A tarde abafava.
Os corpos eram exaustos. A coluna militar, à chegada, fora envolvida, nos
gritos da criançada, que suspendeu o jogo com uma bola de trapos (as
brincadeiras das crianças pobres são as mesmas em toda a parte) no largo da
Tabanca, que tanto servia como campo de brincadeiras, como de “parada” militar.
A ladear o espaço, descaindo para o lado da fronteira, um frondoso embondeiro,
rodeado, por bancos toscos de pedra, servia, com sua sombra, de plateau, nas
decisões colectivas e ócios (permanentes) dos homens grandes da Tabanca. Esguia uma cana de bambu, mal
ultrapassando a copa do embondeiro, arvorando a bandeira nacional, em posição
invertida, como o Alferes nunca imaginara e era antevisão, décadas depois, de umas presidenciais comemorações da
implantação da República, nos Paços do Concelho de Lisboa e do zelo do futuro cavaquismo pelos símbolos e valores
pátrios e também prenúncio eloquente de nova(s) decadência(s), em que o “cravo e canela” se devolve “em apagada e vil tristeza”, já não cinza
de míticos impérios, mas antes da “Europa
connosco” e seus desenvolvimentos futuros e da Ilusão europeia que para “Sonho”
sempre lhe faltou o “o Azul e a Asa”.
Electrizante a
atmosfera. O ar denso oprimia o peito e mal deixava respirar. Apeados das
viaturas, os homens, em formação militar, aguardavam, enquadrados pelos respectivos
comandantes de secção. A uns metros de distância, alguns militares da pequena
guarnição, desgrenhados, seminus ou de camisa aberta, barbudos e sebentos,
olhavam os camaradas de armas recém-chegados, briosamente fardados em fato de
combate e em impecável formação, como extraterrestres. Do interior da Tabanca, pachorrento, de alpergatas nos pés e tronco
nu, cabeça descoberta e cabelos raros, com uma sedentária barriga, qual barril de
cerveja pronto a explodir, saguim
empoleirado no ombro, surgiu, finalmente, o esperado sargento Fernandes, comandante
da secção de militares, a quem a honra da Nação e os desígnios do Império fora
confiada naquelas paragens e que, agora, o Alferes aguardava, não para
cerimónia formal de transmissão de poderes, que as circunstâncias dispensavam,
mas para prestar os esclarecimentos necessários em vista à instalação dos
camaradas de armas acabados de chegar.
Próximo da
exaustão, pela viagem e pela electricidade estática, que provinda da atmosfera,
empapava o solo e se infiltrava nos poros, com um peso obsessivo nos órgãos
vitais, pressentia-se a ansiedade pelotão em ver terminada a formatura. No
entanto, bem sabiam os militares sob seu comando, que o Alferes, cúmplice e
amigo em horas de lazer e descontracção, não tolerava “baldas” em serviço, nem
desleixos. Assim, o rosto dos homens em formatura animou-se, num sorriso aberto,
face à “aparição” clownesca do sargento Fernandes, antecipando o gozo pela “pissalhada” que o Alferes lhe tinha
certamente reservado e que se adivinhava em explosão, como fulminante
tempestade.
De facto, o
Alferes, com o desagrado estampado no rosto, coçava “as partes baixas”, como em ocasiões de maior tensão sempre
acontecia, num tique nervoso que ganhava foros de hábito e se prestava a
desbragados dichotes na caserna, numa camaradagem impoluta entre homens acorrentados
ao mesmo destino. Sabia de antemão o Alferes que o desenrolar da cena, em
público, à vista de toda a Tabanca, poderia ser fatal para a consideração em
que era tido pelos homens que comandava – bastaria, por exemplo, que o Sargento
“lateiro”, homem com largos anos de
tarimba militar, tivesse recalcitrado, face às circunstâncias públicas da
admoestação ou ao exagero do tom e da forma em que foi admoestado. Porém, mais
que a exigível ponderação das circunstâncias, na voz do Alferes sou mais alto a
sua natureza, ou seja, sua atávica repulsa contra a autocomiseração e os comportamentos
moles e atitudes desleixadas, pois que aprendera, com o leite materno, que “na vida se pode perder tudo, mas nunca se
pode perder a dignidade”, postulado ético que lhe servia de imperativo categórico a modelar os comportamentos
humanos, quer individuais, quer colectivos.
