quinta-feira, julho 04, 2019

A CARTA QUE NUNCA TE ESCREVEREI - Take 17



Debatia-se portanto o Zé Canhoto com inquietações inesperadas que, dia para dia, se avolumavam em dúvidas e consumiam suas certezas simples de Deus no Céu e os homens na Terra, cada um conforme a vontade divina, uns, poderosos, a mandar e os restantes a ajeitarem-se ao mando, quanto podem, pois se Deus os fizesse a todos ricos e poderosos e os pusesse todos a mandar, ninguém se iria entender, nem haveria quem trabalhasse a terra, que ficava, assim, mato espesso, sem nada produzir, tudo ao abandono, como estas terras estavam e que ele, com seus braços e a ajuda da mulher, que recebera, por vontade de seu senhor e amo, Federico Amásio Jacinto Silvestre Campelo do Rego, com as terras improdutivas que agora ambos granjeiam, ela, já se sabe, como mulher, mas com energia que muitos homens não têm e, por ela, dá graças a Deus, que a colocou no seu caminho, mãe de seus filhos, asseada e honesta como raramente se encontra.

É verdade que, por vezes, à mulher lhe dão uns abatimentos, uns estremecimentos de alma que ele não entende, coisa ruim que amofina e que ela não confessa e, nessas alturas, vem ao de cima o seu génio ruim, que a faz azeda e o acicata contra o seu senhor e amo és um banana e um frouxo, o teu patrão abusa de ti e tu não és capaz de te impor, mas não há bela sem senão, bem se sabe, e essas horas de mau viver são logo compensadas por qualidades que não vêm ao caso, que a intimidade das pessoas é isso mesmo, coisa íntima que nada importa a escrevente abelhudo, nem a escrita esfarrapada.

E, quando menos se espera, basta o quase-nada, um simples adejar do acaso inscrito na sua vida e o tropel de pensamentos que ultimamente o atormentam vêm novamente à superfície e Zé Canhoto prossegue então no desfilar de cuidados, que o inquietam e abanam as suas certezas e, contrariado embora, é obrigado a reconhecer que a mulher, por vezes, tem razão no que se refere ao respeito, quase se diria devoção, por seu amo e senhor, pois, na realidade, como pode um homem rico e poderoso faltar ao prometido e jurado, num momento de perigo, como em certa ocasião, na Feira de Trancoso e não interessa nada estar aqui a desfiar todo rosário de outros serviços e favores que, a seu amo e senhor tem prestado, sem nunca ter mostrado má vontade, como aconteceu nessa tal ocasião, em Trancoso – já lá vão uns anos! - em que apenas os dois, amo e criado, irmanados na mesma fúria contra uma seita de ciganos, com eles correram, por entre o estardalhaço da feira em fanicos e, se não fora o seu desembaraço, dele Zé Canhoto que, no último momento, segurou a mão do cobarde que se aprontava para disparar, certeiro, na cabeça do seu amo, tiro que lhe seria fatal e o teria despachado desta vida para melhor, não fora pois a sua prontidão de, num “de repente”, ter segurado o braço do cigano e a bala, destinada à cabeça de seu senhor, Federico Amásio, foi desviada e quem levou o tiro foi ele, Zé Canhoto, e ainda hoje tem a cicatriz no ombro, como pode, pois, um homem rico e poderoso, a quem outro, seu criado, salvou a vida, esquecer-se das promessas feitas e a soldada prometida, não como paga, que dinheiro algum paga a vida de um homem, ainda para mais rico e poderoso, mas como prova de reconhecimento e sinal de gratidão, pois, em verdade, homem que salva a vida de outro homem, fica, o da vida salva, tributário de seu salvador e as duas vidas ungidas uma na outra, como pode um homem, assim, digam-me, arrancado às garras da morte, esquecer as promessas feitas, com a sombra da ceifeira ainda a pairar, para depois se esquecer e regatear a soldada prometida e jurada, ficando a soldada, de ano para ano, cada vez mais diminuída até deixar de ser paga?

E, como pode um homem, cego que seja, confiar e guiar-se por outro homem, assim, que não cumpre suas promessas, mas que, por uma qualquer força que não entende, venera e tem como farol a iluminar a sua vida, como um Deus fora, e perante o qual molda seu destino, sem outra vontade que não seja a vontade de quem nele manda e – suprema afronta da vida - um dia descobre que sua devoção e a sua cegueira são fruto da sua própria mansidão e que a sua servidão é pior que burro de carga, pois que a si próprio coloca a albarda para o outro carregar e montar?

Assim Zé Canhoto, dia para dia, estrebuchando no mais íntimo de seu ser e esfregando os olhos, espantados e incrédulos, ante claridade das revelações que, no seu espírito iam ocorrendo, e que mais não faziam que dar razão à mulher que o acicatava, estás muito enganado, Zé, vê lá se acordas, o Amásio não é flor que se cheire! E os favores que lhe deves do teu corpo te saem!

E, bem se sabe, quando um homem se põe a pensar nunca se percebe onde os pensamentos nos levam, de tal sorte que, em seus solilóquios, alargava Zé Canhoto, sem se dar conta, o olhar às coisas mais comezinhas e normais, que por tão naturais nem por elas damos, na aparência sempre iguais e tão regulares como as estações do ano, Primavera, Verão, Outono e Inverno, mas que, em verdade, não passam de urdiduras em que se prende a vida de um homem, sem forma de lhe escapar, como esta sua prisão à aridez daquelas terras, qual besta à sua canga, meeiro de seu amo e senhor, Federico Amásio Jacinto Silvestre Campelo do Rego, que sempre recebe metade da colheita, corra o ano como correr, quer dizer, seja a colheita pródiga ou escassa, sem nada, seu amo fazer, com seu trabalho, para arrancar daquelas terras áridas, qualquer ganho, pois que nessa desigual partilha de meeiro, senhor e servo, ambos recebem por igual, mas apenas um paga, com o suor do seu rosto, os frutos da terra, pelo que, em verdade, contas que parecem certas, como dois mais dois serem quatro, são contas erradas na contabilidade do mérito dos homens, pois que seu amo e senhor, sem nada de útil produzir, recebe tanto quanto ele próprio, Zé Canhoto, que se esfalfa a trabalhar para arrancar de terra bravia os bens que depois divide, em partes iguais, com quem nada faz, a não ser o desfastio de ser rico e poderoso.

A pensar na vida, Zé Canhoto sentia uma amargura funda, como o Céu desabasse e suportasse todo o peso do mundo e, por vezes, surpreendia-se a desejar, ardentemente, o conforto das suas pequenas certezas e ter ficado, para sempre, no reino das suas parcas necessidades, ter telhado para se abrigar, pão, negro que fosse, para matar a fome e dos seus e a protecção de seu amo e senhor, rico e poderoso, que ele melhor que ninguém conhece as necessidades de cada um daqueles que trabalham nos seus vastas terras e o que convém a cada um deles, mas então, do fundo do seu ser, com uma força inesperada a que não pode resistir, a tibieza transmutava-se em revolta e um sentir novo, não sabe se de dor ou de raiva, contra amo e senhor, a quem serve, com devoção e nas mãos de quem depõe a sua vida e a sua morte, se tanto for necessário para melhor o servir e, então, uma indignação funda toma conta das suas emoções e, com um fervor inesperado, se surpreende a afirmar para seus botões que ninguém deveria mandar na vida de outros homens, por ricos e poderosos que fossem e a dar-se conta de que nunca mais será o mesmo homem, jurando a si próprio que jamais irá servir seu amo daquela forma de devoção submissa.

Manuel Veiga

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