sábado, novembro 10, 2018

O MEU ESPÓLIO...


O dia em que um poeta for enterrar
Entregar-te-ei o espólio de meus sonhos.

Talvez recebas apenas
Minhas cãs em desalinho.
Ou as cinzas pela antiga casa
E as maças emolduradas.
E a sala de visitas deserta
E o silêncio dos passos.

E o chocolate fervido e o vinho quente
A atapetarem o palato
E as narinas.

Ou talvez a brusca debandada de meus olhos
Tordos acesos a riscar o ar e agora baços.
Ou o espúrio cio dos gomos.
Ou o calor íntimo das amoras
Mel silvestre a tingir as bocas
Ante o incêndio
Das salivas.

E encontrarás, estou certo, um ramo de lírios
Desbotados, acabados de colher, e o regaço
Da Mãe e a criança solitária e o fio de água
De meus olhos agora secos.

Talvez a bênção do dia e missa dos sentidos
Encontres nessa caixa de abandonos.

Ou aquele poema amarrotado
De que me faço distância e eco
A martelar nos ouvidos
Como remorso
Ou destino:

Que mais nada tenho! …


Manuel Veiga


13 comentários:

_ Gil António _ disse...

Boa noite:- Um espólio poético brilhante.
.
* Solidão poética na noite escura ( Poetizando e Encantando ) *
.
Abraço de amizade

Pata Negra disse...

Enganas-te que os poetas não morrem! Podem morrer os homens que andam na pele deles, mas eles não, porque os poetas só são poetas enquanto poesia, eles são a poesia e a poesia são os poetas e a poesia não morre. Fiz-me entender?
Se calhar não! Afinal de contas o que importa é que os poemas não são teus homem, são do poeta de que vesti-te a pele.
Um abraço imortal

Teresa Almeida disse...

O espólio de um poeta, como tesouro imaterial da humanidade, não é perecível. Por isso o eco, fenómeno a emergir - naturalmente - do substrato de teus poemas. Por isso, também, o mundo de afetos que passa na dedicatória.

Beijos, meu amigo Manuel Veiga.



Ailime disse...

Boa tarde Manuel,
Um poema muito belo. Um espólio muito rico em amor.
Beijinhos,
Ailime

Graça Sampaio disse...

Assusta-me a previsão da morte...

Apesar da beleza das palavras, neste momento, não queria ser o teu filho João...

Beijinho

Tais Luso de Carvalho disse...

Poema de incontestável beleza, meu amigo Manuel, e coberto pela realidade, dura e crua, mas com uma construção poética extremamente bela que alivia um pouco o incômodo, pois falar do fim, de qualquer coisa que seja, é dolorido, e do fim da vida, muito mais. Mas poetas, não se furtam de falar 'nela', segundo teu colega Mário Quintana, da nossa "doce Prometida". Mas que tem lá sua beleza, ah tem, só não descobri o motivo. Talvez pelo mistério.
Beijo, uma feliz semana!

Agostinho disse...

Os testemunhos poéticos são difíceis de acolher em qualquer receptáculo. Eles transbordam de imaterialidade significante porque imbuídos de figuras eternas, transpostos em palavra que sabe-se foi, é é será alimento que sustenta a humanidade.
Um poema profundo que convida a pensar em tantos agora. Espero que tudo esteja no caminho certo.
Obrigado pelo que li. Este é muito bom.
Abraço.

Graça Pires disse...

E é tanto o que tens, meu amigo. Posso escolher para mim, neste momento,
a brusca debandada de teus olhos?
Uma boa semana.
Um beijo.

Manuel Veiga disse...

Minhas amigas e meus amigos:

reconheço que o poema se presta a alguns equívocos (funestos).

e agradecendo vossa preocupação, mais ou menos implícita, permito-me dizer, com um amável sorriso que "as notícias sobre a minha morte são manifestamente exageradas" (Mark Twain ?) ...

ainda que seja o próprio a dar tais notícias! rss

beijos e abraços.

Emília Pinto disse...

Claro que as" noticias sobre a tua morte são manifestamente exagerdas ", Manuel, pois fizeste deste tema macabro uma bela poesia e, sinceramente, de poético este tema não tem nada. Mas, poeticamente ou não, devemos falar dele sem medo, pois é certissimo que vamos para um outro lado ( não sei para onde ) e a única coisa que levamos é o resultado daquilo que fomos e demos enquanto por aqui andamos E o que deixamos, amigo? Isso depende...ou deixamos saudade e belas recordações naqueles com quem convivemos, ou então, um grande alivio por já não incomodarmos ninguém. Mas...tu, Manuel, poeta sendo, não morrerås, pois haverá sempre, pelo menos um " poema amarrotado " que te fará presente. E eu? O que deixarei? Somente o significado que tiver tido na vida daqueles a quem me dediquei. Não haverá " poemas "! Mas sabes, amigo, infelizmente não serão os poemas amarrotados que interessarão...o " espólio " procurado serå outro e, se não houver. ...morreremos definitivamente. Fui dura? Sim...mas, muitas vezes ė esta a realidade. Nāo pensemos nisso! Não saberemos de nada! Parabéns e, desculpo -te o tema porque és poeta. Beijinhos
Emilia

Suzete Brainer disse...

Poeta,

Lembro deste teu poema com uma bela dedicatória
ao teu filho. Percebo a mensagem no poema como
lembrete, que a principal herança na vida é o
sentir nobre do valor aos instantes mágicos:
"E o chocolate fervido e o vinho quente
A atapetarem o palato e as narinas."

A contemplação e o gesto do reconhecimento do belo da vida:
"Um ramo de lírios desbotados, acabados de colher"

Que o teu filho tenha absorvido esta capacidade do sentir-poeta
e assim, também será um poeta, mesmo que nunca escreva
um poema. A poesia na essência se encontra neste
olhar à vida com magia.

Aprecio imensamente este teu poema de louvação à vida,
admirável sempre a tua poesia.

Beijos

São disse...

Como seria bom toda a gente poder deixar um espólio assim...

Grande abraço

Lia Noronha disse...

Manuel:e assim o poeta desnuda-se diante da grandeza do poema...e de suas infinitas possibilidades.
Que bom vir te visitar...sempre enriquecedor.
Um abraço carinhoso.

ESCULTOR O TEMPO

Escultor de paisagens o tempo. E estes rostos, onde me revejo. E as mãos, arados. E os punhos. Em luta erguidos…  S ons de fábrica...