse devolvido à procedência, isto é, ao cumes da serra Gardunha,
onde a mão longa do Exército e as necessidades da guerra o foram desencantar.
Ora bem se sabe que o Exército, qual fábrica de enchidos, não desperdiça
matéria-prima e assim o conflito íntimo do “Assobio” com as armas, se é certo que o libertou do terror da carreira de tiro, não deixou por isso de o atirar às chamas e aí temos então o “apoucalhado” recruta sem as agruras da
carreira de tiro, mas, porém, lançado às labaredas da cozinha para onde eram
atirados os básicos, dos mais básicos, recrutas.
E foi a partir da cozinha que
o “Assobio” iniciou a sua imparável
progressão militar que o levou, em escassos três meses, das
insígnias de “orelhas de burro”, com
que fora brindado no pelotão, quando “apoucalhado”
e “Assobio” não era, por como tal não ter sido nomeado ainda pela cáfila de alfacinhas de Alcântara, até às flamejantes
dragonas vermelhas e alamares doirados sobre casaca branca, distintamente
envergada no invejável posto de impedido na
messe dos oficiais, a servir à mesa e a aviar whiskys aos oficiais do Batalhão, por entre umas paradas de poker ou uns sofisticados lances de bridge.
Caso não saibam, este
percurso militar sem mácula, do soldado “Assobio”,
já não recruta, arvorado que fora em dragonas e alamares, está indelevelmente
ligado ao funesto percalço que atirou o Alferes,
que em breve iria sê-lo em luzidia cerimónia militar, a dois dias de embarcar para
guerra nas “bolanhas” da Guiné, para
os braços da menina Gertrudes, conhecida, no universo militar, urbe et orbe (excepto o Alferes) como
faminta “Papa Alferes” e a não menos
célebre senhora Dona Miquelina, sua extremosa tia, que velava, com zelo
apostólico, pela virgindade e respeitabilidade da menina.
Ora, esguardai.
O
valente Valentim, também, ele também Alferes da Companhia Cavalaria, unha com carne,
como bem se sabe, com o Alferes,
herói, se herói houvesse, destas prosas fragmentadas, era filho de professores
primários, razão em que porventura se funda a sua determinação em conseguir
implantar no Quartel uma “escola regimental”, que funcionando fora das horas
regulamentares de instrução militar, pudesse ensinar a “ler, escrever e contar” os recrutas analfabetos, com apoio e a
dedicação, naturalmente, dos oficiais, sargentos e praças que estivessem
dispostos a embarcar nessa aventura.
O Coronel “cuequinhas”, que mais tarde assim haveria ser nomeado, com uma já medalhada
carreira militar, traçada nas chancelarias diplomáticas e nos corredores do
poder político, topou o furo e, na inédita iniciativa do valente Valentim e nos
relatórios que, a propósito, expeditamente haveria de fazer chegar aos
gabinetes do Estado-Maior, vislumbrou razão bastante para brunir, ainda com
mais brilho, os seus doirados galões e, por isso, nem por um momento hesitou em
conceder a necessária autorização e o indispensável apoio do Comando da Unidade
Militar, sob sua égide.
E, nesta auspiciosa e notável confluência de linhas do Destino, traçadas, sabe-se lá em que acaso, ou que por dedo invisível ou em que
espaço sideral, o “apoucalhado” serrano, já não apoucalhado, mas antes soldado “Assobio”,
viu-se alcandorado, dos picos da Serra da Gardunha, às supremas luzes de uma
incipiente escola regimental, enfileirando, com dezenas de outros recrutas, no
magno desígnio de aprender a “ler,
escrever e contar”, que a tanto bastava, como bem se sabia, por determinação
doutrinária do regime fascista vigente e seu acrisolado fervor pela instrução
dos portugueses.
