Depois da estreia – Cena I
Caído o pano e apagadas as luzes, distendeu os
músculos e ergueu-se da poltrona, onde gradualmente deixara as emoções da
estreia, enquanto os ecos, aplausos e “encores” se esfumavam nas células nervosas,
em ondas cada vez mais distantes.
Valera a pena! Não seriam necessárias as
críticas nos jornais do dia seguinte para ter a certeza que o espectáculo fora
um sucesso. Sabia, porém, que nas emoções do momento, naquela cartografia de
sentimentos díspares, na osmose de sensibilidades em que durante meses se
envolvera, secundária fora sua pessoa e pouco contara o seu tão proclamado
talento: o apuramento de uma deixa, aqui ou ali, um acerto de luzes, um
pormenor de guarda-roupa, uma leve correcção de marcação ou no registo de
vozes, por vezes indispensáveis.
Porém, o teatro eram ELAS, essas duas mulheres
sublimes, que por amor a elas, entrara naquele projecto, onde discretamente
soubera imprimir a sua marca estética...
A ACTRIZ, vibrátil e intensa, transfigura-se no
palco; e no nervo e no sangue de seu corpo, frágil e sensível, todas as culpas
se redimem e todas as glórias, prazeres ou depravações mundanas, alcançam a
beleza sublime do “Cântico dos Cânticos”...
A AUTORA coloca no coração da escrita a alegria
fecunda da sua criatividade participativa, exposta e vulnerável, tantas vezes
graciosa, onde flutuam, num jogo infinito de espelhos, heróis e vilões,
sentimento calmos e funestas paixões...
Como não amar aquelas duas MULHERES? Adora-as...
E, por amor a elas, comete pequenas/grandes traições, como aquela de, na
encenação da peça, alterar o “final feliz” de deixar a heroína banhada em
lágrimas, coberto o corpo nu com um lençol, como se tálamo nupcial fora, ao
arrepio do que o público (e autora) esperaria. Mas a verdade é que não admitiria
outro final, pois não suportaria vê-la assim exposta, nua, nos braços de outro
homem...
Ama as duas, com paixão e ternura. Receia deixar
fluir, um qualquer dia, a sua loucura mansa e, com o pano caído sobre o palco,
com elas ensaiar a peça única das suas vidas. Sem outro guião que não seja a
expressão livre do Desejo e sem outros aplausos que não sejam a cumplicidade
dos corpos, à solta.
Depois do Teatro, a Ceia – Cena II
Possuído pela paixão, como se fora um veneno
doce, que tolhe a consciência e despreza quaisquer outras emoções que não sejam
o deleite de mergulhar nas suas ondas, o ENCENADOR, frente ao espelho, maquinalmente
ajustou o smoking.
Olhou-se nos olhos e acendeu nos lábios o leve
sorriso de ironia, que a si próprio concede em ocasiões como aquela, em que
sabendo-se embora senhor de si, não pode, contudo, deter os fios da corrente do
destino e, por isso, o “sim” ou o “não” se jogam numa centelha de intuição,
mais que num exercício deliberado de inteligência.
Não, não iria à faustosa ceia, que o MECENAS, no
seu palacete recentemente restaurado, decidira organizar para seu gozo pessoal
e em homenagem a toda a companhia. Claro que tinha boas razões para ir. ELAS lá
estariam requestadas, soberbas de charme e inteligência, dominadoras nesse
palco sofisticado de mundanidades e prazeres fugazes. Mas não iria...
Não lhe agradava, especialmente nessa noite de
consagração, ter de sentir-se refém do seu talento, escutar cumprimentos,
brandir sorrisos, responder às perguntas imbecis dos jornalistas “culturais”,
que certamente estariam em peso. Mas, sobretudo, preferia evitar o espectáculo
do sorriso predador do MECENAS, cobrindo de elogios e atenções aquelas duas
mulheres, alfa e ómega de seus êxtases. Se havia algum sucesso a comemorar
deveriam ser apenas os três: qualquer intromissão seria perturbar o divino
sopro do equilíbrio perfeito...
Não iria, pois! Num gesto brusco desfez o laço e
libertou-se do smoking, enquanto se dirigia para o seu recanto predilecto na biblioteca.
