Temos,
pois que o “Assobio” inscreveu, literalmente na pedra, quer dizer, na ardósia,
o seu próprio nome, a si se nomeando Eusébio da Silva Ferreira. O nome de
baptismo – Eusébio – em verdade o seu único ou “próprio nome”, consagrado no simbólico
banho da água Jordão a jorrar na Pia Baptismal e nomeado por “Aquele que não
tem nome” mas tudo nomeia, e assim estabelece a “a ordem” de toda a criação e
ungido também o infante-menino, agora Eusébio, com os Santos Óleos nas aberturas
de seu corpo para selar tais abertura às perfídias o Maligno, a que os registos
(canónico e civil) acrescentaram os apelidos de seus honrados pais, pessoas
humildes, mas dignas. E, neste acto inaugural de nomeação, quer dizer, da
outorga mítico-religiosa do nome, o “Assobio”, autoproclamando-se agora Eusébio,
por sua própria mão, a deslizar sobre a ardósia, no acto também ele mágico da
escrita - nome de santo o seu - Santo Eusébio, Papa e mártir, deposto e
deportado por imperador romano nos “idos” de 300 d.C., e a si próprio se concede
como que uma espécie de carta de alforria e se atribui o direito ao nome, e se
ergue no centro todas as coisas criadas como “pessoa”, quer dizer, estabelece e
fixa o sinal, mediante o qual a sociedade o irá interpelar e a reconhecer; e, desta
forma, o Apoucalhado Assobio, agora Eusébio, dará consagração prática à
consigna jurídica que a modernidade introduziu na História de que “todos os homens nascem e permanecem livres
e iguais em direitos e (por força do nome, seja ele nobre ou plebeu) as distinções sociais não podem ser
baseadas senão na utilidade comum”, donde decorre, com meridiana clareza,
que o nome da pessoa Eusébio, jamais poderá ser objecto de outorga, quer dizer,
jamais poderá ser imposto por uma arbitrária vontade individual, chama-se ela,
essa vontade, sacerdote, rei, general ou coronel, nem por desígnio ou por decisão
de uma classe ou de uma qualquer “ordem” social. Nem sequer por grupo de
reguilas alfacinhas... Nem, também, sequer - ó escândalo herético! – por “Aquele”
que “não tem Nome, mas que tudo nomeia...”
Na
realidade, como bem se sabe, o nome constitui, a partir das Luzes, um direito
natural, de que todos os homens sem excepção, são sujeitos, sejam eles
“apoucalhados Assobios”, provindos dos cumes da Serra da Gardunha, sejam eles doutores
ou engenheiros, coronéis “calcinhas” ou generais comandante-chefe, capitães de
cavalaria de monóculo e pingalim, alferes contrafeitos, ou sargentos ou praças,
ou reguilas alfacinhas, quer dizer, portanto, que o nome igualiza todos os
homens, colocando-os, ao menos no plano formal, em lugar idêntico perante o
Direito...
Sejamos
então claros. O acto do Assobio, que no gesto inaugural da escrita, inscreveu o
seu próprio nome na ordem das permanências e do reconhecimento mútuo e,
portanto, se assumiu por inteiro como Pessoa fez estoirar a ordem estabelecida que
até então à sua volta se moviam e, por certo sem o saber, estabeleceu, no que a
si diz respeito, uma nova grelha de sociabilidade no espaço sócio militar que o
envolvia, extraindo, assim, da sua condição de Apoucalhado, os filamentos da
nova personalidade, ou seja, da identificação e individuação pessoal que para
sempre o irá vincular à sua vivência e ao mérito (e ao demérito) da sua
participação social futura, no espaço da cidadania.
