Desejo
que venhas, Maria Adelaide, partilhar esta paleta indistinta de sentimentos,
tão apta a desabrochar em fantasia de cor, como a fechar-se em teimosia de
guardar pétalas. Como tantas vezes, dizendo-te, me digo, e aquilo que era
apenas intuição ou vago desejo de nada e de tudo, se revela límpido em ti. O
teu rosto e o teu sorriso, talvez uma breve carícia de teus olhos e a palavra ganha
a tonalidade certa e sentido oculto, que os dedos decifram sobre as teclas.
Quero, hoje, que sejas a matriz de tudo, já que por África enveredamos. Que eu te
invente de novo. Que te recrie na doce lembrança dos primeiros tempos,
esbatidos – ambos o sabemos – no devir das nossas vidas passadas. Na
contabilização de nossos afectos, que não sendo nossos, nossos são, na
divergência e desencontros das nossas vidas. A que ambos somos leais, mas não
fiéis!...
Confessaste-me,
um dia, que te aproximaste de mim por curiosidade. Nunca tiveras por tão perto,
em convívio diário, um comunista. De facto, em certo sentido, eu era um
outsider. Nas minhas itinerâncias profissionais, acabara de retomar o lugar na
Administração Pública. A geografia política mudara no País. Eram outros os
tempos. O João, teu marido, ocupava lugar destacado num gabinete ministerial. E
tu vieras da Escola onde exercias, porque te era mais confortável a
Administração Central. A ti bastava seres a mulher de quem eras. Eu era (quase)
um “pária”, um comunista, sabe-se lá se um perigoso “infiltrado”, um “vende
pátrias”, em suma, pronto a entregar os altos desígnios da anódina Direcção
Geral ao estrangeiro. O Director, em seu zelo apostólico-político, não me
permitia, por isso, nem o mais insignificante papel para, ao menos formalmente,
poder justificar o tempo e o vencimento. Nada, literalmente nada. E eu não me
importava!... De forma que tu e eu tínhamos que queimar as horas e a monotonia.
Devo confessar-te, porém, que me aproximei de ti pelo veludo de teus olhos. E
em nome da “velha amizade” com teu marido. Sempre o João dissera, em conversas
soltas da juventude, no grupo de férias na província, que um dia casaria, sim,
mas seria com uma mulher rica. A curiosidade agora era minha. Quando te contei,
mais tarde, sacudiste os cabelos numa gargalhada e vi os teus olhos
toldarem-se. Ainda não éramos amantes. Depois eu soube. Tu contaste-me com
lágrimas de amargura e raiva. Mas, então, ainda não. No entanto, ambos
sabíamos, já de nossos corpos. Pressentíamo-nos na vibração, quando, a centímetros,
escorríamos um pelo outro. Nas passagens, nas portas, no corredor. Quando, no
elevador, repleto, buscávamos a proximidade. Ou quando, derretidas as inibições
dos primeiros tempos, te sentavas, de pernas descuidadas, na minha secretaria.
E então
quando, sobre a tela, passava o “Eclipse”, de Antonioni, a minha mão buscou a
tua não houve surpresa. E quando a Mónica Vitti, tão frágil e desamparada,
soltou o grito na brancura solar écran, as nossas bocas eram pasto, na obscuridade da sala. E quando saímos,
a urgência era fome de ternura partilhada.
Merecemo-nos.
Soubemos sorver até ao fim a beleza desse encontro...
Hoje
evoco-te, Maria Adelaide, neste meu regresso a África, como se tu foras quando ainda
não eras, porventura, alibi ou pretexto ou, por momentos, os nossos caminhos
inversos fossem colisão de destinos, tu no furor da guerra colonial, em busca
de refúgio em Lisboa, protegida pelo dinheiro da família e umas vagas aulas na
Faculdade de Letras e eu subindo o escaler do Uíge, milhares de homens a bordo,
debruçados na amurada, prolongando o choro das mães, o beijo das mulheres e das
noivas, a serena revolta dos pais e dos amigos, o fadário de um Povo
acorrentado, os restos crepusculares das “andanças e traficâncias” de um
proclamado Império, que não do sonho do Quinto, pois que o Padre António Vieira
não é para aqui chamado, mas da rançosa persistência colonial, ao arrepio da
História e da vontade dos povos colonizados.
