O autor não existe. É
um ponto neutro, uma emergência ou, porventura, um cruzamento de possibilidades
por onde perpassam os filamentos de uma trama, que não sabe bem como
encenar-se. Nem muito menos é um manipulador que, por detrás do pano, se
esconda e, na obscuridade do proscénio, desenhe os lances da dramatologia em
que se joga a contragosto, pois que, se autor fora, assumiria o registo linear
da forma e da escrita, como redenção ou glória.
E, então, porventura, obra
seria - sabe-se lá se poema, se novela...
Nem o tempo, nem o
espaço existem, devorados naquela noite de relâmpagos e medos, os corpos em
chaga e lama e o dilúvio tropical despenhando as atrocidades da guerra num
buraco negro, de que não há refúgio. O absoluto Nada no arrepio da
alma transida e a tempestade soberba, fazendo da metralha um bailado mortífero,
fantasmagórico, replicando fogos-de-artifício perdidos, que, como bálsamo, emergem
da noite, miasmas da memória em chama atiçados no nó em que os corpos se
enrolam, sem outra saída que não seja o desesperado desejo de diluir-se na noite
ou fundir-se na água.
Então a fuga redentora, inconsciente, provinda do fundo
do medo, físico e viscoso, para os dias solares da infância e o cálido regaço
materno, como quem ajusta contas, em desespero, no deve e haver da vida. E na
agitação febril, sobre os gritos, os trovões e o metralhar das armas, o incêndio
do sonho ganha então asas e entretece um murmúrio de luz inesperada no olhar do
menino perdido, elevando-se na noite negra
... E o menino, nesse dia, fizera gazeta!...Que
raio de ideia, essa de ir à Escola, quando no alto dos negrilhos caprichavam
mil cores de um sol primaveril, prenhe de desejos - sabe-se lá de quê!...
Coaxavam
rãs no regato e soltavam-se lírios selvagens nas encostas. Mas nem uns nem
outros, naquele dia, mereceram mais que um pedra atirada, fazendo silenciar os
juncais...
Os lírios, esses sim estivera tentado!... Sabia que mereceriam um
beijo longo e doce e os dedos nos cabelos, que tanto o arrepiavam de afecto,
quando os despejasse no regaço da mãe, com desprendimento: - “toma, mãe, colhi
para ti!”...
Mas
que justificação daria? Não, mais valia prosseguir...
O
destino era um melro negro e cantador, que o desafiava todos os anos, entre
silvados, e que era motivo de chacota lá em casa, com o “Zé Fardela”, na sua
ternura boçal, a espicaçar, trocista: -“ Já acertaste com o melro, rapaz?!
Querem ver que o malandro do pássaro ainda vai fazer o ninho no teu buço e,
mesmo assim, não és capaz de o descobrir!...”
Enchera-se,
portanto, de brio. Desta vez, tinha que ser. Mas ninguém saberia. Aquilo era
desafio solitário: de homem para melro!...
Esgadanhou
as mãos em silvados, trepou frondosos freixos e, titânico, prosseguiu manhã
fora. Na ponta dos galhos o melro, com seus trinados, desatinava-o, na sua
malvadez trocista. A cada aproximação, sem se dar por achado, o melro voava
cada vez mais longe...
Frustrado, adormeceu sob a copa protectora de uma árvore
centenária durante minutos, que, no sono, foram horas. Levantou-se inquieto e,
qual melro alvoroçado, ergueu-se espavorido... Então,
sobre a sua pobre cabecita de castanhos caracóis, o esvoaçar inesperado do
casal de enamorados melros.
Lá estava o ninho, ali mesmo, sem dar por nada,
como se fora dádiva do Céu...
Um estertor rouco,
satânico, um estampido brutal, como se o Céu desabasse e o Inferno rebentasse
nas entranhas da terra e, em chamas, fulminasse a noite e tudo se fundisse,
tempestade, homens e selva, nesse brado imenso, que ecoa ainda nos ouvidos
atordoados, irrompe em sua absurda e inescapável realidade.
O menino e o sonho
e o bálsamo fantasmagórico da memória, são agora o odor acre da pólvora e dos
corpos calcinados e o sangue e os gritos e as pernas e os braços decepados voando e as vísceras e
as tripas e toda a merda de que somos feitos, escorrendo na lama, que nem chuva
alguma, nem o dilúvio, alguma vez lava...
Apalpou-se, estava
vivo! E inteiro...
E
o menino, que ainda hoje se emociona com o cantar trocista dos melros na sua memória,
sabe agora, como a mãe lhe dizia para acalmar juvenis ansiedades e medos “aquilo que é verdadeiramente nosso, em
nossos braços vem cair”.
Até
a morte!...
Manuel Veiga
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10 comentários:
Que fragmento! Que estória! Que sensível e corpórea escrita!
Sublime e desafiante:
Apalpemo-nos. Estamos vivos?...
Maravilha!
Um sabor amargo fica em bulício, na pele, porém, ao percebermos que do tempo dos melros ao tempo dos mortos um passo é o bastante. Do tempo dos mortos ao tempo dos melros, um retorno improvável, não fosse o sonho e diria mesmo impossível.
Um romance, a nascer?
Bj.
Phosga-se, lê-se quase sem se respirar.
Muito bom!
Abraço
Mentes em ebulição... a do menino, a do melro, a sua...
Incrementado de belas imagens e de muita inspiração, foi bom ler...
Manuel, beijos!
Um texto desconstruído para nos conduzir a leituras fundas onde a poesia emerge num espectáculo de belos conteúdos que nos desafiam.´Por cá os melros estão em paz - não comeram nem uma cereja em benefício do meu neto.
Abraço fraterno
Eu sei dum ninho!
Um sonho de menino.
Gostei muito deste texto, muito! A dualidade nele apresentada, fascinou-me, tal como a ternura subjacente.
Tenho dúvidas, todavia, k a "arraia-miúda" o tenha entendido. Não me refiro a quem o comentou, mas a quem passou por aqui, e o leu na diagonal. Talvez, fosse aconselhável, "democratizar", popularizar a sua escrita, k é bem elitista.
Como gosto de te ler ! Fiquei por aqui lendo, de mansinho, este teu texto (r)efabulado. A ternura do imaginário entrecruzando-se com a vida.
Quanto ao 'autor', tenho uma visão um pouco diferente da tua.
Pode ser manipulador, se a sua efabulação for 'programada' (esses cursos de escrita criativa...). Mas ser for verdadeiro, deixa correr a sua escrita ao sabor da inspiração/criatividade, que será mais forte do que ele, 'autor', sim, e o levará para 'sabe-se lá, se poema, se novela...'
Beijo
G-Souto,
"escrita criativa!, boa amiga? que tormento!...
não creias!
diria antes "estruturalismo" mal amanhado,
beijo
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