Em abono da verdade
deve dizer-se, que para surpresa geral, o “Assobio” seria um dos alunos mais empenhados
nos estudos e um ás na aprendizagem das letras, tendo, num ápice, percebido a
reversão fonética das letras em sílabas e destas em palavras, cuja sonoridade e
processo de articulação - imagina-se! – seria certamente cântico ou assobio de
pássaro no seu cérebro, qual floresta ainda virgem e inexplorada, pronta a
despontar. E, senhor da chave ou a gazua,
assim rapidamente intuída, que permite destapar a estrutura dinâmica das frases
e do texto e o processo de apreensão do sentido, eis o recruta “Assobio” a desatar a ler como um danado,
largando, definitivamente, as escórias e o labéu de “apoucalhado”.
E também nas contas o “Assobio” foi rápido, que o treino dos
dias e noites nos cumes da Gardunha, a contar ovelhas e cabras e o tempo, no
registo do “deve e do haver” das
horas circulares, que eram sua vida, lhe permitiu compreender, de cor e
salteado, ainda que por marcas e sinais ou pelos dedos fosse, a “gramática” dos números e a utilidade da adição e da subtracção.
Problema maior, porém,
foi o desenho das letras e o domínio da escrita, a que seus dedos trôpegos se
negavam, quais braços e pernas se haviam negado à ginástica, ou aos exercícios
de “ordem unida”, ou à exigente precisão e rigor nas movimentações da arma,
cerimónias militares.
Mas se o “Assobio”,
por obra e graça do recruta “Bonanza”
e de seu séquito de reguilas alfacinhas,
se ultrapassou a si próprio e, depois das tormentas iniciais, dobrou o Cabo da
Boa Esperança da sua circunvalação cinética e navegava agora, tão bom como os
melhores, nas calmarias da marcha, da parada, da ginástica de “aplicação
militar”, ou em quaisquer outras performances militares, também os dedos trôpegos
se iriam dobrar às exigências da escrita, com vontade e treino e a solícita colaboração
do fechado grupo de reguilas alfacinhas, que o reconheceu a
ele, “apoucalhado” recruta, como a um deles e como “Assobio”
o nomeou.
E quando, finalmente,
na ardósia negra, o recruta “Assobio”
a si próprio se nomeou, escrevendo bem legível seu nome, Eusébio da Silva Ferreira, um
acontecimento soberbo se elevou sobre a terra, como se um clarão inesperado
tivesse iluminado toda a galáxia ou uma estrela supernova tivesse nascido, com
assinaláveis efeitos colaterais no espaço-tempo da narrativa: - o “apoucalhado Assobio”, agora partilhando
seu nome com outro “apoucalhado”, por
essa época chegado de Moçambique e que viria a ser consagrado herói do pontapé
na bola, com direito, anos depois, a mausoléu no Panteão Nacional ao lado de
Sofia, catapultado das alfurjas da cozinha para as dragonas e alamares no casaco imaculado e os salões
da messe de oficiais e o Alferes, que ainda não era, mas em breve iria sê-lo, para os braços da menina Gertrudes, mais conhecida por “Papa-Alferes”.
Como em
breve, prolixamente, se saberá...
11 comentários:
Acompanhando este caminhar dos teus fragmentos
literários, estou a ser repetitiva quanto ao
sentir apreciado, pela leitura tão ímpar que tu nos proporciona.
Repetindo-me, quando sempre digo que tu sabes tudo sobre a
viagem das palavras, que inscritas em uma bela narrativa,
nos seduz na velocidade de apreender todo significado-Ser de
cada personagem na história.
A singularidade do "Assobio" é encantadora e ele tem um reflexo
de um personagem principal, anti-herói, decorrente das suas
características consideradas inadequadas e pequenas para o
universo glamoroso de um herói, neste ponto, surge a
quebra do paradigma e nasce a beleza única do "Assobio"
como o porta-voz da manifestação poética de Ser:
"Percebo a reversão fonética das letras em sílabas e destas
em palavras, cuja sonoridade e processo de articulação
- imagina-se!- seria certamente cântico ou assobio de pássaro
no seu cérebro, qual floresta ainda virgem e inexplorada,
pronta a despontar."
