Sabemos, pois, como o Alferes (que ainda
não era) ficou a conhecer, por expressiva demonstração prática, que as coisas
boas da vida acabam depressa e, por isso, foi com bonomia, que o ainda imberbe
oficial aceitou a debandada da praça-forte. O que se passara?
A velha e devota senhora Dona .... percebendo
que o namoro da sobrinha com o Alferes “pegara fogo”, assumiu-se, em plenitude,
como fiel zeladora da virgindade da menina Gertrudes e, aceitando como divina a
sua missão na Terra de lhe proporcionar dote digno da sua beleza explosiva, escrevera
ao padre de uma aldeia ignorada, algures no norte do País, onde o Alferes viera
ao Mundo e, envolto em toalhas de linho preciosamente bordadas, por devotas e
imaculadas tias, zeladoras do Santíssimo Sacramento, não podendo ele próprio,
bebé de escassos meses, gravar na pedra (ardósia escolar que fosse) seu próprio
nome, foi baptizado e seu nome Manuel Caetano outorgado, no exercício de seu múnus
sacerdotal, pelo velho e santo padre Manuel, tio de Lia, replicando, na cerimónia
mágico-religiosa do baptismo, o nome próprio de seu avô, Manoel Caetano, nome
que, sendo uno, são dois e, dois (nomes que sejam), valem mais que um, e, assim, ungido
por sagrados óleos e pelo ritual e pela devoção, para o novel infante
“iniciado” foram transferidos, em sua dimensão simbólica, o conjunto dos valores éticos, políticos e
intelectuais, inscritos no âmago do nome padroeiro, seu avô e seu padrinho.
Mas vamos à questão que aqui nos trás. Que
problema sério ou salvação de alma seria aquela urgência tão premente que
determinasse a piedosa senhora, tia da menina Gertrudes, a solicitar favores e
perturbar a placidez daquelas longínquas e ignoradas paragens e, mais a mais, a
incomodar os deveres religiosos ou as santas leituras do pároco da Freguesia? Requeria
assim, a excelsa senhora, tia da “Papa-Alferes”, perante o escaldante namoro de
sua sobrinha com o Alferes de Cavalaria, ostentando como local de nascimento
aquela Paróquia, que Sua Reverência, lhe concedesse o obséquio de prestar informações
sobre o rapaz e sua família, ao mesmo tempo que a missiva desfiava o rol
detalhado das intimidades em que os havia surpreendido, ele Alferes que ainda
não era, abusador de sua boa-fé e da sua hospitalidade e ela inocente, virgem e
recatada, como compete a menina de boas famílias. Enfim, pretendia a distinta
senhora conhecer pequenas coisas que uma tia tem a obrigação de saber antes de
entregar a sobrinha a um Cavalheiro e Oficial de Cavalaria, prestes a embarcar
rumo à Guiné, em defesa da Pátria. Em resumo, pretendia a senhora a pequena
coisa de ser informada do montante dos cabedais, terras, influência social,
comportamento respeitador de Deus e do próximo, etc., etc... do jovem oficial e
cavaleiro e de sua excelentíssima Família.
Em sua sabedoria, Deus, nosso Senhor,
que administra, mesmo errando, o justo e o injusto, poupou o saudoso padre
Manuel, do desgosto e do opróbrio da resposta, pois como ficou dito, foi por
sua mão que o Rapaz recebera o sagrado sacramento do baptismo, mas também a
primeira comunhão e o crisma e fora ele, com suas devotas tias a fazerem coro,
que o encomendara à Virgem Maria, quando feito com distinção o exame da Quarta
Classe, sua família decidiu – sabe-se lá que aventura – a enviar o dócil
rapazinho, que ostentava o nome Manuel Caetano, como seu tonitruante avô, para
a cidade mais próxima, entregue aos cuidados de parentes afastados, que por ele
velaram, durante os sete anos de frequência do Liceu e caíam agora, vindas
sabe-se lá de onde, tão agudas e perturbadoras preocupações de uma senhora que
não se sabia quem era, mas por certo ofendida, tão negras eram as cores que
tingiam o carácter do garboso oficial que, certamente, teriam despachado o
santo Padre Manuel para o outro Mundo, não fora a Divina Providência e dedo de
Deus, terem-no levado antes, roído de uma ferida ruim, que dia após dia, em
resignado sofrimento, lhe roeu a garganta até à morte.
Não existia, pois, pároco na Paróquia,
pois que, tendo o Criador levado o Padre Manuel para o seu divino regaço, como
acontece a todos os justos, também o jovem e macilento Padre Francisco, nomeado
que fora, por decreto bispal e entronizado, com o regozijo dos paroquianos, para
lhe suceder, também o novo Pastor havia abandonado à sua sorte o rebanho, para
debandar, rumo a África, num final de Verão, depois da homilia dominical, num
carro ligeiro, por entre solavancos, poeira e enjoos de Lia, grávida de alguns
meses, que levava em seu ventre, como única bagagem, o fruto sagrado de seus amores pecaminosos. (E de tua solidão, Lia...)
