PREFÁCIO
António
Bica e João Corregedor da Fonseca
É
sabido que qualquer obra de arte, literária ou qualquer outra, é em si mesma,
um acto de comunicação e de partilha. Escreve-se, sobretudo, para ser lido e
merecer, se não adesão, pelo menos a atenção dos outros. E, por mais impessoal
que seja um autor em relação ao seu trabalho, raros serão os casos em que o
acto de escrever não seja uma inquieta busca de cumplicidade com o leitor.
Mas
se isto é verdade, não é menos certo que – desde o mais singelo acto criativo
da vida quotidiana até à obra de arte mais elaborada – qualquer “criador” se
revela ou projecta na “criatura” criada. Isto é, qualquer obra “fala” sempre do
seu autor, por mais obscuro que seja o resultado, ou por mais sofisticado que
seja o método e a linguagem em que se expressa.
Em
particular na escrita, a linguagem do escritor remete de forma mais ou menos
explícita, mais ou menos consciente, para as suas próprias pulsões, sonhos e
desejos que exprimem e moldam o carácter do autor, enquanto sujeito da escrita
e, no plano mais geral, expressa a sua específica “visão do mundo” e a sua
própria matriz ideológica.
De
tal forma é assim, que muitas vezes, para apreender completamente o sentido de
um texto é indispensável compreender as específicas circunstâncias da sua
criação, quer dizer, o contexto socio-temporal em que emergiu e as
idiossincrasias do seu autor. As “Notícias de Babilónia e Outras Metáforas”
são, ao que julgamos, deste ponto de vista, elucidativas.
Como
refere a nota biográfica que integra este livro, Manuel Veiga nasceu e cresceu
no meio rural transmontano, (...) em meados da década de quarenta do século
passado. Em finais da segunda guerra mundial, o País era o que sabe –
politicamente opressivo e retrógrado e, por outro lado, económico e socialmente
atrasado.
Em
todo o interior norte, prevalecia uma agricultura de subsistência. E, nesse
mundo agreste, mais que a indispensável força física, era o engenho e “os
saberes” a decidirem o resultado do confronto directo do homem com a natureza e
os outros homens, no trabalho ou nas horas de lazer.
Não
havia electricidade, nem estradas, nem “influências exteriores” significativas,
para além da omnipresença da Igreja, desde o nascimento até à morte, no seu
papel de conformação ideológica. Vistas do exterior, as comunidades rurais
apresentavam-se assim formalmente homogéneas, a que um certo romantismo
serôdio, estimulado pelo fascismo, dava uma aura de “paraíso perdido”. Mas,
para um olhar mais arguto ou mais atento, eram perceptíveis as contradições e
as subtis fissuras que atravessavam o espaço social rural daqueles tempos.
Cada
um ocupava o lugar social que lhe estava naturalmente destinado, quer na Praça,
quer na Igreja. E, se eram os teres e os haveres a destinarem o lugar de cada
um era, no entanto, o saber quem dava autoridade e se impunha a consideração
dos outros.
O
tempo era circular, marcado pelo ritmo das colheitas. E a palavra parca. Mais
que a enunciação de um discurso, importava a decifração dos sinais – os humores
da meteorologia, o estado das colheitas, a fecundidade da terra, o trilho dos
animais. Por vezes, no entanto, o Verbo fazia-se carne. E a Praça erguia-se,
então, como lugar de todas as metamorfoses da Palavra – nas celebrações
colectivas, na arrematação do trabalho, na proclamação do justo e do injusto,
na definição do certo e do errado, na transgressão festiva, no picaresco, nas
zombarias...
Foi
este, pois, o tempo e o espaço social que o autor de “Notícias de Babilónia e
Outras Metáforas” bebeu na infância e na adolescência e que, decisivamente, lhe
moldaram o carácter (...).