O sangue, porém, continuava a latejar de inquietação. Bem sabia ele que o
MECENAS as desejava tanto, quanto ele próprio. E que sua momentânea desistência
seria pretexto suplementar para os “avanços” do adversário. Mas não contaria
com ele naquele espectáculo de sedução. Ponto final!...
Sempre assim fora a estranha relação entre os
dois homens...
Eram amigos desde sempre!... Oriundos, ambos, de
uma certa aristocracia arruinada da província, percorreram meio século de vida,
adivinhando-se nos caminhos, nem sempre dóceis, trilhados por um e por outro.
Fora assim no liceu, na faculdade, mais tarde em Paris, partilhando estudos,
gostos, aventuras e mulheres - como se vida de cada um fosse réplica da vida do
outro. Melhor: como se, por um qualquer acidente do destino, a vida de cada um
realizasse neles o mesmo percurso matricial!...
Apenas o rosto e a profissão os distinguia. E,
evidentemente, a ostentação da riqueza material. O sucesso empresarial fizera
do MECENAS um homem prodigiosamente rico...
Em vão, buscava o ENCENADOR, envolvido no
turbilhão destes pensamentos, refrigério para o estado febril e para aguilhão
do desejo que, em sua imaginação exacerbada, teimava em queimar-lhe a carne.
Afastou, assim, com os dedos, as gotas de suor que, como orvalho matinal sobre
pétalas, lhe ornavam a fronte e retirou da estante o LIVRO.
Sempre o mesmo livro quando, como agora, a alma
delira e o corpo requer o calor de outro corpo. Abriu, assim, ao acaso, as
páginas do “Fausto” de Goethe e soletrou, intimamente, o seguinte diálogo:
Fausto: -“Batem? Entre. Alguém me vem amofinar”.
Mefisto: - “Sou eu!...”
Fausto (enfadado): - “Entra lá!...”
Mefisto: - “Ora assim é que é falar, acho que
vamos dar-nos bem...
Não teve mais tempo para prosseguir a leitura. O
portão da entrada ribombava de impaciência. Abriu. ELAS ali estavam, cobertas
de glória. A AUTORA envolta num esplêndido vison castanho. A ACTRIZ com uma
estola de arminho sobre os ombros, fazendo ressaltar o azeviche dos cabelos.
Da penumbra do hall, sem cerimónia, o MECENAS
irrompeu e gargalhou, numa reprimenda fingida: - “Como não quiseste estar na
minhaaaa Ceia - sublinhou, trocista – viemos nós celebrar contigo...”
Depois da Ceia o Jogo – última Cena
Entraram. O MECENAS balanceava ainda o corpo na
gargalhada e ocupava todo o espaço no jeito peculiar de seus movimentos
felinos. ELAS, com um brilho especial nos olhos, prenunciador das grandes
explosões luminosas que, uma e outra, guardavam na subtileza e graça de seus
gestos.
- “Jogamos?!...” – perguntou a ACTRIZ num murmúrio, enlaçando-o. Sentiu o ENCENADOR a carícia doce de seus cabelos na face e o lume
dos olhos negros devassando os seus.
Pressentiu, então, uma peça cujo alinhamento
desconhecia. E a AUTORA, num sorriso de cumplicidade, entre irónica e decidida,
acompanhando as palavras com um beijo: - “Viemos aqui para jogar, sabias?”
Contrariado, com o olhar interrogou o MECENAS: -
“Não te vires para mim, estou tão inocente quanto tu...” – disse este, rindo
com gosto, suspendendo, por momentos, o gesto de abrir o champanhe. “Mas por
mim, aceito!”- acrescentou, forçando a intensidade da gargalhada.
O ENCENADOR compreendeu que estava “cercado”. E,
se pretendia dominar a cena, teria que tomar a iniciativa.
- “Seja!.. Joguemos, pois!”, anuiu. E,
libertando-se do abraço: - “Mas já que jogamos, façamos deste jogo uma obra de
arte!...”
E, em passadas largas pela sala, frenético, em
súbita iluminação, descreveu cenário e as regras do “espectáculo”. Jogariam,
como se aquele jogo fosse o último acto de suas vidas. Nus e com máscaras, como
se toda a vida passada se desfizesse em pó nos passos percorridos...
Portanto...
