É pois da ordem das coisas
narradas que se persigam os fios soltos desta prosa que, em passo mal calculado,
se pretende literária e que, de Manuel Maria se dê notícia, ansioso como era e
o deixamos no Salão Nobre dos Paços do Concelho, naquela emergência de tempos desatados,
também sala de espera, o dito Manuel Maria longe ainda das suas incursões
literárias, que tempos mais tarde iriam ser fechamento e pedra nodal do seu
projecto maior, ou seja o projecto da sua própria vida, mas então apenas jovem
arquitecto a apostar todos seus sonhos e toda a sua energia e conhecimentos na
realização de uma Arquitectura para o
Povo, em que genuinamente acreditava e, por isso, ali estava, naquele amplo
salão, ladeado por retractos e símbolos da Primeira República, aguardado a
entrevista, com José Augusto Esquerdino, recém-eleito Presidente da Comissão
Administrativa, em vista acertar os pormenores da sua colaboração com aquele
grande Município da Área Metropolitana de Lisboa.
A decisão política quanto à
oportunidade dessa colaboração, fora, entretanto, tomada em instância partidária,
fundamentada na convicção de que a importância desse Município de grandes
tradições democráticas e de luta contra o fascismo, que continuava a crescer
desordenadamente e atrair pessoas de todas as regiões do País, e que, portanto,
requeria, medidas excepcionais e apoios excepcionais, em vista, na senda dos
ideais da Revolução, estabelecer naquele Município às portas de Lisboa um
modelo de desenvolvimento económico-social, assente no planeamento estratégico
e na participação popular, ao mesmo tempo que, gradualmente, se resolviam as
graves carências habitacionais do Concelho, cujo território era preenchido por densas áreas de barracas e construções clandestinas e,
assim, mediante a participação directa das populações na resolução dos seus
problemas concretos se daria expressão às ideias e teorias sobre a uma Arquitectura para o Povo, tão caras ao jovem arquitecto e que tão
produtivas poderiam ser, especialmente, naquele território municipal, densamente habitado
e cuja configuração geográfico-política, se revelava de elevada importância, no
evoluir dos acontecimentos políticos e, até mesmo, na própria evolução do
processo revolucionário.
Foi, assim, sem surpresa, embora
com retraída prevenção, que Manuel Maria se sentiu envolvido pelo acolhimento
caloroso e pelo sorriso rasgado de José Augusto Esquerdino, que, acentuando o
sorriso, colocava na voz uma acesa ironia, então,
meu rapaz, sempre te conseguiste safar do cavalo da GNR? Sangravas que nem um
Cristo!... Para baptismo de fogo, não estavas nada mal …
Manuel Maria não conhecia, ou
julgava não conhecer pessoalmente, José Augusto Esquerdino. Mas sorriso irónico
e amável e trocista, sobretudo, a alusão à feroz repressão policial dos
protestos, na Baixa de Lisboa, escassos tempos antes do “25 Abril” e a memória
daquele vendaval de pancadaria em pleno Rossio, que ninguém poupou, nem
manifestantes, nem transeuntes, nem novos, nem velhos, nem turistas, nem
lojistas, nem caixeiros, com o nosso herói ocasional a sangrar e a correr, Rua
do Carmo acima, quase filado pelas patas do cavalo e pelo bastão do “gnr” não
fora o providencial puxão que o arrastou para dentro de um tapume de umas obras,
seguindo cavalo e o bastão policial no alcance de outros manifestantes, menos
afortunados, ecoou como um clarim no cérebro de Manuel Maria, até aí todo ele
focado no objectivo do encontro, ou seja, procurando os melhores argumentos sobre
as suas teses de Uma Arquitectura para o
Povo, que melhor pudessem convencer um leigo na matéria, como presumia ser
o Presidente da Comissão Administrativa e, agora, ele, Manuel Maria, novel
arquitecto, com ideias firmes sobre a sua profissão, a ficar cada vez mais perplexo
e intrigado, ante a visível manifestação de gozo do seu interlocutor, que
parecia brincar ao gato e ao rato, com
a sua perplexidade, pois que, mal refeito ainda do primeiro embate, já José
Augusto Esquerdino disparava, imparável tens
tido notícias de Terras do Demo? – e, num olhar ausente e neutro, agora
encolhendo o sorriso – nunca mais lá
voltei desde que dali saí …
E antes poder esboçar qualquer um
gesto ou articular palavra, ou poder demonstrar alguma expressão de júbilo, ou de
surpresa, ou poder esboçar qualquer agradecimento, certo que estava agora na
posse da identidade do seu salvador, naquela tarde inesquecível, de correrias e
protestos e de descabeladas pancadarias policiais, a que ficara a dever uns
hematomas na cabeça e o sangue a escorrer pela face, factos esses tão vivos que
selaram para sempre a solidez das suas convicções políticas, antes mesmo de Manuel
Maria poder esfregar os olhos e dominar a surpresa, ficava de novo submerso
pelo ímpeto abrasivo do Esquerdino que, sem se deter em considerandos ou
estados de espírito, por legítimos que fossem, se levantou da secretária, donde
ainda não saíra e, mudando de rumo à conversa, arrasta consigo o constrangido
Manuel Maria – um dia destes falaremos
desse e de outros assuntos, hoje temos mais que fazer.
