"Observando a proliferação de imagens do Haiti, percebemos a lógica perversa da nossa "estética de auto-estrada": quando dois carros chocam, imediatamente se formam filas imensas, não porque alguém vá fazer alguma coisa, mas porque o acidente envolve alguma atracção. Claro que ninguém fala disso: vivemos num quotidiano de compulsiva “purificação”, onde até os comentadores de futebol acreditam que há golos "justos" e "injustos".
O certo é que a atracação pela devastação, cujo limite impensável é a contemplação vitoriosa da morte, faz parte do bilhete de identidade humano. Nada que o avô Freud não nos tenha ensinado no princípio do outro século. O certo é que Freud não programa as televisões. E há uma frase feita para resumir este statu quo: “tudo é espectáculo!” Mas a frase é redutora, já que não há cumplicidade possível entre o sinistro espectáculo do Big Brother e seus derivados e uma ópera de Verdi ou um musical da Metro Goldwyn Mayer.
As televisões agem como se a realidade fosse automaticamente espectacular. Daí que não faça sentido discutir a informação televisiva avaliando se mostra “muito” ou “pouco”. Não é a quantidade das imagens que está em causa, mas o modo de as olhar, integrar e difundir. Na certeza de que todos queremos ver e saber mais sobre o Haiti.
As imagens repetidas, tendencialmente redundantes, pouco ou nada têm que ver com a paixão do conhecimento. Decorrem do mesmo infantilismo jornalístico do repórter que, à entrada de um estádio, faz um directo sobre as claques e proclama: “Ainda não há confrontos!”...
Ou seja: esperem um pouco, que isto ainda vai dar sangue. Jornalismo de catástrofe, jornalismo para a catástrofe..."
“Estética, Morte e Sangue” – João Lopes – in “Diário de Notícias” de 16.01.10
18 comentários:
Concordo com você.
Mas sabe por que?
Porque a média da população é vampira.Gosta de sangue, suor e lágrimas.
Se arte, cultura e beleza, se assuntos psicológicos, espirituais, seja de que caminho forem tivessem tanto espaço na mídia quanto têm as tragédias, certamente o peso e a medida seriam outros.
Obrigada.
O mórbido é apelativo neste tempo de sadomasoquismo.
O espectáculo do sinistro, na sua perversidade, a violentar-nos até à anestesia.
Um abraço.
O jornalismo está, parece.me, a baixar drasticamente de nível e há uma confusão enorme sobre o que é informar e alienar.
Boa semana.
eu só choro
estupida mente
não sei-não sei,,,
beijo
~
e eu também
[ barbara
mente,
,
desmesurada
mente
alimentamo-nos
como abutres
há um dever de informar de forma rigorosa e séria. a questão que se coloca´vai muito além, e tantas e tantas vezes ultrapassa a vontade de um jornalismo sério. quem mais consegue audiencia é que é vencedor.
este caso até nem é, em meu entender, o paradigma maior do mau serviço televisivo.
______
um beijo
Questiono-me profundamente sobre os "limites" do espectáculo, estimado Herético.
O certo é que, como diz a peça, "...de que todos queremos ver e saber mais sobre o Haiti." e que, por muito treinados que estejamos, jornalismas, analistas sociais, sociólogos e afins, "espectáculos" como o Haiti, porque tristemente únicos, constituem-se sempre como momentos em que, agir, integrar e revelar, vão depender de mil variáveis.
Sem qualquer dúvida que existem imagens e repetições desnecessárias. Concordo. Que, por vezes, têm sobre nós, o efeito anestésico. Mas, quero acreditar, poderão, aliás como é o caso, neste seu post, aliás, como sempre, de grande oportunidade, levar-nos ao diálogo e à reflexão.
Quanto a mim, o Haiti, aliás como já escrevi, deixa-me ciente que, nós povos ditos desenvolvidos, temos as maiores culpas no cartório, dado que, nos revolteamos em danças de ventre, umbilicais,e, nos esquecemos que, quando a terra treme no Haiti, é toda a Humanidade que treme, mais que não seja, porque as réplicas atravessam a fronteira do nosso conformismo.
Fica um fraterno abraço, Herético.
Bem-haja sempre pelo seu olhar aturado sobre a realidade.
Sem palavras
o voyerismo da desgraça - sem pudor. Precisamente e como diz a Licínia, para que "se anestesiem" os olhos, a alma ...habituar a mente. A sermos todos culpados e desculpados.
(entra o rapaz com o martelo, salta o balcão e agride a dona da ourivesaria, em directo - a notícia não nos diz o que foi feito, não serve de emenda, serve de exemplo...)
Não, eu não gosto de sangue, suor e lágrimas: gostava duma comunicação isenta e não exploratória dos nobres sentimentos que todos sentimos com o martírio dos pobres.