Ao centro, a mesa de jogo com pano verde
cuidadosamente aberto. Apenas a luz crua da lâmpada solta reflexos doirados
sobre os rostos, cobertos de máscaras barrocas: o MECENAS, com uma máscara
estilizada de Dionísios; o ENCENADOR, com a ”carranca” de um velho Fauno.
ELAS, mais subtis, escondem o rosto em
mascarilhas de seda... Azul, uma, sob a qual espreitam os olhos de uma
luminosidade intensa. Negro e branco a outra, sugerindo, vagamente, o esboço de
um Pierrô...
- “Para quê jogar se conhecemos o resultado?” –
exclama, num sorriso melífico, Dionísios. – “Depois do jogo” – exclama,
misterioso - sobrará apenas o esboço
ténue de nossas máscaras, flutuando no espaço...”
- “Jogaremos!...” – teima categórica a
mascarilha azul, que bem conhece as subtis ironias de Dionísios e as suas
blagues para lhes conceder qualquer importância. E assertiva: - “todos nós, os
quatro, somos jogadores e apreciamos o jogo pelo prazer de jogar...” E, empolgando-se: - “Já que Deus não joga aos dados,
enfeitemo-nos nós de deuses e joguemos!...”
E o velho FAUNO, que outra coisa não quer que
não seja o calor dos corpos na intimidade do jogo e a colheita sinuosa das
almas, em cada lance, declara, enfático: - “Joguemos, pois!... E saibamos guardar a
memória do jogo, como o vinho guarda o perfume da vida...”
Toda a noite jogaram, intensos e vibrantes.
Subindo mais e a parada. Como se cada lance, fosse o orgasmo primordial. Ou, como
se o universo se esgotasse na energia fálica dos dedos sobre a mesa de jogo...
Raiava o dia, naquele casarão decadente nos
arredores da grande urbe: -“Ficamos por aqui!... “ – declara, categórica, a
mascarilha azul – “o sol não tarda a nascer e eu quero estar em casa, antes das
crianças irem para o Colégio...”
Ganhara. A mascarilha azul ganhara um bom
pecúlio de letras. Jogara inteligente e contida e ganhara, pois bem sabia que
nunca se jogam emoções num primeiro jogo e, sobretudo, numa única jogada.
- “Saio contigo!...” – diz a mascarilha
“pierrô”, alvoroçada com os preparativos de uma viagem em perspectiva. Como
jogadora exímia, acumulara também emoções às emoções que trouxera!...
Restaram DIONÍSIOS, com seu riso sardónico, e o
velho FAUNO, que abatido se levantou e tirou a máscara. Atravessou, com
elegância o salão até ao candelabro, onde se finavam as velas. Acendeu uma
cigarrilha negra, juntou o polegar com o indicador e, se qualquer esgar de dor,
apagou uma a uma, todas as chamas com os dedos.
Liberto assim da sua condição ou destino de
velho FAUNO, voltou-se o ENCENADOR, num arrepio de gelar corpos e almas.
Perplexo, deparou com a máscara tombada de Dionísios e, em vez do MECENAS, em
seu lugar, sentado, estava ele próprio, com o seu próprio corpo e seu rosto duplicados!..
Cumpria-se, finalmente, num único lance, o drama
órfico e o destino paralelo do ENCENADOR e do MECENAS, tantas vezes
prenunciado, nos dias faustos e infaustos de suas vidas, qual moeda cunhada de uma única face.
O abalado ENCENADOR acordou de seu torpor, com
uma voz cava, que soava pelo velho casarão, vinda de além do Tempo: -“No
delírio dos corpos, quiseste colher almas!... Espero que esta derrota te ajude
a compreender a tua...”
No ar pairava intenso odor a enxofre. Como
espectros, AUTORA e ACTRIZ acenavam do espaço, sem se saber, se como chamamento
ou como despedida...De um canto da sala, Mefisto, saído de uma qualquer página
do “Fausto”, esguichou uma gargalhada (ihihihih) e desapareceu envolto em fumo
denso...
…………………………………………………………
E narrador destas cenas, que não é um homem justo
e que, por vezes, tem a pretensão de jogar aos dados com a vida, declara que
ateia fogo, em praça pública, às palavras e cenas atrás (d)escritas, em
expiação, não de seus pecados ou culpas, mas de seus exageros...
(texto reeditado)
Manuel Veiga
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