terça-feira, janeiro 01, 2019

A CARTA QUE NUNCA TE ESCREVEREI - Take 9


E Manuel Maria acorrentado aos remos de sua escrita e ao desígnio que adoptara, em sua teima, de erguer novo romance, não como alibi ou teste, pois nada tinha a provar, nem muito menos que justificar-se, mas, em qualquer caso, lhe permitisse reinventar-se, agora que dobrados os anos da juventude, sem angústias existenciais e estabilidade financeira, escasseavam os sonhos e projectos, para além do atelier de arquitectura, de que estava saturado e o enfastiava.

Acontece que nos caminhos que se abrem ou fecham aos homens, no devir do tempo e no roteiro dos passos, existe sempre um registo de vontade e uma vibração de liberdade, ténues que sejam e, então, por vezes, a ordem pré-estabelecida é subvertida e são os lances inesperados, mais que as condutas previsíveis, que traçam o destino e deixam marca de passagem pelo mundo. De tal sorte que, como ficou dito, Manuel Maria balançava-se entre o risco de enveredar pelos inóspitos caminhos da literatura e a administração de rotineira do gabinete de arquitectura que, com sucesso, desenvolvera, pactuando, tantas vezes, com as exigências dos “patos bravos” que lhe pagavam os projectos, pois bem cedo compreendera a arte da transigência, sem, contudo, nunca perder a dignidade, sabendo ele, pela experiência das coisas e anos de “metier” que a conjugação de Arquitectura e a Arte constitui momento raro com que volúveis circunstâncias e voláteis desígnios bafejam, de vez em quando, apenas alguns eleitos.

Vogava assim Manuel Maria neste cotejo, entre o apascentar descuidado dos dias, no usufruto de uma arquitectura estabelecida e algo chata e a sedução estimulante pela escrita, (afastada que fora a pulsão pelo cinema) a que o sucesso do último livro emprestava inebriante perfume e uma cálida embriaguez, que lhe instigavam uma acarinhada sensação de vivacidade e entusiasmo, que julgava perdidos para sempre.

Estava, pois, Manuel Maria decidido. Bem podia Flávia deixar-se embalar pelo sonho de heroína, que não seria ele a negar-lhe pretexto, ou ocasião de inscrever sua esvoaçante existência no corpo da narrativa, bem se sabendo, porém, serem, de momento, outras as dores da escrita, quer dizer, bem se sabendo que perante Manuel Maria, assumido autor narrativa, que se quer literária, se perfila uma outra questão, já não a de saber-se como se escreve um romance, pois que literatura não tem cânone, mas, procurar, nesse lugar indizível, onde a palavra emana e ganha forma e se tece o permanente jogo de aparências e onde o autor se desvenda, desamparado, ou apenas amparado pela frágil consistência de seus títeres, procurar saber – dizia-se – como, nesses lugares de mistério e rendição, se estabelece o reino da escrita e se constrói um personagem, ou se desenrola esse jogo da cabra cega, em que a vida se finge literatura e literatura se requer vida. Receia-se mesmo que a questão esteja mal formulada e que Manuel Maria, ele próprio, se interrogue, em suas lucubrações, donde, inesperadamente, salta, por vezes, a chama criativa, qual chispa de pederneira, se não seria mais produtivo (como diria, em seu jargão modernaço, o “semiótico”, em selecta tertúlia, se outro fora o tempo da escrita) procurar saber “como se constrói um homem”, quer dizer, como, no desígnio da escrita, se poderá deslindar, por entre o emaranhado de linhas e nos veios que tecem a vida de cada um, qual o roteiro, que caminhos ou descaminhos, que razões ou sonhos, que gestos ou que lances, que tibiezas ou que coragens, que ousadias, que gritos, que insubmissões, que generosidades ou que egoísmos, que suor ou que sangue, ou que lágrimas, ou que amores e desamores haverá que elegerem-se como matriz na “construção” do carácter de cada homem, cuja grandeza (ou miséria moral) se hão-de erguer no corpo consagrado da narrativa e projectarem-se, mediante o fragor da sua expressividade, num lugar-outro, onde a vida se faz Verbo e se iluminam o percurso dos homens e o devir de seus passos. E então, na alegria inaugural da escrita e na ousadia do gesto demiúrgico se poderão serenar as metafísicas dores da criação literária e, finalmente, sem rodeios, dizer-se ao que se vem, escrevendo, pois que a intrigante questão se Vida é Literatura, ou se Literatura é Vida constitui, em verdade, o verso e o reverso do mesmo enigma que os deuses inventaram para seu desfastio, mas que nada acrescenta ao prazer e a arte de (bem) escrever.

Assim concluía Manuel Maria suas judiciosas considerações e suas íntimas lucubrações sobre o fértil filão, explorado nos mais diversos tons e feitios, das dores da escrita e do lugar da Literatura, porém, ainda acorrentado à sua sujeição, como condenado se acorrenta às galés e que, no ritmo dos remos e no murmúrio das ondas, se espraia, em lenitivo de escravidão, procurando na entrega e no fragor da luta corpo a corpo com o Destino, redimir-se da ousadia de pretender raptar aos deuses o fogo sagrado, bem sabendo da fragilidade de suas asas de cera e do risco iminente de derreterem.