Abç
sede de sangue
desvario de de mentes mentes
desvairadas
( este mundo é ,de facto ,uma perfeita catástofre )
.
um beijo
concordo, acho que as televisões hajem como mais negocio a ser explorado, repetição de imagens e a bater sempre no mesmo, partes construtivas muito poucas, infelizmente é como todos fossemos só numetos
Saudações amigas
Meu caro,
A manchete diária do drama humano - exposta pelos meios de comunicação - alimenta nossa “caixa de pandora” no prazer quase mórbido por desvendar as nuances e os detalhes das mazelas alheias. O Haiti, que sempre foi pobre e sofrido, nunca mereceu “o olhar” tão interessado da mídia nem a ação tão benevolente dos caridosos de plantão. Mas o mundo anda numa velocidade rápida e, como diz o texto que você postou, tudo isso logo passará porque dará lugar ao próximo “espetáculo” que o cartaz publicitário irá divulgar...infelizmente, quando as pedras, as cinzas e a poeira do terremoto já não forem lembradas no show dos horrores, os olhos do mundo se voltarão para o anúncio de um próximo espetáculo e os haitianos continuarão sofridos e pobres diante da hipocrisia do poder da comunicação.
Tudo isso me faz lembrar de uma canção do Caetano Veloso, escrita em 1993:
HAITI
Quando você for convidado
pra subir no adro da
Fundação Casa de Jorge Amado
pra ver do alto a fila de soldados, quase todos pretos
dando porrada na nuca
de malandros pretos
de ladrões mulatos
e outros quase brancos
tratados como pretos
só pra mostrar aos outros
quase pretos
(e são quase todos pretos)
e aos quase brancos
pobres como pretos
como é que pretos,
pobres e mulatos
e quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados.
E não importa se olhos
do mundo inteiro possam
estar por um momento
voltados para o largo
onde os escravos eram castigados
e hoje um batuque,
um batuque com a pureza
de meninos uniformizados
de escola secundária
em dia de parada
e a grandeza épica
de um povo em formação nos atrai, nos deslumbra e estimula.
Não importa nada
nem o traço do sobrado,
nem a lente do Fantástico
nem o disco de Paul Simon
ninguém
ninguém é cidadão.
Se você for ver a festa do Pelô
E se você não for:
Pense no Haiti
Reze pelo Haiti
O Haiti é aqui.
O Haiti não é aqui.
E na TV se você vir um deputado
em pânico mal dissimulado
diante de qualquer,
mas qualquer mesmo
qualquer qualquer
plano de educação
que pareça fácil
que pareça fácil e rápido
e vá representar uma ameaça de democratização
do ensino de primeiro grau.
E se esse mesmo deputado defender a adoção da pena capital.
E o venerável cardeal disser
que vê tanto espírito no feto
e nenhum no marginal.
E se, ao furar o sinal, o velho sinal vermelho habitual
notar um homem mijando
na esquina da rua
sobre um saco brilhante
de lixo do Leblon.
E quando ouvir o silêncio sorridente de São Paulo
diante da chacina
de 111 presos indefesos.
Mas presos são quase todos pretos
ou quase pretos
ou quase brancos
quase pretos de tão pobres
e pobres são como podres
e todos sabem
como se tratam os pretos.
E quando você for
dar uma volta no Caribe
e quando for trepar sem camisinha
e apresentar sua participação inteligente no bloqueio a Cuba:
Pense no Haiti
Reze pelo Haiti
O Haiti é aqui.
O Haiti não é aqui.
(Caetano Veloso)
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Enfim, eu fico por aqui, não sem antes agradecer pela sua lucidez, pelo seu diferente olhar sobre os fatos e por sempre nos trazer questões importantes para que possamos questionar.
Beijo.
Genny
Ainda hoje debati esse assunto, parece que estamos sempre à espera da notícia que não deve ser notícia, desta forma...
Um abraço e uma boa semana
Chris
pois e eu sou obrigada a desligar a porcaria da tv à hora do jantar porque... ok é 1 tragédia, ok precisam ajudam, ok até posso tentar ajudar na medida do possível mas... okkkkk eu já vi essa imagem e não é por ver o braço solto 500 vezes ou o craneo esborrachado 1000 vezes que a tragédia fica mais curta, a ajuda chega mais pronta and so on
A sede pelo mórbido tornou-se num factor crucial da nossa sociedade..
Bjs Zita
A sede pelo mórbido tornou-se num factor crucial da nossa sociedade..
Bjs Zita
é vergonhoso ser este o jornalismo do século 21... aposto que se um terramoto deitasse abaixo a casa branca, não divulgariam imagens com esta gratuitidade... um beijo*
... na senda dos teus passos...
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