quinta-feira, julho 18, 2019

A CARTA QUE NUNCA TE ESCREVEREI - Take 18


É pois da ordem das coisas narradas que se persigam os fios soltos desta prosa que, em passo mal calculado, se pretende literária e que, de Manuel Maria se dê notícia, ansioso como era e o deixamos no Salão Nobre dos Paços do Concelho, naquela emergência de tempos desatados, também sala de espera, o dito Manuel Maria longe ainda das suas incursões literárias, que tempos mais tarde iriam ser fechamento e pedra nodal do seu projecto maior, ou seja o projecto da sua própria vida, mas então apenas jovem arquitecto a apostar todos seus sonhos e toda a sua energia e conhecimentos na realização de uma Arquitectura para o Povo, em que genuinamente acreditava e, por isso, ali estava, naquele amplo salão, ladeado por retractos e símbolos da Primeira República, aguardado a entrevista, com José Augusto Esquerdino, recém-eleito Presidente da Comissão Administrativa, em vista acertar os pormenores da sua colaboração com aquele grande Município da Área Metropolitana de Lisboa.

A decisão política quanto à oportunidade dessa colaboração, fora, entretanto, tomada em instância partidária, fundamentada na convicção de que a importância desse Município de grandes tradições democráticas e de luta contra o fascismo, que continuava a crescer desordenadamente e atrair pessoas de todas as regiões do País, e que, portanto, requeria, medidas excepcionais e apoios excepcionais, em vista, na senda dos ideais da Revolução, estabelecer naquele Município às portas de Lisboa um modelo de desenvolvimento económico-social, assente no planeamento estratégico e na participação popular, ao mesmo tempo que, gradualmente, se resolviam as graves carências habitacionais do Concelho, cujo território era preenchido por densas áreas de barracas e construções clandestinas e, assim, mediante a participação directa das populações na resolução dos seus problemas concretos se daria expressão às ideias e teorias sobre a uma Arquitectura para o Povo, tão caras ao jovem arquitecto e que tão produtivas poderiam ser, especialmente, naquele território municipal, densamente habitado e cuja configuração geográfico-política, se revelava de elevada importância, no evoluir dos acontecimentos políticos e, até mesmo, na própria evolução do processo revolucionário.

Foi, assim, sem surpresa, embora com retraída prevenção, que Manuel Maria se sentiu envolvido pelo acolhimento caloroso e pelo sorriso rasgado de José Augusto Esquerdino, que, acentuando o sorriso, colocava na voz uma acesa ironia, então, meu rapaz, sempre te conseguiste safar do cavalo da GNR? Sangravas que nem um Cristo!... Para baptismo de fogo, não estavas nada mal …

Manuel Maria não conhecia, ou julgava não conhecer pessoalmente, José Augusto Esquerdino. Mas sorriso irónico e amável e trocista, sobretudo, a alusão à feroz repressão policial dos protestos, na Baixa de Lisboa, escassos tempos antes do “25 Abril” e a memória daquele vendaval de pancadaria em pleno Rossio, que ninguém poupou, nem manifestantes, nem transeuntes, nem novos, nem velhos, nem turistas, nem lojistas, nem caixeiros, com o nosso herói ocasional a sangrar e a correr, Rua do Carmo acima, quase filado pelas patas do cavalo e pelo bastão do “gnr” não fora o providencial puxão que o arrastou para dentro de um tapume de umas obras, seguindo cavalo e o bastão policial no alcance de outros manifestantes, menos afortunados, ecoou como um clarim no cérebro de Manuel Maria, até aí todo ele focado no objectivo do encontro, ou seja, procurando os melhores argumentos sobre as suas teses de Uma Arquitectura para o Povo, que melhor pudessem convencer um leigo na matéria, como presumia ser o Presidente da Comissão Administrativa e, agora, ele, Manuel Maria, novel arquitecto, com ideias firmes sobre a sua profissão, a ficar cada vez mais perplexo e intrigado, ante a visível manifestação de gozo do seu interlocutor, que parecia brincar ao gato e ao rato, com a sua perplexidade, pois que, mal refeito ainda do primeiro embate, já José Augusto Esquerdino disparava, imparável tens tido notícias de Terras do Demo? – e, num olhar ausente e neutro, agora encolhendo o sorriso – nunca mais lá voltei desde que dali saí … 

E antes poder esboçar qualquer um gesto ou articular palavra, ou poder demonstrar alguma expressão de júbilo, ou de surpresa, ou poder esboçar qualquer agradecimento, certo que estava agora na posse da identidade do seu salvador, naquela tarde inesquecível, de correrias e protestos e de descabeladas pancadarias policiais, a que ficara a dever uns hematomas na cabeça e o sangue a escorrer pela face, factos esses tão vivos que selaram para sempre a solidez das suas convicções políticas, antes mesmo de Manuel Maria poder esfregar os olhos e dominar a surpresa, ficava de novo submerso pelo ímpeto abrasivo do Esquerdino que, sem se deter em considerandos ou estados de espírito, por legítimos que fossem, se levantou da secretária, donde ainda não saíra e, mudando de rumo à conversa, arrasta consigo o constrangido Manuel Maria – um dia destes falaremos desse e de outros assuntos, hoje temos mais que fazer.