Mas
se a ordem jurídica, reconhece todos homens como iguais e os igualiza, em razão
do nome que ostentam, a ideologia porém os distingue e diferencia de tal forma
que o mesmo nome Eusébio da Silva Ferreira pode, em concreto, referir-se a dois
homens tão díspares, sem no entanto os confundir – catapultado um, Assobio toda
a vida, das alfurjas da cozinha para as dragonas e alamares nos salões da messe
de oficiais e o outro, catapultado de um bairro negro de Moçambique para as
paragonas do Mundo e, qual “Pantera Negra”, para as altura dos modernos heróis,
prova provada de que Portugal era grande e único, que ia do Minho a Timor,
cumprindo, fosse qual fosse o remoto lugar, seu destino glorioso de integração de todas as raças.
Como bem se conhece as
conversas são como as cerejas, palavra puxa palavra, uma ideia prende-se a
outra ideia de tal forma que a narrativa é um discurso descosido, largando
pontas e procurando outras, “anarquia narrativa” que agora nos levaria por
outros rumos, mas Maria Adelaide está manifesta contrariada, ansiando o
regresso a África e ao enigma de suas origens e a menina Gertrudes, conhecida,
no universo militar, urbe et orbe, como faminta “Papa Alferes” protesta,
ansiosa por subir ao palco.
Vamos, por isso, ao que
interessa...
A "Papa
alferes" devia a sua expressiva (e merecida) alcunha a um mero acidente.
Residia do outro lado da praça mesmo em frente da porta de armas. Ora digam-me
qual donzela casadoira, bem dotada pela natureza, poderia resistir aqueles
corpos suados em aplicação militar ou em desfile brioso de ordem unida na
parada do quartel? Quem, de sexo feminino que atire a primeira pedra. Ela, menina
Gertrudes que, manhãs inteiras, espreitava gulosa por entre as persianas ou
como generosa oferta de fruta madura, todo o seu corpo gritava "colhei-me!", assim também ela
parecia gritar aos garbosos milicianos, ao fim da tarde, quando brunidos os
metais da farda e luzidas as botas de montar, sacudiam as esporas e o cio em
predadoras cavalgadas pelas ruas e na casa de chá da pequena cidade.
O quartel, como ficou dito, era uma
eficaz "fábrica" de carne para canhão, que no auge da guerra colonial,
preparava vagas sucessivas de tropas expedicionárias em África, de tal sorte
que, de três em três meses, havia reposição de stocks de milicianos. Quem tirava partido dessa profusão de militares
era a "papa alferes". Em cada leva fazia sempre uma ou duas
"recrutas"!... Um autêntico debaste nas fileiras!...
O Alferes, que ainda não era, acabadinho
de chegar da Escola Prática, com seus imberbes galões doirados atravessados nos
ombros, e tenro de casernas, acabou filado (como era de esperar) pela gula
proverbial da "papa alferes" e de sua tia, com a qual vivia no
segundo andar do pequeno prédio burguês. A causa próxima de tal desastre
anunciado, foi o sempre desastrado comportamento do apoucalhado Assobio, que não soube moderar o seu ímpeto de sangue serrano
e, na dispensa ao recolher obrigatório,
com a camarilha de seus amigos reguilas
alfacinhas, já noite comemoravam a carta
de alforria e o reconhecimento dos
seus iguais pela inscrição na pedra, que dizer, na ardósia escolar, o seu mítico nome de Eusébio.
Regressava então o grupelho ao Quartel,
qual bando de pássaros da Gardunha, já noite de Fevereiro caída, quando a
menina Gertrudes, por certo inadvertidamente, pois que outros eram seus horizontes,
se atravessou no caminho e o grupo, com o sangue na guelra e toldado pelos
copos ingeridos, aproveitou a sombra de uma esquina e encostou a menina
Gertrudes à parede, numa série de apalpões e sugestiva linguagem gestual, em
que sobressaiu o desastrado Assobio, não apoucalhado,
mas sem dúvida atrasado na iniciação
em corpo de mulher, de tal sorte, que no dia seguinte teríamos no Gabinete do
Comandante da Unidade, as duas excelsas senhoras, a tia apresentando a queixa
indignada e menina Gertrudes, “corpo de
delito”, exibindo uns aranhões em suas roliças coxas.
