Como se escreve
um romance? Sabemos “como se escreve uma
tese”, e até “como se escreve uma
crónica” não faltam por aí eruditos que as pratiquem e as ensinem, teses e
crónicas para todos os gostos e modelos pronto-a-vestir, aptos a servirem de
invólucro, nem faltam causas e mestres que as soprem, nem academias que as
emplumem e as empalhem, coisas, antes de nascidas, já consagradas e ainda mal
refeitas do suor ou placenta logo descartadas – as teses! E as crónicas…
E um
romance? Como se escreve um romance? A pergunta é retórica, pois que romance
não tem cânone, como a vida não tem métrica, nem os caminhos se desbravam na
orla dos desertos. Insiste, porém, o autor, como se Manuel Maria fosse, em
interrogar-se “como se escreve um romance?”, em desespero de causa, como um
condenado se entrega às galés e, para aliviar o destino, investe toda a energia
no vigor dos braços e no movimento dos remos e, nessa tensão se consome,
alargando o olhar para lá do horizonte, não sabendo bem quando a sujeição terá
fim. Mas almejando sempre a persistência de novos rumos, pois, bem se sabe, que
a viagem se faz com o bater dos remos e quando o Homem a ergue, “a espada faz-se!...” e também o remo, quando
erguido, sendo porém que não basta ter talento, mas sobretudo dar-se, cada um,
ao esforço e ao trabalho de, por acções, palavras e obras o demonstrar, ainda
que ilusória seja sempre a redenção das grilhetas.
Assim, Manuel Maria, subindo o Chiado…
Eram 15 horas. Manuel
Maria ouve o seu nome soltado num berro feroz. Era o Quim “Remédios”, do alto
do seu metro e noventa, pronto a “esmagar-lhe
os ossos”, num abraço. Há que anos que não se viam!... E, no entanto,
tempos houve em que eram unha com carne. Foi, pois, com manifesto prazer, que
Manuel Maria atravessou a rua ao encontro do amigo, enquanto, em fuga para os descuidados
dias da “Avenida de Roma”, onde se
conheceram, o Quim “Remédios”, mais velho, a frequentar os últimos anos de
Medicina e ele, Manuel Maria, residente supernumerário
em lar de estudantes pobres, propriedade da congregação religiosa, que o
recolhera na infância e o educara, então Manuel Maria a iniciar os primeiros
passos do Curso de Arquitectura, depois de se desembaraçar, com brilho, do
curso de Desenho e Pintura na Escola de Artes e Ofícios António Arroio.
Enfim, um tanto insólita aquela amizade. O Quim
Remédios, filho da burguesia urbana, com enorme cabeleira a enfeitar-lhe a
cabeça e avantajar ainda mais a sua corpulência, deslocava-se num deslumbrante MG descapotável, sempre rodeado de um
cortejo garrido de raparigas e ele, Manuel Maria, de cabelo à escovinha, como
sempre usara, na infância e adolescência, no “internato” e, ainda que sem aleijão físico ou deficit de apresentação, a sua figura débil nada devia à natureza, em
termos de vigor físico ou porte atlético, com que pudesse ombrear com seu
amigo, nem, muito menos, a reduzida bolsa de estudos, que, por mérito e
empenhos vários, recebia da Fundação Calouste Gulbenkian lhe permitia as façanhas lendárias, no campo feminino, onde
o Quim Remédios se orgulhava de fazer verdadeiros desbastes.
Era, pois, no normal entendimento das coisas, a
amizade com o Quim Remédios uma amizade
improvável… Unia-os, é verdade, o gosto pelo cinema, de que não perdiam
pitada, perdendo-se, ambos, nas salas de cinema, em sessões permanentes, ou nos
ciclos de cinema do Cineclube, que assiduamente frequentavam. Mas, porventura,
mais que as afinidades culturais e o itinerário dos dias sem cuidados terá
pesado, nesta amizade fora de previsibilidade, mais fundas razões para as quais
livros e especialistas encontrarão eventualmente resposta, mas que, nesta
narrativa à superfície dos dias, bastará lembrar que eram ambos amputados dos
afectos da paternidade, o Quim Remédios, lisboeta das avenidas novas, porque desde os primeiros meses de vida, ficou órfão
e mimado pelos avós que o criaram e Manuel Maria, oriundo de um lugarejo
ignorado das Terras do Demo filho de
mãe solteira, criada de servir, que nunca
o pai tivera e que a caridade beneditina o acolhera e educara.
Deve esclarecer-se – e nesse picaresco pormenor Manuel Maria se detinha, com um sorriso travesso, ao encontro ao amigo - que “remédios” não é apelido de família
do Quim. Trata-se de uma garbosa alcunha, que vem desde esses velhos tempos das
avenidas novas. O Quim, então de estudante de medicina, como ficou dito, sempre
que assediado, por algum elemento do grupo, para diagnóstico ou mezinha, tinha
uma receita infalível. Fosse qual fosse a doença, real ou imaginária, fosse
enxaqueca, ou insónia, torcicolo ou anemia, o Quim disparava sempre: -“ Oh pá, f…de! É remédio santo!...”. Daí
o “Remédios”...
A verdade, porém, é que o Quim não era um
teórico. Praticava a “receita” e respirava
saúde...
(Continua)
Manuel Veiga
1 comentário:
Sem pressa, o ano é novo e ainda dispomos de muito tempo, cheguei ao take 3 novamente. Sabemos que é a segunda leitura que conta. Vou seguindo nessa toada!
Um forte abraço,
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