Pressinto
o teu olhar no meu rosto e o teu sorriso irónico: - “Que fulgor e que
arrebatamento, Manuel!... Vejo que ainda não estás curado do “bichinho” da
política. E soltas uma gargalhada nervosa...
Eu
sei que sim, eu sei que sim, Maria Adelaide. Sei por que caminhos te levam as
minhas palavras. E tu sabes que nunca esquecerei a celebração “as minhas
derrotas políticas”, aquela fórmula prodigiosa que tu, então dividida entre o
apoio ao marido e o voto do coração, inventaste para mim, num momento da mais
absoluta rendição e exaltação amorosa.
Mas,
por enquanto, ainda África, Maria Adelaide...
Manuel
Veiga
16 comentários:
E vamos ao terceiro livro, com mais de cem páginas, cem...
Sedutor, este modo de contar! Depois há o tempo histórico... Tanto que contar!
Um romance, a próxima publicação?
Bj.
Perturbadoramente aliciante...
Gostei de ler.
Um abraço
Ás vezes misturamos tudo...se calhar ainda bem...é daí que nasce a beleza de um texto como o que acabei de ler.
Abraços
Simplesmente, encantador! Fora as questões de idealismo, um encontro sublime, pelo prazer dele oriundo. Abraço.
Li com agrado.
Estes fragmentos são de obra já concluída ou ainda em fase de criação?
Muito muito boa leitura.
Bem se diz que os poetas tem sonhos grandes o suficiente para não perde-los de vista. O fragmento é simplesmente encantador!
parabéns.
Ao desnudar sua alma, escorreu dela rios de poesia.
Lindo demais, Manuel.
Beijo!
Uma história que nos rende...
Tão rica poeticamente, com uma narrativa sedutora e
senso de humor guiado pela inteligência expressiva
no uso da primeira pessoa possibilitando ao leitor,
uma participação voyeur no confessionário
deste romance...
Brilhante fragmento!!
Beijo.
Uma prosa de luxo, na primeira pessoa, confere ao leitor uma aproximação, uma cumplicidade, uma intimidade cativante; nela corre um rio caudaloso de linguagem poética que cria o ambiente especial para as revelações,para as confissões da alma humana.
Muito bom!
Não tenho palavras para te dizer quanto gostei deste teu texto... Como disse Herberto Helder "todas as histórias pessoais são simples e tenebrosas". Esta é uma história muito bela. Para continuar, não é assim?
Um beijo, meu amigo.
É uma palavra que digo poucas vezes: "lindo".´
- Lindo!
Já está! Aaaaa!... pronto ... sinto-me até aliviado!... disse "lindo!"... afinal até não custou muito dizer "lindo!"...
Já agora que estamos comentando palavras/histórias lindas:
um lindo abraço Pata Negra
que coisa linda ver o Pata Negra a perder a "virgindade" e a dizer "LINDO" ...
essa fica cá gravada, pá!
abraço fraterno.
que coisa linda ver o Pata Negra a perder a "virgindade" e a dizer "LINDO" ...
essa fica cá gravada, pá!
abraço fraterno.
Que texto "meu amor" de amigo!
Que excelente prosa! Não sei se deva classifica-la como narrativa ou como descrição, mas o importante é que não cansa e encanta.
A traição e a atração, nestes moldes, acho-a linda e não "pecadora".
E qdo saíram a urgência era fome lavada, séria, de ternura inteira e de ambos. Tão bom, assim!
Fique bem, recordando!
Que maravilha! O amor a par e passo com os caminhos de cada um na História!
Boa noite, Manuel. :)
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