Assim, a voz do
Alferes soou, com o vigor de uma chibata, face a mão descuidada que o Sargento
lhe estendia, ignorando a devida continência militar: “Nosso Sargento, que rebaldaria é esta? O que o leva a supor que
dispenso a sua apresentação formal? Mas nessa “figurinha” carnavalesca, nem
pensar! Tem dez minutos para, devidamente fardados, se apresentar com os seus
homens em parada...” E dirigindo-se ao furriel mais antigo, comandante da
1ª Secção: ”Furriel Dias, mande os
soldados ensarilhar armas e aguardarem em formatura...”
Abafava-se. Mas
a reprimenda parece ter gelado os ares. E próprio o sorriso cúmplice dos
militares se perdeu, na ansiedade dos corpos suados, que exigiam a libertação
da asfixiante farda de combate. O espaço, deserto agora da criançada e com
militares da guarnição correndo atrás do Sargento rumo à caserna, foi pouco a
pouco rodeado pela população, que seguia o aparato militar, com estranheza e viva
curiosidade.
Do solo,
levantava-se uma poeira quente, insuflada por insistentes redemoinhos, que em
turbilhão, subiam aos céus carregados de negro e electricidade, quais tufos e
cornucópias desgrenhadas em alvoroço telúrico.
O alvo de todos
os olhares, era agora o Alferes. No centro da parada, em rigorosa posição de
sentido, recebia a continência do Sargento Fernandes e dos militares guarnição
que por ele desfilaram em passo de “ordem unida” e se foram colocar, em
formação, no início da coluna militar recém-chegada, como lhe fora determinado.
À voz de comando do Alferes, toda a coluna reunida num só corpo militar,
desfilou em, em “ordem unida”, até ao do embondeiro dos homens grandes da Tabanca e à arvorada bandeira nacional. Ordenou o
Alferes, perante a sua estranheza do Sargento, que arriasse a bandeira nacional
em vista a ser hasteada, devidamente colocada no improvisado mastro. E, num
aparte sibilado, apenas pelos dois audível: “Se
o nosso Sargento não sabe ou esqueceu qual a posição correcta da bandeira no
mastro, chamo um dos meus soldados mais básicos!...”.
Visivelmente
constrangido, mas sem esboçar qualquer palavra ou gesto de
contrariedade, fixou o Sargento novamente bandeira na extremidade da cana,
agora, sim devidamente, com o pano verde junto da haste e o vermelho
ondulante, ao vento...
Os homens grandes, primeiro indiferentes,
olhavam intrigados. Mais distantes, à entrada do pequeno edifício alfandegário,
que com a guerra passou servia de posto da Pide, o chefe Antunes e o “Cámenino” calaram o miserável sorriso de
hienas, à voz de comando do Alferes e os militares perfilados, apresentando
armas em rigorosa formatura e bandeira nacional subindo, na medida em que a
cana bambu se desdobrava, lentamente, nas mãos do Sargento até ficar fixa no
improvisado suporte, a dardejar sobre o embondeiro.
“Mas que fervor patriótico, Manuel!... Admirável
este teu eclectismo. Depois da recaída neo-realista, páginas atrás, descai agora
o teu pé literário para a chinela do romantismo de pendor nacionalista. Com uns
acordes de fado e teríamos então um filme de propaganda nacionalista, digno do
cineasta maior do regime, chamado António Lopes Ribeiro. Ou, sabe-se lá –
acentuas a ironia e o sorriso – se tua empolgante descrição não daria uma
crónica actualizada do próprio António Ferro!...”