Atravessaram, num instante, a sala
do Gabinete de Apoio, não sem que antes, José Augusto Esquerdino tivesse que
assinar, depois de um olhar de relance, uns papéis, que a camarada responsável
lhe estendeu como urgentes e percorreram, assim apressados, a escadaria
interior e o átrio de entrada do edifício, por entre apertos de mão e amistosos
acenos dos munícipes, que se aglomeravam, junto aos guichets de atendimento dos serviços municipais e, alcançaram a
rua, onde, em frente à escadaria exterior, permanentemente, aguardava uma
viatura ao serviço da Presidência do Município.
Dispensou o motorista e tomou o
comando da viatura – sabes conduzir,
rapaz? Vais precisar carta de condução! A tua primeira tarefa é tirares a carta
– intimou ele, José Augusto Esquerdino, ora arvorado em Presidente da
Comissão Administrativa, perante a negativa do Manuel Maria. E assim arrancaram
velozes – que o seu problema maior era a
falta de tempo – o motorista no banco de trás do Jeep, Manuel Maria ao lado do improvisado condutor, permanecia
perplexo e mudo, afundado nos seus próprios pensamentos, ante a fogosa
loquacidade do Camarada Presidente, que enumerava projectos e urgências pelos
locais onde passavam, ali uma escola,
além uma creche, acolá um centro da 3ª Idade, mais além um polidesportivo, um
parque, uma estrada a precisar obras, um edifício histórico a necessitar
recuperação, ali o saneamento, acolá a electricidade e fornecimento de água,
mais além uma colectividade centenária, uma biblioteca ou uma banda música,
aqui uma empresa intervencionada, que o patrão raspou-se para o Brasil deixando
os “calotes” para os trabalhadores pagarem, mais além uma comissão de saúde a
solicitar apoio para uma unidade de saúde familiar, por todo lado, reivindicações
e necessidades sociais tanto tempo abafadas e que, com a Revolução, explodiam, em
urgência, a que era necessário acudir, qual sangria desatada.
Manuel Maria desdobra-se em
atenção, procurando, por cima das palavras do companheiro, sacudir seus próprios
pensamentos, mas a verdade é que eram os pensamentos e não as palavras que lhe
tomavam o espírito e, sem se dar conta, as mãos de José Augusto Esquerdino, enormes,
ora filadas sobre o volante da viatura, como quem esgana inimigo imaginário,
ora leves, como um bailado, acrescentando assertividade e eloquência ao fervor
da descrição das expectantes obras, eram pois essas mãos, que o salvaram, numa tarde
quente de repressão e luta, tão grandes mãos como aquelas, apenas outras vira,
grandes e enormes que ocupavam agora todo o espaço de consciência, como se
Manuel Maria fosse possesso de assombração ou de iluminação divina e apenas
aquelas mãos fossem e que, criança ainda outras mãos iguais, enormes, que na fantasmagoria da distância, na mente da criança, que então era,
iam da Terra aos Céus, alongando-se pelo espaço e homem rodeado de mulher e
filhos, crianças como ele, maltrapilhos e pés descalços sobre a geada e o homem
erguendo as grandes mãos em súplica, mãos de trabalho e de afagos, agora
erguendo-se até ao Céu pedido perdão e o povo a sair da missa, impotente, a baixar
o olhar à passagem, e o homem, cá fora ajoelhado, com mulher e filhos descalços
e maltrapilhos, pedindo perdão a outro homem, à cavalo, impante de soberba e
prepotência.
Tão forte e tão real a imagem que Manuel Maria, num gesto reflexo,
escondeu o rosto no braço, como outrora o escondera no afago da mulher que o
levava pela mão.
Não passou despercebida a José
Augusto Esquerdino a perturbação de Manuel Maria que o inquiriu com olhar
penetrante, como se lhe bebesse a alma e este, num sorriso rasgado, lhe
devolveu as palavras com que momentos antes o brindara um dia destes falaremos deste e de outros assuntos, hoje temos mais que
fazer. Prazenteiro e sorridente o
José Augusto Esquerdino, com uma vigorosa palmada nas costas do atordoado
Manuel Maria ora assim é que falar …
E
assim prosseguiram para a reunião com a população, que os esperava …
Manuel Veiga
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