Há
alguns anos a esta parte, surgiram em Lisboa, em algumas estações do
Metropolitano espaços de venda, onde os livros se derramam numa espécie de
bric-à-brac horizontal, como se um capricho invisível tivesse apeado a
imponência majestosa das velhas livrarias e a Biblioteca de Babel fosse, já não
a infinita cornucópia labiríntica de que fala Borges, mas antes a rasoira
implacável do deus-consumo, que tudo expele e degrada. Até os livros...
No
entanto, nesses espaços de reciclagem, por entre restos e lixo editorial,
descobre-se, por vezes, uma pérola ou outra, que como caçador de tesoiros me
gratifica e conforta, breves que sejam os momentos...
Na
sequência de uma dessas incursões colhi um singelo apontamento do quotidiano,
que passo a narrar, um quase-nada, um pequeno detalhe tão denso de significado
que, como breve centelha de esperança, ilumina a vida e preserva intacto o
futuro. Pelo menos perante meus olhos, nunca cansados de deslumbramento e de
surpresa...
Ora
vejam...
Foi
uma tarde de Domingo, pelas 16 horas da tarde. O centro comercial regurgitava.
Massas humanas atropelavam-se numa moleza de autómatos, nas escadas rolantes e
nos espaçosos corredores, espreitando as vitrinas e mastigando a angústia e o
vazio. Crianças pela mão, exigentes nas solicitações, que as coloridas
promessas, ali à mão, se ofereciam nas lojas e no esplendor dos enfeites...
E os pais, sabe-se lá qual com que mágoa: “Não pode ser, não pode ser...” –
puxando pelas crianças lacrimosas, num gesto de impaciência mal contida...
Rumei,
pois, nas minhas deambulações. E, em breves instantes, deparei-me com um desses
espaços de venda de livros, onde entrei, não sei bem se para aplacar a angústia
da tarde, se arrastado pelo hábito. Tive sorte. Dos escombros em saldo, por
entre publicações de erotismo de pacotilha e outras esotéricas com promessas de
felicidade futura, veio parar-me às mãos o volume que me faltava da obra de um
dos grandes vultos da cultura europeia do século XX.
Dei
o dinheiro (cinco euros) por bem empregue. E, saboreando a minha descoberta,
dirigi-me a caixa. À minha frente, na fila de pagamento, o momentâneo prodígio.
Um jovem, com menos de trinta anos, manifestamente de formação académica
superior, de ténis gastos e roupa poluída mas de bom gosto, rosto marcado e
expressivo, olhar firme e magoado surgiu, perante no meu espírito inquiridor,
como um digno exemplo da geração dos € 500 euros, não sei se no desemprego, se
aguardando a oportunidade de emigrar.
Insisti
em olhar, o que manifestamente o incomodou. Mas então a minha curiosidade já se
deslocara. O centro agora era a doçura de criança de três ou quatro anos, loira
e encaracolada, que segurava pela mão. Falava pelos cotovelos a rapariguinha. E
perante o meu mal contido desvelo, a menina estendeu-me um dos livros infantis
do monte, que segurava com dificuldade: “O papá compra!...” - esclareceu-me em
seu linguajar...
Vinte
euros! - anotei no registo da máquina. O preço da felicidade de um pai jovem e
desempregado. E de uma filhinha linda...
“Só
pela sede se aprende a água...” – balbuciei intimamente, apaziguado e comovido.
Manuel
Veiga
10 comentários:
E assim se aprende vida. Vida de lágrimas e sonhos feita.
A esperança que se esvai, o sonho num crescendo.
Abraço.
e deixou-me a mim com os olhos a lacrimejar
beijo
:(
Tocante. Pela palavra se entende o gesto.
Abraço meu irmão.
Um texto belíssimo e comovente na sua imensa humanidade...
Uma narrativa envolvente com a trilha sábia: "Pela sede
se aprende a água...". Toda leitura começa na infância
como a construir um hábito a inscrever a cultura e a
consciência. Com a sua generosa consciência contribuiu
para esta criancinha o seu percurso com a maravilha
do portal da leitura!...
Apreciei muito, amigo!!
Bj.
E fica-se com um nó na garganta...
As filas das caixas para pagamento são verdadeiras fontes de inspiração e de vida real. Um relato tocante.
Aí está, caro Manoel, uma bela crônica a sua,
escrita com maestria.
O tema também é muito bom
Parabéns.
Um abraço.
Pedro.
Identifico-me com o teu modo narrativo, não querendo com isto dizer que me aproximo da tua excelência. Penso que (me) entendes.
E, com exemplos destes, o livro não morrerá...
Bjo, Manuel :)
Comovida, te abraço.
Ah! E amo blues....
Que belo texto, diria, uma crônica do cotidiano: Pela sede se aprende a água...
E tudo se encaixa nesse título. E assim também fui guiada pelo meu pai, tínhamos nosso dia para irmos às livrarias onde o incentivo era certo, o gosto pela leitura e escrita, colocando sentimentos vários. Seu texto sensibiliza, meu amigo, pois trouxe-me recordações muito caras. Texto rico em detalhes.
Aqui nos Shoppings, criancinhas e Feiras de Livros, criancinhas guiadas por mãos sábias e mostrando interesse também emociona num mundo que se tornou fútil demais.
Beijo, amigo.
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