O que aí vai, Maria Adelaide. Cada vez mais acutilante
esta queda para comigo implicares e que tão bem cultivas, mas que a mim não engana,
pois esse teu jeito, que terás que reconhecer, por vezes, um pouco excessivo,
outra coisa não é, senão uma forma de chamares a atenção, como criança o regaço
materno, requerendo, uma carícia ou um beijo, que noutros tempos seria acendalha
do fogo que nos consumia que agora é cinza que nos aquece. De resto, como gazela
ciosa, pressentes “competição” feminina e advinhas que, para lá do palco e dos
cenários em que nos dissimulamos e mesmo para além do trama em que o texto se
engendra, se perfila Dona Rosalinda a reivindicar os seus direitos na
narrativa. E isso, mais que a inquietação com meu destino literário, provoca-te
ansiedade e espicaça a tua curiosidade feminina e assim perdes de vista o que
verdadeiramente está presente na briosa performance militar do Alferes. Porém,
se te desses ao trabalho de escavar “o ruído da escrita”, bem se sabendo que “o
autor não existe” e, assim, também não o sujeito de um qualquer discurso moral,
em que te possas apoiar e estivesse um pouco mais atenta à linguagem das coisas
e ao sentido dos comportamentos, compreenderias então que o corpo físico da
escrita, em que o Alferes se desenha, no espaço mítico da Tabanca, é a
enunciação de um “discurso de poder”, cujo sentido faz explodir o mero jogo das
aparências. O que pretendo sublinhar é que do “outro lado” do Alferes, tal como
é apresentado, permanece uma realidade outra, possibilidade apenas, que fica
oculta no limbo da escrita e, no limite de um frágil acaso, estabelece a
diferenciação entre o “herói” e a vítima. Qual deles te mereceria mais cuidado?
Mas bem intuiu o Alferes a subtil diferença e as
ocultas “determinações” da sua acção, ou a fundas razões das suas escolhas que,
podendo a Tabanca marcá-lo com o anátema da “negatividade” o afirmou como “fiat
lux” promissor na saga em que se joga seu destino e que outra coisa não é senão
a clarividência de ter compreendido, antes de verdadeiramente o saber, que “não
existe poder, sem exercício do poder” e que todo o poder, seja qual for a sua
natureza, sobretudo o poder militar, se reveste de sinais, ritos e símbolos,
numa liturgia cujo exercício é a marca visível de “autoridade” e de domínio.
Porque, minha querida, as relações sociais, sejam elas expressão do microcosmos
da Tabanca ou do vasto Mundo, são relações de poder, em que uns quantos
(poucos) o exercem e os restantes (muitos) são sujeitos e que alguns, bem
conhecendo a tramóia em que o(s) poder(es) se desenrola(m), lhe(s) resistem e, ao
resistir-lhes, os liames de um poder-outro vão tecendo. De que serviriam ao Alferes os seus doirados
galões de oficial do Exército se não fora a sabedoria e a oportunidade de colocar
“em sentido”, no sentido literal do termo, o Sargento Fernandes em manifesta
abjuração, pelo desleixo, da ideologia militar de que era enformado? E sem
resistência, obviamente, que a ideologia militar é “totalitária”, quer dizer, não
admite, sobretudo, em teatro de guerra, linhas de transigência, nem fissuras de
dissidência. Ao “vigiar e punir” um comportamento desviante, o Alferes redimiu o
poder militar de que provisoriamente era investido no escalão mais elevado e,
por momentos, precários que fossem, foi sumo-sacerdote da sua ideologia. Ámen!...
Finalmente a
ordem para destroçar. Os militares acossados pela ventania, cada vez mais forte,
corriam dos veículos militares com as bagagens para o velho armazém de
mancarra, agora deserto, que lhe iria servir de abrigo e dormitório. Bruscamente,
a escuridão total, absurda, apenas cortada pelos relâmpagos, luminosos,
brutais, insistentes, rasgando os céus, de alto a baixo, ou nascendo debaixo
dos pés, como se todas as portas do inferno fossem abertas e o apagamento da
Tabanca e da floresta num silêncio opressivo, rasgado por um urro da natureza,
um trovão medonho, provindo dos confins do Universo, como se toda Terra
tremesse e abrisse comportas do Céu em cordas de água, que fustigavam homens, árvores,
animais, telhados ou palhotas de mistura com os detritos que voavam, como fantasmas,
impulsionados pela ciclónica ventania. O Alferes, que aguardou, firme, que o último
homem estivesse a resguardo, de um momento para o outro, viu-se solitário no
espaço da parada, com a farda encharcada e escorrendo água, paralisado e
absorto, como que fulminado pela grandeza
belo-horrível do espectáculo a que assistia ao vivo. Acordou do torpor com
ruido uma folha de zinco a bater a seus pés e que vinda pelos ares quase lhe
ceifava o pescoço e, então, correu, desalmado, para o alpendre mais próximo, dominando a ansiedade e a sacudir a água.