Atravessaram, num instante, a sala do Gabinete de Apoio, não sem que antes, José Augusto Esquerdino tivesse que assinar, depois de um olhar de relance, uns papéis, que a camarada responsável lhe estendeu como urgentes e percorreram, assim apressados, a escadaria interior e o átrio de entrada do edifício, por entre apertos de mão e amistosos acenos dos munícipes, que se aglomeravam, junto aos guichets de atendimento dos serviços municipais e, alcançaram a rua, onde, em frente à escadaria exterior, permanentemente, aguardava uma viatura ao serviço da Presidência do Município.

Dispensou o motorista e tomou o comando da viatura – sabes conduzir, rapaz? Vais precisar carta de condução! A tua primeira tarefa é tirares a carta – intimou ele, José Augusto Esquerdino, ora arvorado em Presidente da Comissão Administrativa, perante a negativa do Manuel Maria. E assim arrancaram velozes – que o seu problema maior era a falta de tempo – o motorista no banco de trás do Jeep, Manuel Maria ao lado do improvisado condutor, permanecia perplexo e mudo, afundado nos seus próprios pensamentos, ante a fogosa loquacidade do Camarada Presidente, que enumerava projectos e urgências pelos locais onde passavam, ali uma escola, além uma creche, acolá um centro da 3ª Idade, mais além um polidesportivo, um parque, uma estrada a precisar obras, um edifício histórico a necessitar recuperação, ali o saneamento, acolá a electricidade e fornecimento de água, mais além uma colectividade centenária, uma biblioteca ou uma banda música, aqui uma empresa intervencionada, que o patrão raspou-se para o Brasil deixando os “calotes” para os trabalhadores pagarem, mais além uma comissão de saúde a solicitar apoio para uma unidade de saúde familiar, por todo lado, reivindicações e necessidades sociais tanto tempo abafadas e que, com a Revolução, explodiam, em urgência, a que era necessário acudir, qual sangria desatada.

Manuel Maria desdobra-se em atenção, procurando, por cima das palavras do companheiro, sacudir seus próprios pensamentos, mas a verdade é que eram os pensamentos e não as palavras que lhe tomavam o espírito e, sem se dar conta, as mãos de José Augusto Esquerdino, enormes, ora filadas sobre o volante da viatura, como quem esgana inimigo imaginário, ora leves, como um bailado, acrescentando assertividade e eloquência ao fervor da descrição das expectantes obras, eram pois essas mãos, que o salvaram, numa tarde quente de repressão e luta, tão grandes mãos como aquelas, apenas outras vira, grandes e enormes que ocupavam agora todo o espaço de consciência, como se Manuel Maria fosse possesso de assombração ou de iluminação divina e apenas aquelas mãos fossem e que, criança ainda outras mãos iguais, enormes, que na fantasmagoria da distância, na mente da criança, que então era, iam da Terra aos Céus, alongando-se pelo espaço e homem rodeado de mulher e filhos, crianças como ele, maltrapilhos e pés descalços sobre a geada e o homem erguendo as grandes mãos em súplica, mãos de trabalho e de afagos, agora erguendo-se até ao Céu pedido perdão e o povo a sair da missa, impotente, a baixar o olhar à passagem, e o homem, cá fora ajoelhado, com mulher e filhos descalços e maltrapilhos, pedindo perdão a outro homem, à cavalo, impante de soberba e prepotência.

Tão forte e tão real a imagem que Manuel Maria, num gesto reflexo, escondeu o rosto no braço, como outrora o escondera no afago da mulher que o levava pela mão.

Não passou despercebida a José Augusto Esquerdino a perturbação de Manuel Maria que o inquiriu com olhar penetrante, como se lhe bebesse a alma e este, num sorriso rasgado, lhe devolveu as palavras com que momentos antes o brindara um dia destes falaremos deste e de outros assuntos, hoje temos mais que fazer. Prazenteiro e sorridente o José Augusto Esquerdino, com uma vigorosa palmada nas costas do atordoado Manuel Maria ora assim é que falar …

E assim prosseguiram para a reunião com a população, que os esperava …


Manuel Veiga




  

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