E, no entanto, era libertação pela escrita que Manuel Maria almejava. Então, inesperadamente, num momento de clara lucidez, acordou de seu torpor (ou será tremor?) “metafísico” e dá-se conta que se algo vale a pena trazer ao âmago da Palavra será a Vida sem adjectivo e sem preocupação de erguer-se como literatura, tal como decorre, límpida, do fluxo dos acontecimentos sociais, sobretudo, quando, flor de cristal, condensa todas as energias de um Povo em ebulição e explode generosa e límpida no coração e na vontade dos homens.

E, irresistivelmente, a vaguear no tempo e no espaço da memória, qual meteorito ainda quente ou fragmento perdido depois do colapso de uma super nova, Manuel Maria, resolvidas que foram todas as dúvidas e arrumada, no baú das inutilidades, a questão de saber-se como se constrói um personagem, aportou, novamente, nos tempos da Revolução de Abril e no envolvimento pessoal no fluxo revolucionário.

José Augusto Esquerdo, em grandiosa jornada de participação popular, acabara de ser designado Presidente da Comissão Administrativa da Câmara Municipal. E Manuel Maria acreditava, genuinamente, numa Arquitectura para o Povo!  

Manuel Veiga

11 comentários:

_ Gil António _ disse...

Olá:- Acompanhando a Estória.
.
Feliz Ano de 2019.

*** Refúgio do sonho em amor "envenenado" ***

GS disse...

Bom Ano!
beijo

Teresa Almeida disse...

Não perderei a vibração das tuas cartas, caro amigo Manuel Veiga.
Quando a trama se matura em experiências de vida, até a ficção ganha foros de identidade.
É firme e entusiasmante teu primeiro passo literário em 2019.

Beijos.

Suzete Brainer disse...

Manuel, meu amigo

Fiquei totalmente fascinada com este Take 9, um
texto brilhante abordando a arte de escrever,
para quem escreve, é quase o ar que se respira
ou o meio de se olhar no espelho da alma.
Infelizmente, na maioria das vezes a realidade
no seu concreto frio, pode sufocar ou esmagar
qualquer ato criativo-poético num voo de um sonho
e a literatura salva estes sonhos para serem lidos.
"se Vida é Literatura, ou se Literatura é Vida constitui,
em verdade, o verso e o reverso do mesmo enigma que os
deuses inventaram para seu desfastio, mas que nada
acrescenta ao prazer e a arte de (bem) escrever."

Muito grata pelo momento desta leitura aqui, vou
carimbando o meu passaporte desta viagem do seu
livro. Aguardo a próxima viagem, amigo!
beijo.

Graça Pires disse...

Andas a escrever outro romance, meu Amigo. Pelo que li, será muito do meu agrado…
Que o ano de 2019 te traga tudo de bom, e muita saúde, muita paz e muito amor e as palavras intactas e claras...
Um beijo.

Agostinho disse...

Ora viva, Poeta-Romancista.
Não te perdes em coisas menores de diarista por encomenda. Tem sumo de onde há-de, na fermentação de dias de longas noites, fervilhar nas veias o que escreves e deixas por aqui para embriagar os do vício.
Tens no estilo, um rendilhar de bilros, que requer olho atento ao desenrolar do fio, o que está dobrado passa nos dedos e aparece tecido como se estivesses a fazer uma ilusão; a cada lançada um ponto e desse ponto partes para nova lançada numa adjectivação sem limite.
Parece-me haver marca registada na tua mão, melhor dizendo, nunca li qualquer autor no teu tom, na tua tessitura.
Vai em frente. Espero pelo novo take do filme.
Por hábito, não revejo os comentários que faço com gosto e de forma espontânea. Poderá haver asneirada, falta de pontuação... Dará para perceber com as correcções que mentalmente farás.
Abraço.

Marta Vinhais disse...

Há sempre cartas que se escrevem apenas no coração, na alma...
Adorei...
Bom Ano 2019.
Beijos e abraços
Marta

São disse...

Tanta coisa se acreditou nesse sonho acordado que foi o 25 de Abril 1974, meu amigo....

Abraço recheado com o voto de que seja feliz o teu 2019 !

Jaime Portela disse...

Uma narrativa brilhante.
Que me fez lembrar, na arquitectura da construção, José Saramago e Vitorino Nemésio.
Caro Veiga, um bom fim de semana.
E Feliz 2019.
Abraço.

José Carlos Sant Anna disse...

Caro amigo,

Para imitar Manuel Maria, refiz "o curso e o percurso" da sua narrativa, dos takes mostrados. Pontas atadas, os encaixes são perfeitos e gosto muito da "teoria"... das escrevivências tecidas... O metteur en scène é muito bom.
Parabéns, meu caro amigo! Este "filme" promete!
Um abraço,

Olinda Melo disse...

"As dores da escrita", uma expressão feliz.
Um personagem que é autor e que se debate no processo criativo, no sentido de descobrir a melhor forma de compor um personagem. Excelente visão a do Autor ao delegar esse trabalho a Manuel Maria, ficando a observar as várias linhas dessa costura e os caminhos percorridos. Ou talvez não. Refaco a ideia: Penso que ele, o Autor, tomou, decididamente, parte activa no urdimento dessa trama, deixando-lhe a sua marca indelével e inconfundível. Como sempre. Muito obrigada, caro Manuel, é sempre um prazer lê-lo.

Pena não ter lido os outros "takes", mas logo que possa remediarei isso.

Abraço.

Olinda

ESCULTOR O TEMPO

Escultor de paisagens o tempo. E estes rostos, onde me revejo. E as mãos, arados. E os punhos. Em luta erguidos…  S ons de fábrica...