domingo, março 13, 2016

FRAGMENTOS XIII - Rua, Gritou Ela!...


Sabemos, pois, como o Alferes (que ainda não era) ficou a conhecer, por expressiva demonstração prática, que as coisas boas da vida acabam depressa e, por isso, foi com bonomia, que o ainda imberbe oficial aceitou a debandada da praça-forte. O que se passara?

A velha e devota senhora Dona  ....  percebendo que o namoro da sobrinha com o Alferes “pegara fogo”, assumiu-se, em plenitude, como fiel zeladora da virgindade da menina Gertrudes e, aceitando como divina a sua missão na Terra de lhe proporcionar dote digno da sua beleza explosiva, escrevera ao padre de uma aldeia ignorada, algures no norte do País, onde o Alferes viera ao Mundo e, envolto em toalhas de linho preciosamente bordadas, por devotas e imaculadas tias, zeladoras do Santíssimo Sacramento, não podendo ele próprio, bebé de escassos meses, gravar na pedra (ardósia escolar que fosse) seu próprio nome, foi baptizado e seu nome Manuel Caetano outorgado, no exercício de seu múnus sacerdotal, pelo velho e santo padre Manuel, tio de Lia, replicando, na cerimónia mágico-religiosa do baptismo, o nome próprio de seu avô, Manoel Caetano, nome que, sendo uno, são dois e, dois (nomes que sejam), valem mais que um, e, assim, ungido por sagrados óleos e pelo ritual e pela devoção, para o novel infante “iniciado” foram transferidos, em sua dimensão simbólica, o  conjunto dos valores éticos, políticos e intelectuais, inscritos no âmago do nome padroeiro, seu avô e seu padrinho.

Mas vamos à questão que aqui nos trás. Que problema sério ou salvação de alma seria aquela urgência tão premente que determinasse a piedosa senhora, tia da menina Gertrudes, a solicitar favores e perturbar a placidez daquelas longínquas e ignoradas paragens e, mais a mais, a incomodar os deveres religiosos ou as santas leituras do pároco da Freguesia? Requeria assim, a excelsa senhora, tia da “Papa-Alferes”, perante o escaldante namoro de sua sobrinha com o Alferes de Cavalaria, ostentando como local de nascimento aquela Paróquia, que Sua Reverência, lhe concedesse o obséquio de prestar informações sobre o rapaz e sua família, ao mesmo tempo que a missiva desfiava o rol detalhado das intimidades em que os havia surpreendido, ele Alferes que ainda não era, abusador de sua boa-fé e da sua hospitalidade e ela inocente, virgem e recatada, como compete a menina de boas famílias. Enfim, pretendia a distinta senhora conhecer pequenas coisas que uma tia tem a obrigação de saber antes de entregar a sobrinha a um Cavalheiro e Oficial de Cavalaria, prestes a embarcar rumo à Guiné, em defesa da Pátria. Em resumo, pretendia a senhora a pequena coisa de ser informada do montante dos cabedais, terras, influência social, comportamento respeitador de Deus e do próximo, etc., etc... do jovem oficial e cavaleiro e de sua excelentíssima Família.

Em sua sabedoria, Deus, nosso Senhor, que administra, mesmo errando, o justo e o injusto, poupou o saudoso padre Manuel, do desgosto e do opróbrio da resposta, pois como ficou dito, foi por sua mão que o Rapaz recebera o sagrado sacramento do baptismo, mas também a primeira comunhão e o crisma e fora ele, com suas devotas tias a fazerem coro, que o encomendara à Virgem Maria, quando feito com distinção o exame da Quarta Classe, sua família decidiu – sabe-se lá que aventura – a enviar o dócil rapazinho, que ostentava o nome Manuel Caetano, como seu tonitruante avô, para a cidade mais próxima, entregue aos cuidados de parentes afastados, que por ele velaram, durante os sete anos de frequência do Liceu e caíam agora, vindas sabe-se lá de onde, tão agudas e perturbadoras preocupações de uma senhora que não se sabia quem era, mas por certo ofendida, tão negras eram as cores que tingiam o carácter do garboso oficial que, certamente, teriam despachado o santo Padre Manuel para o outro Mundo, não fora a Divina Providência e dedo de Deus, terem-no levado antes, roído de uma ferida ruim, que dia após dia, em resignado sofrimento, lhe roeu a garganta até à morte.

Não existia, pois, pároco na Paróquia, pois que, tendo o Criador levado o Padre Manuel para o seu divino regaço, como acontece a todos os justos, também o jovem e macilento Padre Francisco, nomeado que fora, por decreto bispal e entronizado, com o regozijo dos paroquianos, para lhe suceder, também o novo Pastor havia abandonado à sua sorte o rebanho, para debandar, rumo a África, num final de Verão, depois da homilia dominical, num carro ligeiro, por entre solavancos, poeira e enjoos de Lia, grávida de alguns meses, que levava em seu ventre, como única bagagem,  o fruto sagrado de seus amores pecaminosos. (E de tua solidão, Lia...)

