Debatia-se portanto o Zé Canhoto com inquietações inesperadas
que, dia para dia, se avolumavam em dúvidas e consumiam suas certezas simples
de Deus no Céu e os homens na Terra,
cada um conforme a vontade divina, uns, poderosos, a mandar e os restantes a
ajeitarem-se ao mando, quanto podem, pois se Deus os fizesse a todos ricos e
poderosos e os pusesse todos a mandar, ninguém se iria entender, nem haveria
quem trabalhasse a terra, que ficava, assim, mato espesso, sem nada produzir,
tudo ao abandono, como estas terras estavam e que ele, com seus braços e a
ajuda da mulher, que recebera, por vontade de seu senhor e amo, Federico Amásio
Jacinto Silvestre Campelo do Rego, com as terras improdutivas que agora ambos granjeiam,
ela, já se sabe, como mulher, mas com energia que muitos homens não têm e, por
ela, dá graças a Deus, que a colocou no seu caminho, mãe de seus filhos,
asseada e honesta como raramente se encontra.
É verdade que, por vezes, à mulher lhe dão uns abatimentos, uns estremecimentos de alma que ele não entende,
coisa ruim que amofina e que ela não confessa e, nessas alturas, vem ao de cima
o seu génio ruim, que a faz azeda e o acicata contra o seu senhor e amo és um banana e um frouxo, o teu patrão abusa de ti e tu não és capaz de te impor, mas não há bela sem senão, bem
se sabe, e essas horas de mau viver são logo compensadas por qualidades que não
vêm ao caso, que a intimidade das pessoas é isso mesmo, coisa íntima que nada
importa a escrevente abelhudo, nem a escrita
esfarrapada.
E, quando menos se espera, basta
o quase-nada, um simples adejar do acaso inscrito na sua vida e o tropel de
pensamentos que ultimamente o atormentam vêm novamente à superfície e Zé Canhoto prossegue então no desfilar
de cuidados, que o inquietam e abanam as suas certezas e, contrariado embora, é
obrigado a reconhecer que a mulher, por vezes, tem razão no que se refere ao
respeito, quase se diria devoção, por seu amo e senhor, pois, na realidade, como
pode um homem rico e poderoso faltar ao prometido e jurado, num momento de
perigo, como em certa ocasião, na Feira de Trancoso e não interessa nada estar aqui
a desfiar todo rosário de outros serviços e favores que, a seu amo e senhor tem
prestado, sem nunca ter mostrado má vontade, como aconteceu nessa tal ocasião,
em Trancoso – já lá vão uns anos! - em que apenas os dois, amo e criado, irmanados
na mesma fúria contra uma seita de ciganos, com eles correram, por entre o
estardalhaço da feira em fanicos e, se não fora o seu desembaraço, dele Zé Canhoto que, no último momento, segurou a mão do cobarde que se aprontava para disparar,
certeiro, na cabeça do seu amo, tiro que lhe seria fatal e o teria despachado
desta vida para melhor, não fora pois a sua prontidão de, num “de repente”, ter segurado o braço do
cigano e a bala, destinada à cabeça de seu senhor, Federico Amásio, foi desviada
e quem levou o tiro foi ele, Zé Canhoto,
e ainda hoje tem a cicatriz no ombro, como pode, pois, um homem rico e
poderoso, a quem outro, seu criado, salvou a vida, esquecer-se das promessas
feitas e a soldada prometida, não
como paga, que dinheiro algum paga a vida de um homem, ainda para mais rico e
poderoso, mas como prova de reconhecimento e sinal de gratidão, pois, em
verdade, homem que salva a vida de outro homem, fica, o da vida salva,
tributário de seu salvador e as duas vidas ungidas uma na outra, como pode um
homem, assim, digam-me, arrancado às garras da morte, esquecer as promessas feitas,
com a sombra da ceifeira ainda a pairar,
para depois se esquecer e regatear a
soldada prometida e jurada, ficando a soldada, de ano para ano, cada vez
mais diminuída até deixar de ser paga?
