terça-feira, dezembro 02, 2014

Do Fim da História à Rarefacção dos Acontecimentos...


Estamos confrontados – dizem os historiadores – não com o fim da História, mas porventura com algo mais catastrófico, ou seja, com uma espécie de “rarefacção dos acontecimentos” perante a qual a história se tornou impossível.

Explicitemos esta ideia. Com a queda do Muro de Berlim e a falência do sistema soviético, o capitalismo “canibabilizou” todo o sentido de negatividade. Onde até então existia dialéctica ergue-se agora um percurso de sentido único. Onde até então a densidade dos factos se projectava nas consciências e empolgava militâncias, hoje os factos despenham-se na sua profusão e nos efeitos especiais com que a comunicação social os apresenta, banalizando-os, encharcando o quotidiano com marasmo do idêntico por toda a parte.

Na política, na cultura, nos média, na moda e até nas próprias causas que, mesmo quando se apresentam como “fracturantes”, são as mesmas, seguindo o mesmo padrão de sentido único...

Hoje, tudo se passa em tempo real. Já não há mais lugar à verdade real dos acontecimentos. Tudo se resume agora à coerência dos factos, imediatamente apreensível no alinhamento dos telejornais. Sabemos tudo, a toda a hora, na espuma do quotidiano...

A história fica paralisada, não por ausência de acontecimentos, mas pela lassidão das consciências, empanturradas de informação. As chamadas maiorias silenciosas, a imensa indiferença das massas humanas, a falta de mobilização cívica têm certamente diversas explicações. Mas a inércia social não resulta seguramente por falta de motivos para acção cívica e política...

Nesta espécie de auto dissolução da história, todos os mecanismos da democracia política se degradam. E, nessa degradação, se precipitam valores políticos, cívicos e morais. As próprias exigências do exercício da liberdade e de respeito dos direitos do homem não passa de um simulacro.

“A democracia planetária dos direitos do homem está para a liberdade real está como a Disneylandia está para imaginário social” – escreve Jean Baudrillard num livro célebre (A Ilusão do Fim – ou a greve dos acontecimentos).

Se com o colapso do sistema soviético, o capitalismo devorou, como uma paródia universal, a dialéctica e a história, ao assumir todos contrários, numa grotesca síntese sem alternativa, é porque, na sua veleidade de dominação totalitária, devora a própria substância do ser humano para o reduzir à sua essência de ser produtivo...

Salva-se, porém, a cultura da liberdade e dos direitos do homem! Mas salva-se?...

Que os digam os milhões e milhões de “gente descartável”, que à escala planetária são afastados, como excedentes (mercadoria, portanto) do processo de produção e de consumo.

Que o digam as prostitutas na Tailândia, os índios no Brasil, os escravos na Mauritânia, as crianças e as mulheres em Ceilão, no Paquistão ou na Índia! Que o diga África! Que o digam, nos Estados Unidos da América, os muros de milhares de quilómetros electrificados e a vigilância electrónica (e os rifles) apontados aos emigrantes mexicanos!...

“Da liberdade já só resta a ilusão publicitária, isto é, o grau zero da ideia, a que regula o regime liberal dos direitos do homem" (...) – exclama o autor referido, ou seja, “a promoção espectacular, a passagem do espaço histórico para o espaço publicitário, passando os média a ser o lugar de uma estratégia temporal de prestígio...”

Construímos a memória síntese dos nossos dias, mediante a profusão de imagens publicitárias que nos dispensam da participação dos acontecimentos realmente transformadores da vida e da sociedade

Nesta antecipação publicitária, se canibaliza o futuro e se procede à reciclagem dos "detritos" da história e dos mitos. Também os pais fundadores da nação norte americana, em nome da liberdade, permitiram a escravidão!...

Resta-nos a convicção que, ao longo dos tempos, sempre os escravos se revoltaram... E que, em seu "surdo ruído", a História prossegue seu caminho.

Bem se sabendo quão duras são suas dores...


Manuel Veiga

7 comentários:

Mar Arável disse...

Repetidos sentidos únicos" sem espaço para o "imaginário social" - mas por mais que devorem o "surdo ruído" não nos calarão o sonho.

Com dores sim - mas pássaros contra o vento que faz

Majo disse...

~ "Mas a inércia social não resulta seguramente por falta de motivos para a acção cívica e política."

~ ~ ~ Tempos de "História paralisada"...

~ Excelente análise da conjuntura sociopolítica da actualidade. ~

Rogério G.V. Pereira disse...

Façamos um "surdo ruído",
com estrondo

(bem escrito, isto!)

jrd disse...

Um grande texto: Uma análise lúcida,implacável e pertinente deste tempo de desencanto e angústia.
Um alerta para urgêcia de retomarmos o caminho que nos foi bloqueado.

Abraço meu irmão

lino disse...

Amigo,

Como um texto destes merece ser irrepreensível do ponto de vista linguístico, permito-me alertar-te para o facto de média, no sentido de meios de comunicação social como aparece no terceiro parágrafo, é um substantivo masculino plural; aliás, aparece de forma correcta na citação da obra de Jean Baudrillard quase no fim do texto.
Um forte abraço

Manuel Veiga disse...

grato, Lino. forte abraço

(não descobri o teu email para te poder agradecer pessoalmente)

jorge esteves disse...

Não vejo assim o amanhã da História (sendo verdade que a História não tem amanhã). O tema é aliciante e dá pano para muita manga (e manguito); talvez um dia (seria bom!) se possa falar sobre isso em qualquer conversa encostada a um fim de tarde...
Mas, aquele abraço!

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