Desta sorte, preparava-se o carteiro para devolver a missiva, quando alguém lembrou o Padre Casimiro, residente numa aldeia vizinha, que sendo padre, não tinha, nem nunca tivera, nem paróquia, nem missa certa, pois que a obrigatória missa diária da sua condição de clérigo, ele a celebrava quando muito bem lhe apetecia, para criados e serviçais na capela do seu palacete oitocentista, um pouco decadente, é verdade, mas ainda de pé e, assim, mais que clérigo, se considerava o Padre Casimiro como Lavrador, não um lavrador ou padre quaisquer, mas lavrador abastado de terras e cabedais e padre, mais dado a prazeres da carne, que às penitências da santidade, e que, em casos extremos, fossem tais casos ditados por amizade, ou ditados por piedade, se via constrangido a oficiar uma ou outra cerimónia religiosa, designadamente, na aldeia da naturalidade do Alferes, onde mantinha vastas terras e amizades sólidas. Assim, por destino ou capricho da sorte, ou da Divina Providência, a missiva da augusta senhora, tia da menina Gertrudes, a consagrada “Papa-Alferes”, que tanto alvoroço causara na pacata povoação, foi parar às abençoadas mãos do Padre Casimiro, amigo do peito que fora de Manoel Caetano, viúvo e, entretanto falecido do avô do Rapaz, agora Alferes de Cavalaria, companheiros dilectos ambos, Padre Casimiro e Manoel Caetano, de farras e noitadas e, ombro com ombro, ambos fortes e rijos, de não raras zaragatas de varrer a feira, quando razão surgia e o calor do álcool apertava. Aliás, vezes sem conta, depois da morte de seu avô, Manoel Caetano, que Deus ou o Diabo, ou talvez os dois, Deus e o Diabo, o houveram levado cedo, o Rapaz ouvira da boca do padre Casimiro, lá do alto de seu feroz republicanismo, a roçar o “reviralho”, de cada vez a façanha contada, a acrescentar um pormenor e esquecendo outros, pois que a memória não é sempre a mesma e os factos variam, conforme o registo que deles temos, sem se saber, porventura, muito bem se os factos são realidade ou ficção, mas dizíamos que, vezes sem conta o Rapaz ouvira da boca do Padre Casimiro a heróica façanha dele, Casimiro Augusto Cordeiro Vasconcellos Mendes e de seu amigo, Manoel Caetano Cleto Alves da Veiga, eram eles jovens e feros, por ocasião das incursões monárquicas do Paiva Couceiro, terem apenas os dois, à força de bordoada, corrido com a secção de monárquicos aboletados na vila e restituídos os símbolos da República à sede da Administração do Concelho.

Ora, como se não bastassem os inquebrantáveis vínculos entre as duas famílias, forjados, ao longo de anos, na apascentação dos interesses comuns de domínio social, naquele microcosmo fechado, estruturado numa rede de dependências mútuas, como se não bastassem, então, tais vínculos de sólida amizade entre as duas famílias, verificava-se ainda um pequeno must, um quase-nada, que aos olhos do bom Padre Casimiro transportava o Rapaz para a galeria das celebridades e que lhe permitia, a ele, Padre Casimiro, dizer, com expressiva convicção, que estava garantida a “velha estirpe” dos “Caetanos”, já que também o Filho e o Pai naquela trindade de Caetanos, baptizado e, em todos os registos, figurando como António, “Caetano” era também, se não pelo nome matricial, o era, no entanto, pela alcunha em que verdadeiramente era reconhecido por todo o Concelho. Havia, é certo, um pequeno senão, pois que Rapaz não tinha a envergadura física de seu avô, Manoel Caetano, mas, na verdade, o “feito” do jovem era de monta a ponto de poder superar, com vantagem, essa ou quaisquer outras debilidades e ilustrar assim os pergaminhos da família.

Acontece que, meia dúzia de anos atrás, num tempo outro, que já não tempo da narrativa, mas num tempo outro, mais fecundo, que determina os passos dos homens e onde se jogam os veios da História, acontece, sim, acontece, que nesse tempo de longo ciclo, de luz e de sombras, o negrume desses tempos de escuridão, de atraso, de fome e de medo, era atravessado, pela persistente luta de milhares de homens e mulheres e por lampejos de verdadeira heroicidade, que mantinham viva a esperança em melhores dias.

Assim, o País, de sul a norte, ou norte a sul, conforme o ponto em que nos observem, fora então atravessado pela candidatura presidencial do General Humberto Delgado, aqui e agora, nome de aeroporto, como um vendaval esperança que rasgou clareiras e fecundou os caminhos de libertação da Pátria, na madrugada redentora de 25 de Abril.

(...) Continua, já, já ...


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