terça-feira, março 01, 2016

FRAGMENTOS XII - A Papa Alferes em seu esplendor..


Temos, pois que o “Assobio” inscreveu, literalmente na pedra, quer dizer, na ardósia, o seu próprio nome, a si se nomeando Eusébio da Silva Ferreira. O nome de baptismo – Eusébio – em verdade o seu único ou “próprio nome”, consagrado no simbólico banho da água Jordão a jorrar na Pia Baptismal e nomeado por “Aquele que não tem nome” mas tudo nomeia, e assim estabelece a “a ordem” de toda a criação e ungido também o infante-menino, agora Eusébio, com os Santos Óleos nas aberturas de seu corpo para selar tais abertura às perfídias o Maligno, a que os registos (canónico e civil) acrescentaram os apelidos de seus honrados pais, pessoas humildes, mas dignas. E, neste acto inaugural de nomeação, quer dizer, da outorga mítico-religiosa do nome, o “Assobio”, autoproclamando-se agora Eusébio, por sua própria mão, a deslizar sobre a ardósia, no acto também ele mágico da escrita - nome de santo o seu - Santo Eusébio, Papa e mártir, deposto e deportado por imperador romano nos “idos” de 300 d.C., e a si próprio se concede como que uma espécie de carta de alforria e se atribui o direito ao nome, e se ergue no centro todas as coisas criadas como “pessoa”, quer dizer, estabelece e fixa o sinal, mediante o qual a sociedade o irá interpelar e a reconhecer; e, desta forma, o Apoucalhado Assobio, agora Eusébio, dará consagração prática à consigna jurídica que a modernidade introduziu na História de que “todos os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos e (por força do nome, seja ele nobre ou plebeu) as distinções sociais não podem ser baseadas senão na utilidade comum”, donde decorre, com meridiana clareza, que o nome da pessoa Eusébio, jamais poderá ser objecto de outorga, quer dizer, jamais poderá ser imposto por uma arbitrária vontade individual, chama-se ela, essa vontade, sacerdote, rei, general ou coronel, nem por desígnio ou por decisão de uma classe ou de uma qualquer “ordem” social. Nem sequer por grupo de reguilas alfacinhas... Nem, também, sequer - ó escândalo herético! – por “Aquele” que “não tem Nome, mas que tudo nomeia...”

Na realidade, como bem se sabe, o nome constitui, a partir das Luzes, um direito natural, de que todos os homens sem excepção, são sujeitos, sejam eles “apoucalhados Assobios”, provindos dos cumes da Serra da Gardunha, sejam eles doutores ou engenheiros, coronéis “calcinhas” ou generais comandante-chefe, capitães de cavalaria de monóculo e pingalim, alferes contrafeitos, ou sargentos ou praças, ou reguilas alfacinhas, quer dizer, portanto, que o nome igualiza todos os homens, colocando-os, ao menos no plano formal, em lugar idêntico perante o Direito...

Sejamos então claros. O acto do Assobio, que no gesto inaugural da escrita, inscreveu o seu próprio nome na ordem das permanências e do reconhecimento mútuo e, portanto, se assumiu por inteiro como Pessoa fez estoirar a ordem estabelecida que até então à sua volta se moviam e, por certo sem o saber, estabeleceu, no que a si diz respeito, uma nova grelha de sociabilidade no espaço sócio militar que o envolvia, extraindo, assim, da sua condição de Apoucalhado, os filamentos da nova personalidade, ou seja, da identificação e individuação pessoal que para sempre o irá vincular à sua vivência e ao mérito (e ao demérito) da sua participação social futura, no espaço da cidadania.

Mas se a ordem jurídica, reconhece todos homens como iguais e os igualiza, em razão do nome que ostentam, a ideologia porém os distingue e diferencia de tal forma que o mesmo nome Eusébio da Silva Ferreira pode, em concreto, referir-se a dois homens tão díspares, sem no entanto os confundir – catapultado um, Assobio toda a vida, das alfurjas da cozinha para as dragonas e alamares nos salões da messe de oficiais e o outro, catapultado de um bairro negro de Moçambique para as paragonas do Mundo e, qual “Pantera Negra”, para as altura dos modernos heróis, prova provada de que Portugal era grande e único, que ia do Minho a Timor, cumprindo, fosse qual fosse o remoto lugar, seu destino glorioso de integração de todas as raças.

Como bem se conhece as conversas são como as cerejas, palavra puxa palavra, uma ideia prende-se a outra ideia de tal forma que a narrativa é um discurso descosido, largando pontas e procurando outras, “anarquia narrativa” que agora nos levaria por outros rumos, mas Maria Adelaide está manifesta contrariada, ansiando o regresso a África e ao enigma de suas origens e a menina Gertrudes, conhecida, no universo militar, urbe et orbe, como faminta “Papa Alferes” protesta, ansiosa por subir ao palco.

Vamos, por isso, ao que interessa...

A "Papa alferes" devia a sua expressiva (e merecida) alcunha a um mero acidente. Residia do outro lado da praça mesmo em frente da porta de armas. Ora digam-me qual donzela casadoira, bem dotada pela natureza, poderia resistir aqueles corpos suados em aplicação militar ou em desfile brioso de ordem unida na parada do quartel? Quem, de sexo feminino que atire a primeira pedra. Ela, menina Gertrudes que, manhãs inteiras, espreitava gulosa por entre as persianas ou como generosa oferta de fruta madura, todo o seu corpo gritava "colhei-me!", assim também ela parecia gritar aos garbosos milicianos, ao fim da tarde, quando brunidos os metais da farda e luzidas as botas de montar, sacudiam as esporas e o cio em predadoras cavalgadas pelas ruas e na casa de chá da pequena cidade.