- “Entre, senhor oficial. O senhor não precisa pedir
licença – esta casa é sua!...” – murmurou uma voz de mulher do interior
da casa.
10 comentários:
Não sou o senhor Alferes mas vou entrando, cada vez com mais agrado, nesta casa onde tenho sido gentil e amigavelmente recebida.
Apreciei, sobremaneira, a forte personalidade do Alferes e gostei imenso de mais este 'Fragmento'.
Apraz-me ter lido aqui, uma frase que repeti aos meus filhos, vezes sem conta, e penso ter-lhes transmitido o significado desse valor:
"Podemos perder tudo na vida, mas nunca a dignidade".
Obrigada, por nos proporcionar estas leituras tão agradáveis e interessantes, senhor Alferes(?)...:)
Beijinho
Um abraço pela ausência dos teus escritos...
e valeu mesmo ler este excerto que traduz exactamente a essência do saber assumir...realmente,não pode ser um tarimbeiro o representante do "exemplo", que não é...
valha-nos que o tarimbeiro a quem nunca o fato assentou bem, está de saída, sem saudades...
abraço
Uma metáfora de excelência. Mais um grande fragmento de um todo que é uma pérola feita escrita.
(não menciono o lateiro, faz parte dele mas nele não tem "lugar"),
Grande abraço meu irmão
"Bué da texto, meu"!!!!!!!!!!!!! Estive quase uma hora a ler, e com muito agrado, o que escreveu. Gosto da mudança do tipo de letra, assunto que parece diferente, mas está tudo no mesmo "saco".
África "Tua", lembranças, k só os homens sabem contar, a sagrada e necessária tropa, o tradicional e convencional coçar dos órgãos sexuais masculinos (acho horrível e desprezível), sem saberem e sentirem o k estão a fazer, a política antiga e a atual, Cavaco Silva, mais uma vez, tipo saco de box ou bombo de festa (pra próxima, vamos ter um Marcelo, k já está um tanto tantã, assim lhe diz a filha, mas em quem votarei, sem problemas. La "gôche, em geral, não "vocês" gostam dele, pke ele fala na TVI, canal k não vejo e k deveria desaparecer, bate no "filho", sempre k necessário, e dá presentinhos aos apresentadores, é tipo "tu cá, tu lá", mas na boa, yah, segue), a Maria Adelaide, k antes proporcionava e fazia arder o "fogo", mas agora a meno e o PSA já não permitem. Ok! as cinzas tb aquecem, pouco, acho eu.
Alferes é Alferes, é um posto, ou seja, é um homem igual aos outros homens.
História das Mentalidades foi uma cadeira que fiz na Faculdade, dois anos, e que aconselho vivamente.
Vesta é a denominação que melhor me assenta, até pke é "realidade". Eu e as minhas amigas, Diana e Minerva, formamos um trio, quero dizer, temos três, disparate, somos três, queria eu escrever.
Baisers pour tout le monde, et pour Antoine, un gros et special bisous.
À la prochainne, chéri ami!
PS: "quê dezer", o "SÓTOR" deixa no meu blogue um comentário de uma mísera linha, e eu escrevo um tratado. Essa "coisa" das desigualdades, tem de acabar. Tem! Tem!
Suas crônicas, Manuel, revestem-se sempre de completa elegância.
Beijos!!!
As tuas memórias... Que interessante ler-te neste registo. Gosto da Maria Adelaide...
Um beijo, meu Amigo.
Estou a ver-te
em memórias vivas
publicadas em tantos outros apeadeiros
recriados
Que não te doam os dedos
Abraço sempre
Meu amigo,
A tua escrita cola-se a nós, entra-nos pelos poros...
Excelente momento!
Um abraço
Poeta amigo,
A excelência da tua escrita navega por onde
as palavras inscrevem significados, cenas,
perfis de personagens no espaço contextual
que nos hipnotiza...
Fazendo com que nós (leitores) fiquemos a
desejar a história mais e mais...
E agora outra personagem feminina?
Fiquei curiosíssima...rsrs
beijo.
A natureza reequilibra as intermitências da razão. Não fora a voz de comando, o trovão viria, como veio, apaziguar os espíritos relaxados de desânimo. E virá.
Bela prosa como prova de um tempo que foi nosso. Que ainda é o nosso.
Abraço
Enviar um comentário