Foi então o Alferes
chamado, já que os recrutas em causa estavam sob seu directo comando e o
Comandante, após a perfilada continência, ordenou, numa indignação exagerada, “esta é uma situação intolerável, homens sob
meu comando não molestam senhoras, quero esse bando de arruaceiros com um
castigo exemplar! E, fazendo uma eufórica pausa no inflamado discurso: “Nosso Alferes, é a Justiça Militar que o
exige, mão rija – desenrasque-se!...
E o Alferes desenrascou-se, como em
seguida se dá esclarecida nota. O “Auto
de notícia” ordenado requeria frequentes audições das ofendidas, pelo que a
presença da menina Gertrudes e sua santa tia eram frequentes e como se sabe o “fogo ao pé da estopa vem o Diabo e assopra”,
como noutro tempo e espaço narrativo, outro “apoucalhado”
anunciou, de tal forma que a pertinaz indignação da menina e sua tia iam
esmorecendo na proporção das vezes que eram chamadas a depor.
Entretanto, o Carnaval estava a próximo.
A menina Gertrudes com autorização de sua tia, organizou um “assalto” em casa para
onde convidou as suas amigas mais próximas e alguns amigos, no rol dos quais
incluiu o Alferes, a nova coqueluche do seu círculo do salão de chá do hotel
Turismo.
Encurtando razões o namoro surgiu naturalmente, com a menina Gertrudes
e sua tia a esquecerem a ofensa e o fogo
pegar na estopa, como se irá ver. A tal ponto a coisa era badalada, que uma tarde, à hora do brigde e do conhaque, o Comandante da Unidade, visivelmente satisfeito com a resolução do caso, soltou uma “boca” digna
de militar com largos anos de serviço, por entre a gargalhada geral da messe
repleta: - "Veja lá, nosso Alferes,
se me aparece aqui no quartel com algum bocado a menos!"...
“Farei o possível por defender honra do
regimento, meu comandante!" - resposta pronta do novel oficial, num
marialvismo de caserna, adequado às circunstâncias.
O namoro seguia pois seu curso. A
"papa alferes" era pródiga de carnes e afectos e a tia óptima
cozinheira. Porém, os assaltos do rapaz à praça-forte eram insistentemente repelidos... Que não! Que era uma rapariga séria e os
militares uns malandros! Que só se
prometesse que casariam, antes de embarcar para Africa!
Que pode um militar
fazer, quando a fortaleza almejada se esquiva ao brioso lidador? Prometeu! Prometeu
que sim que casariam!... E mais não prometeu, por que mais não foi necessário:
a vitória consumou-se quando uma tarde, estando de “Oficial de Dia”, recebeu do
aprumado ordenança, um bilhetinho perfumado: -" vem, tia teve que se ausentar para Lisboa!"...
Foi. O Alferes
trocou de serviço com valente Valentim, camarada e amigo de todas as horas e...
foi. Em boa hora!... Foi uma noite gloriosa, entoada nas mais bem orquestradas
melodias de amor. Nunca o rapaz sentira, como dessa vez, os cambiantes
maravilhosos do corpo de uma mulher inspirada e... experiente!
Porém, o que é bom acaba depressa, lá
diz o ditado. Uma noite, já com a tia de regresso, o rapaz foi chamado de
urgência! - "Seu pulha!" - Gritou
a velha, mal o Alferes assomou à porta. "Ponha-se
fora desta casa!”..."O que se passa?”- balbuciava, atónito, o Alferes.
”Rua, rua”- gritava a velha!
“Seja,
pois, a rua!"
- diz, filosófico, o rapaz para os seu
botões. E foi, rumo ao quartel, meditando na precaridade das coisas boas da
vida.
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