O quartel, como ficou dito, era uma eficaz "fábrica" de carne para canhão, que no auge da guerra colonial, preparava vagas sucessivas de tropas expedicionárias em África, de tal sorte que, de três em três meses, havia reposição de stocks de milicianos. Quem tirava partido dessa profusão de militares era a "papa alferes". Em cada leva fazia sempre uma ou duas "recrutas"!... Um autêntico debaste nas fileiras!...

O Alferes, que ainda não era, acabadinho de chegar da Escola Prática, com seus imberbes galões doirados atravessados nos ombros, e tenro de casernas, acabou filado (como era de esperar) pela gula proverbial da "papa alferes" e de sua tia, com a qual vivia no segundo andar do pequeno prédio burguês. A causa próxima de tal desastre anunciado, foi o sempre desastrado comportamento do apoucalhado Assobio, que não soube moderar o seu ímpeto de sangue serrano e, na dispensa ao recolher obrigatório, com a camarilha de seus amigos reguilas alfacinhas, já noite comemoravam a carta de alforria e o reconhecimento dos seus iguais pela inscrição na pedra, que dizer, na ardósia escolar, o seu mítico nome de Eusébio.

Regressava então o grupelho ao Quartel, qual bando de pássaros da Gardunha, já noite de Fevereiro caída, quando a menina Gertrudes, por certo inadvertidamente, pois que outros eram seus horizontes, se atravessou no caminho e o grupo, com o sangue na guelra e toldado pelos copos ingeridos, aproveitou a sombra de uma esquina e encostou a menina Gertrudes à parede, numa série de apalpões e sugestiva linguagem gestual, em que sobressaiu o desastrado Assobio, não apoucalhado, mas sem dúvida atrasado na iniciação em corpo de mulher, de tal sorte, que no dia seguinte teríamos no Gabinete do Comandante da Unidade, as duas excelsas senhoras, a tia apresentando a queixa indignada e menina Gertrudes, “corpo de delito”, exibindo uns aranhões em suas roliças coxas.

Foi então o Alferes chamado, já que os recrutas em causa estavam sob seu directo comando e o Comandante, após a perfilada continência, ordenou, numa indignação exagerada, “esta é uma situação intolerável, homens sob meu comando não molestam senhoras, quero esse bando de arruaceiros com um castigo exemplar! E, fazendo uma eufórica pausa no inflamado discurso: “Nosso Alferes, é a Justiça Militar que o exige, mão rija – desenrasque-se!...

E o Alferes desenrascou-se, como em seguida se dá esclarecida nota. O “Auto de notícia” ordenado requeria frequentes audições das ofendidas, pelo que a presença da menina Gertrudes e sua santa tia eram frequentes e como se sabe o “fogo ao pé da estopa vem o Diabo e assopra”, como noutro tempo e espaço narrativo, outro “apoucalhado” anunciou, de tal forma que a pertinaz indignação da menina e sua tia iam esmorecendo na proporção das vezes que eram chamadas a depor.

Entretanto, o Carnaval estava a próximo. A menina Gertrudes com autorização de sua tia, organizou um “assalto” em casa para onde convidou as suas amigas mais próximas e alguns amigos, no rol dos quais incluiu o Alferes, a nova coqueluche do seu círculo do salão de chá do hotel Turismo.

Encurtando razões o namoro surgiu naturalmente, com a menina Gertrudes e sua tia a esquecerem a ofensa e o fogo pegar na estopa, como se irá ver. A tal ponto a coisa era badalada, que uma tarde, à hora do brigde e do conhaque, o Comandante da Unidade, visivelmente satisfeito com a resolução do caso, soltou uma “boca” digna de militar com largos anos de serviço, por entre a gargalhada geral da messe repleta: - "Veja lá, nosso Alferes, se me aparece aqui no quartel com algum bocado a menos!"...

Farei o possível por defender honra do regimento, meu comandante!" - resposta pronta do novel oficial, num marialvismo de caserna, adequado às circunstâncias.

O namoro seguia pois seu curso. A "papa alferes" era pródiga de carnes e afectos e a tia óptima cozinheira. Porém, os assaltos do rapaz à praça-forte eram insistentemente repelidos... Que não! Que era uma rapariga séria e os militares uns malandros! Que só se prometesse que casariam, antes de embarcar para Africa!

Que pode um militar fazer, quando a fortaleza almejada se esquiva ao brioso lidador? Prometeu! Prometeu que sim que casariam!... E mais não prometeu, por que mais não foi necessário: a vitória consumou-se quando uma tarde, estando de “Oficial de Dia”, recebeu do aprumado ordenança, um bilhetinho perfumado: -" vem, tia teve que se ausentar para Lisboa!"...

Foi. O Alferes trocou de serviço com valente Valentim, camarada e amigo de todas as horas e... foi. Em boa hora!... Foi uma noite gloriosa, entoada nas mais bem orquestradas melodias de amor. Nunca o rapaz sentira, como dessa vez, os cambiantes maravilhosos do corpo de uma mulher inspirada e... experiente!

Porém, o que é bom acaba depressa, lá diz o ditado. Uma noite, já com a tia de regresso, o rapaz foi chamado de urgência! - "Seu pulha!" - Gritou a velha, mal o Alferes assomou à porta. "Ponha-se fora desta casa!”..."O que se passa?”- balbuciava, atónito, o Alferes. ”Rua, rua”-  gritava a velha!

“Seja, pois, a rua!" - diz, filosófico, o rapaz  para os seu botões. E foi, rumo ao quartel, meditando na precaridade das coisas boas da vida.

Que se passara? Em breve saberemos

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