E, como pode um homem, cego que seja,
confiar e guiar-se por outro homem, assim, que não cumpre suas promessas, mas que,
por uma qualquer força que não entende, venera e tem como farol a iluminar a
sua vida, como um Deus fora, e perante o qual molda seu destino, sem outra
vontade que não seja a vontade de quem nele manda e – suprema afronta da vida -
um dia descobre que sua devoção e a sua cegueira são fruto da sua própria
mansidão e que a sua servidão é pior que burro de carga, pois que a si próprio
coloca a albarda para o outro carregar e montar?
Assim Zé Canhoto, dia para dia, estrebuchando no mais íntimo de seu ser e
esfregando os olhos, espantados e incrédulos, ante claridade das revelações que,
no seu espírito iam ocorrendo, e que mais não faziam que dar razão à mulher que
o acicatava, estás muito enganado, Zé, vê
lá se acordas, o Amásio não é flor que se cheire! E os favores que lhe deves do
teu corpo te saem!
E, bem se sabe, quando um homem se põe a pensar nunca se
percebe onde os pensamentos nos levam, de tal sorte que, em seus solilóquios,
alargava Zé Canhoto, sem se dar conta, o olhar às coisas mais comezinhas e
normais, que por tão naturais nem por elas damos, na aparência sempre iguais e tão
regulares como as estações do ano, Primavera, Verão, Outono e Inverno, mas que,
em verdade, não passam de urdiduras em que se prende a vida de um homem, sem
forma de lhe escapar, como esta sua prisão à aridez daquelas terras, qual besta
à sua canga, meeiro de seu amo e
senhor, Federico Amásio Jacinto Silvestre Campelo do Rego, que sempre recebe
metade da colheita, corra o ano como correr, quer dizer, seja a colheita pródiga
ou escassa, sem nada, seu amo fazer, com seu trabalho, para arrancar daquelas terras
áridas, qualquer ganho, pois que nessa desigual partilha de meeiro, senhor e servo, ambos recebem
por igual, mas apenas um paga, com o suor do seu rosto, os frutos da terra,
pelo que, em verdade, contas que parecem certas, como dois mais dois serem
quatro, são contas erradas na contabilidade do mérito dos homens, pois que seu
amo e senhor, sem nada de útil produzir, recebe tanto quanto ele próprio, Zé Canhoto, que se esfalfa a trabalhar
para arrancar de terra bravia os bens que depois divide, em partes iguais, com
quem nada faz, a não ser o desfastio de ser rico e poderoso.
A pensar na vida, Zé Canhoto sentia uma amargura funda,
como o Céu desabasse e suportasse todo o peso do mundo e, por vezes, surpreendia-se
a desejar, ardentemente, o conforto das suas pequenas certezas e ter ficado,
para sempre, no reino das suas parcas necessidades, ter telhado para se
abrigar, pão, negro que fosse, para matar a fome e dos seus e a protecção de
seu amo e senhor, rico e poderoso, que ele melhor que ninguém conhece as
necessidades de cada um daqueles que trabalham nos seus vastas terras e o que
convém a cada um deles, mas então, do fundo do seu ser, com uma força
inesperada a que não pode resistir, a tibieza transmutava-se em revolta e um
sentir novo, não sabe se de dor ou de raiva, contra amo e senhor, a quem serve,
com devoção e nas mãos de quem depõe a sua vida e a sua morte, se tanto for
necessário para melhor o servir e, então, uma indignação funda toma conta das
suas emoções e, com um fervor inesperado, se surpreende a afirmar para seus botões
que ninguém deveria mandar na vida de outros homens, por ricos e poderosos que
fossem e a dar-se conta de que nunca mais será o mesmo homem, jurando a si próprio
que jamais irá servir seu amo daquela forma de devoção submissa.
Manuel Veiga
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