Desta sorte, preparava-se o carteiro
para devolver a missiva, quando alguém lembrou o Padre Casimiro, residente numa
aldeia vizinha, que sendo padre, não tinha, nem nunca tivera, nem paróquia, nem
missa certa, pois que a obrigatória missa diária da sua condição de clérigo,
ele a celebrava quando muito bem lhe apetecia, para criados e serviçais na
capela do seu palacete oitocentista, um pouco decadente, é verdade, mas ainda
de pé e, assim, mais que clérigo, se considerava o Padre Casimiro como Lavrador,
não um lavrador ou padre quaisquer, mas lavrador abastado de terras e cabedais
e padre, mais dado a prazeres da carne, que às penitências da santidade, e que,
em casos extremos, fossem tais casos ditados por amizade, ou ditados por
piedade, se via constrangido a oficiar uma ou outra cerimónia religiosa, designadamente,
na aldeia da naturalidade do Alferes, onde mantinha vastas terras e amizades
sólidas. Assim, por destino ou capricho da sorte, ou da Divina Providência, a
missiva da augusta senhora, tia da menina Gertrudes, a consagrada
“Papa-Alferes”, que tanto alvoroço causara na pacata povoação, foi parar às
abençoadas mãos do Padre Casimiro, amigo do peito que fora de Manoel Caetano,
viúvo e, entretanto falecido do avô do Rapaz, agora Alferes de Cavalaria, companheiros
dilectos ambos, Padre Casimiro e Manoel Caetano, de farras e noitadas e, ombro
com ombro, ambos fortes e rijos, de não raras zaragatas de varrer a feira,
quando razão surgia e o calor do álcool apertava. Aliás, vezes sem conta, depois
da morte de seu avô, Manoel Caetano, que Deus ou o Diabo, ou talvez os dois,
Deus e o Diabo, o houveram levado cedo, o Rapaz ouvira da boca do padre
Casimiro, lá do alto de seu feroz republicanismo, a roçar o “reviralho”, de
cada vez a façanha contada, a acrescentar um pormenor e esquecendo outros, pois que a
memória não é sempre a mesma e os factos variam, conforme o registo que deles
temos, sem se saber, porventura, muito bem se os factos são realidade ou
ficção, mas dizíamos que, vezes sem conta o Rapaz ouvira da boca do Padre
Casimiro a heróica façanha dele, Casimiro Augusto Cordeiro Vasconcellos Mendes
e de seu amigo, Manoel Caetano Cleto Alves da Veiga, eram eles jovens e feros,
por ocasião das incursões monárquicas do Paiva Couceiro, terem apenas os dois,
à força de bordoada, corrido com a secção de monárquicos aboletados na vila e
restituídos os símbolos da República à sede da Administração do Concelho.
Ora, como se não bastassem os
inquebrantáveis vínculos entre as duas famílias, forjados, ao longo de anos, na
apascentação dos interesses comuns de domínio social, naquele microcosmo
fechado, estruturado numa rede de dependências mútuas, como se não bastassem,
então, tais vínculos de sólida amizade entre as duas famílias, verificava-se
ainda um pequeno must, um quase-nada, que aos olhos do bom Padre Casimiro transportava
o Rapaz para a galeria das celebridades e que lhe permitia, a ele, Padre
Casimiro, dizer, com expressiva convicção, que estava garantida a “velha
estirpe” dos “Caetanos”, já que também
o Filho e o Pai naquela trindade de Caetanos, baptizado e, em todos os registos,
figurando como António, “Caetano” era
também, se não pelo nome matricial, o
era, no entanto, pela alcunha em que verdadeiramente era reconhecido por todo o
Concelho. Havia, é certo, um pequeno senão, pois que Rapaz não tinha a
envergadura física de seu avô, Manoel Caetano, mas, na verdade, o “feito” do
jovem era de monta a ponto de poder superar, com vantagem, essa ou quaisquer outras
debilidades e ilustrar assim os pergaminhos da família.
Acontece que, meia dúzia de anos atrás, num
tempo outro, que já não tempo da narrativa, mas num tempo outro, mais fecundo,
que determina os passos dos homens e onde se jogam os veios da História,
acontece, sim, acontece, que nesse tempo de longo ciclo, de luz e de sombras, o
negrume desses tempos de escuridão, de atraso, de fome e de medo, era
atravessado, pela persistente luta de milhares de homens e mulheres e por
lampejos de verdadeira heroicidade, que mantinham viva a esperança em melhores
dias.
Assim, o País, de sul a norte, ou norte a sul, conforme o ponto em que
nos observem, fora então atravessado pela candidatura presidencial do General
Humberto Delgado, aqui e agora, nome de aeroporto, como um vendaval esperança que
rasgou clareiras e fecundou os caminhos de libertação da Pátria, na madrugada
redentora de 25 de Abril.
(...) Continua, já, já ...
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