Em
meados dos anos sessenta, foi Coimbra e um outro despertar. Pouco depois, a
guerra colonial, a que foi forçado. A posterior licenciatura em Direito, como
trabalhador estudante, nos últimos anos do curso. A Revolução de 25 de Abril e
a intervenção cívica e política - metas de um percurso em que se forjou como
homem e cidadão (...).
Escreve
agora Manuel Veiga com olhar crítico sobre os tempos de crise que o país e o
mundo têm vivido desde há décadas e que, nos mais recentes anos, se tem
acentuado, mediante a afirmação desenfreada do neoliberalismo económico e a
proclamação de uma “cultura planetária” que esmaga todas as singularidades e se
impõe em todo o lado, como expressão de uma ideologia de “pensamento único”.
O
autor entende a crise racionalmente, mas sente-a emocionalmente. É sobretudo um
criador de poesia, da qual não se desembaraça nestes textos. As suas metáforas
políticas, quase sempre amargas, constituem, de alguma forma, insurgências de
uma zombaria ascentral, com que a arraia-miúda se vingava dos desmandos dos
poderosos. Outras vezes, os textos ecoam uma plangência dorida e esperançosa,
como gestos solidários que se expõem desamparados ao leitor.
E,
hoje, não deixa de manter uma grande firmeza na justa crítica que faz ao
panorama social, cultural e político, nacional e internacional e aos contínuos
desmandos do capitalismo de que o governo português é fiel servidor.
Que
assim sejam, sempre – o autor e os seus textos. Com autenticidade e
independência, seja qual for o género literário. E, como diria Aquilino Ribeiro
“seja o autor o que lhe apetecer, desde que não arme em fariseu e não esteja
nunca contra os simples de braço dado com os trafulhas, nem contra os fracos de
braço dado com os poderosos.”
Como
o percurso de sua vida garante!...
António Bica
João Corregedor da Fonseca
10 comentários:
Já me "inscrevi"...
https://www.facebook.com/events/869571826454729/
não faltarei!
Meu caro herético!
Antes de mais, parabéns pelo teu novo livro que não sendo agora de poesia, revela-estou seguro disso. a tua integralidade como homem e criador.
Fui lendo algumas dessas tuas crónicas e num comentário ou outro lembro-me de me sorrir com o teu sarcasmo bem humorado e profundo. Quanto ao texto assinado por António Bica e...é realmente um espelho belo e profundo do ser transmotano no período a que se refere...Deixo-te um grande abraço. Logo que tenha mais disponibilidade...lerei pelo menos, os Teus poemas cativos...
Muito sucesso!
beijo meu
Trás-os-Montes "deu" muitos escritores e poetas, com características únicas. Regem-se pelo ditado popular: "mais vale quebrar que torcer". A "rudeza" e a "agressividade" da província, talvez possam explicar esta atitude. Muito sucesso, a todos os níveis!
Bom fim de semana!
~
~ ~ Gostei de ler as notas biográficas que desconhecia.
Tenho a certeza que vai ser um evento muito agradável.
~ ~ ~ Que tudo corra da melhor maneira. ~ ~ ~
~ ~ ~ ~ Abraço amigo. ~ ~ ~ ~
~~~~~~~~~~~~~~~
E que melhor garantia do que o percurso de vida.
Que tenhas muito sucesso.
Grande abraço meu irmão
Lá estarei meu irmão
Abraço sempre
Oh! 'Herético', muitos parabéns!
Mereces bem, escreves lindamente, és acertivo nas crónicas dos tempos que passam, vigilante, com humor sarcástico, como te é peculiar.
E depois da poesia, vêm os textos de costumes. Como gostaria de estar presente, mas não me será possível :-(
Deixo-te um beijo, e o desejo profundo de muito sucesso.
Até breve!
Não estarei por aí, mas não me esquecerei de te abraçar, amigo.
jorgesteves
www.tintapermanente.pt
Felicito-o, Manuel, por mais este trabalho que terá, por certo, uma receção condicente com a qualidade irrefutável da sua escrita.
Tudo pelo melhor.
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