O exercício da cidadania não se resolve
apenas na resistência ao poder político-social, no quadro da multiplicidade de
lutas e embates, em determinado momento histórico. Efectiva-se também, na
produção simbólica, isto é, na produção de ideias, valores e modelos de comportamento
social, tendo em vista romper às malhas da ideologia dominante. Por outras palavras, o poder ideológico
constitui, em si mesmo, objecto essencial de luta política.
Falar em cidadania activa pressupõe, assim,
que se considere também o espaço
discursivo no sentido dos cidadãos em geral e, especialmente, os grupos
sociais mais activos poderem formular uma rede simbólica/ideológica/cultural alternativa às ideias e valores
sociais dominantes e que hoje se exprimem naquilo que alguns designam por
“cultura-mundo” e outros por “sociedade do espectáculo”. Ao serviço dos quais
se afirma o “o poder mediático”, que excede o domínio dos órgãos da comunicação
social, embora estes mantenham, no funcionamento do sistema, um papel
determinante.
Não cabe no âmbito destas linha
aprofundar este tema. No entanto, julgo ser oportuno referir que, nunca como
hoje, a importância dos media e a sua
valorização hiperbólica foi tão expressiva, uma vez que através deles se afirma
e expande o conjunto de valores, ideias, modelos de comportamento, em que
estamos mergulhados. E nos quais a exacerbação do consumo é apresentada como
necessidade indeclinável.
De facto, julgo ser aqui que se
inscreve o papel nuclear do poder mediático e dos órgãos da comunicação social na
sociedade contemporânea - ou seja, na institucionalização do “consumo“ como
fetiche todo-poderoso. E, numa estratégia deliberada de “enclausuramento” da
sociedade e de expropriação dos direitos de cidadania, apresentar os modelos
e comportamentos sociais e políticos que reproduzem os interesses capitalistas,
como ideias e valores definitivos e, por isso, sem alternativa.
Quem não se lembra do autoproclamado “fim
da História”? Declaração que hoje, se manifesta, neste mundo globalizado, como concretização
“prática”, através da teoria das “inevitabilidades” e do slogan de que “não há alternativa”, sistematicamente impingidos
pelos programas, propaganda e acção política neoliberal.
Acresce que as próprias tecnologias
mediáticas e de informação, (que o poder mediático incorpora) espalham-se pelos
mais diversos espaços, passando a integrar a sociabilidade dos cidadãos,
estabelecendo posturas, atitudes e lógicas de comportamento, que são assimilados
pela própria subjectividade individual como valores colectivos.
No seu aparato, o poder mediático
reveste-se das suas próprias liturgias de poder, não apenas pelo seu papel
social (e a quem serve), mas porque como verdadeiro poder é visto pela
sociedade, que o identifica como algo superior, definidor da realidade,
revelador da verdade e criador de mitos, celebridades, que alimentam o imaginário
coletivo.
A especificidade da questão é que o
poder mediático, contrariamente ao poder de Estado, se realiza numa espécie de
“submissão voluntária”, em que cada individuo, no seu isolamento social, se
transforma no seu próprio vigilante.
Explicando melhor: cada individuo, particularmente
considerado, fica refém do “olhar do
outro” que, como ele, é vítima e, em boa medida também, actor do espectáculo
que o poder mediático exponencia.
De facto, é o receio interiorizado “do que os outros vão pensar” (por não se
frequentar tal meio social, conhecer a vida de tal celebridade, usar tal ou tal
marca de automóvel ou de vestuário, etc. etc.) que modela os comportamentos
individuais ao consenso social e constitui, por isso, um poderoso e subtil
elemento de sustentação (pela inércia) do sistema de poder.
Como romper o cerco? Julgo não haver “receitas
feitas”. Porém, onde “há poder há resistência”...
Assim, importa ter presente que, se é
verdade que somos produto da sociedade, também somos nós, cidadãos, os
produtores da sociedade que almejamos. Não somos meras marionetas de um jogo de
forças, nem meros expectadores dos embates dos diversos poderes. Cada um de nós
é co-autor da trama em que os poderes se tecem. E, portanto, o nosso silêncio e
passividade, ou a nossa acção decidida irão contribuir para manter ou alterar o
estado das coisas.
E, se é verdade que “onde há poder há resistência”,
também é verdade que todas as formas de resistência, criam novas expressões simbólicas/ideológicas/culturais, mais fecundas e libertadoras.
Quer dizer, novas “formas de poder-saber" que introduzem os fundamentos de uma vida-outra...
12 comentários:
Gostei do: "modela comportamentos individuais".
Grande apelo a "novas expressões", para que sejam "mais fecundas e libertadoras"
Texto deveras interessante!
O teu texto revela lucidez
é apologético de luta contra os poderes instituídos
e até de formações contra a canalha instalada
Tens razão
só formigando lá iremos
a carregar pedras
a menos que despertem relâmpagos
que se vejam
Abraço
"...o nosso silêncio e passividade, ou a nossa acção decidida irão contribuir para manter ou alterar o estado das coisas."
Dia 1, lá estarei!
"Onde há poder há resistência", mas, cadê essa resistência, herético? Nas falas de um ou dois políticos ainda honestos, nos artigos dos jornais, nos e-mails que nos enviam?...O mundo clama no deserto...
Muito bom o seu artigo.
Amigo, beijos!
Excelente posta!
Abraço
Belo texto.
A manipulação das massas aí, em todas as vertentes do seu comportamento, está aí.
É por isso que pela resistência nos vamos, até uma vida-outra.
Abraço Irmão
Oportuníssimo e muito claro.
Sempre haverá "anantes" capazes de vencer "Gigões".
Eu acredito!
Um beijo
Excelente texto!
É esta a lucidez, que a todos faz falta, para cortar os fios...
Beijo
"Cada um de nós é co-autor da trama em que os poderes se tecem". Isso é que não desculpabiliza ninguém. E dói pensar...
Obrigada, amigo pela lucidez do teu texto.
Beijo.
e é premente ter ideias, ser capaz de as expressar, porque se há poder existe sempre contra-poder;ficar estático é o caminho aberto para as veleidades...
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