Quando o "Assobio" registrou o seu nome, contactou com a
sua identidade, nela a sua força de superação e
transcendência, tão bela e profundamente descrita:
"Um acontecimento soberbo se elevou sobre a terra,
como se um clarão inesperado tivesse iluminado
toda a galáxia ou uma estrela supernova tivesse
nascido, com assinaláveis efeitos colaterais no
espaço-tempo da narrativa."
Brilhantemente continuas a reger as palavras
numa narrativa de um grande rio de letras,
límpido, profundo e pleno de riquezas de
detalhes na condução desta viagem fascinante!...
Nossa, quem foi prolixa fui eu, com este
comentário enorme, amigo querido!...rss
beijo.
Susete, minha boa Amiga
a tua análise é uma penetrante "crítica", de quem - nota-se - tem perfeito domínio da prática de "ensaio literário", que "descodifica" o texto do post, contribuindo assim para melhor leitura e compreensão do texto por parte dos leitores e por parte do próprio autor (se autor houvesse rss).
fico, por isso, muito grato por esta preciosa colaboração, que muito engrandece este espaço de comunicação entre amigos.
e quanto à extensão não se preocupe a minha amiga, pois sempre sobrará espaço para o comentário dos restantes leitores (se leitores houverem rss)
beijo, agradecido.
"Como em breve, prolixamente, se saberá..."
Pois que se saiba, e rápido! :)
Sinto que se desenha por aí escrita de fôlego, meu amigo. Parabéns!
Um abraço
Pois que vão as dragonas e alamares, rapidinho, enfeitar a alvura do casaco do futuro Alferes (miliciano?), já que sem essas distinções não poderá o dito, ascender à súbita honra de engrossar a lista de Papados-da-Estrudinhas.:)
Aguardo o que prolixamente aí virá, com grande expectativa.
Beijos, escritor heretico!
Janita, minha amiga
mas as "dragonas e alamares" e casaca branca são pertença do Assobio, aliás, briosamente conquistados...
o Alferes (miliciano, claro) que "ainda não era" limita-se a "insignificância" de um galão transversal no ombro rss
beijo, benvinda.
Oh, peço desculpa!!
Pensei que o 'Assobio' fosse a alcunha do futuro alferes!
Perdoai-me a distracção, meu amigo! :(
Beijinhos
Janita,
a confusão é normal para quem toma contacto com a série "Fragmentos" pela primeira vez.
(nem sempre a primeira vez resulta rss)
Beijo, fica "perdoada"
Pois é, para o Comandante da Companhia, ter um soldado que se negue a dar um tiro, será de facto um soldado que servirá para pouca coisa, mas existem sempre atalhos para evitar o regresso à Serra da Gardunha.
Aquilo que se negava a grande parte da população portuguesa (saber ler), acabou por ser dado ao Assobio, e a outros, felizmente, mas quase como privilégio. Imagino o seu sentimento de satisfação e vitória ao escrever o seu próprio nome. Curioso ter o mesmo nome que o Pantera Negra! ... Aliás, até a personagem Valentim me fez lembrar um outro "Valentim Valentão"! :-)
É um prazer acompanhar a história do "Assobio". Muito bem escrita.
Decerto ouviremos falar mais dessa "Papa Alferes". :-)
xx
Não, não Laura. o Valentim desta "estória" não era "Valentão" - fundava escolas, "regimentais" que fossem ... rss
(e nunca poderei mais "acender no dele o meu cigarro" ...)
sempre bem vinda.
beijo
De apoucalhado a assobio cresceu depressa, como um melro da serra da Gardunha. E pelo mérito desconfio que ainda sabemos de o ter noutras andanças. Porém, antes, venha lá a papa-alferes a ver se papa ou é papada, salvo seja. Será o Assobio que servirá o jantar na messe ?
Caro Manuel Veiga estes "Fragmentos" são imperdiveis, pela qualidade da acção e pela v montagem das palavras que nos fazem pedir mais.
Parabéns.
Enviar um comentário