Vai abrir-se a “a caixa de Pandora” e soltarem-se as
maldições. Não será espectáculo recomendável – talvez seja preferível, Maria
Adelaide, ficares afastada uns tempos. Ou talvez não. Porventura possas, talvez,
aparecer, mais tarde, trasvestida de senhora de impoluta conduta, temente a
Deus amante dos pobrezinhos, qual dedicada activista do Movimento Nacional
Feminino e de sua corte de “madrinhas de guerra”. Quem o poderá jurar, se o
autor não existe?
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Então, nessa
manhã madrugadora, quando os homens e os bichos eram apenas o perfil recortado
das coisas físicas, contraponto entre o dia, ainda placenta, e a noite, que deslassava,
antes mesmo de o Sargento-dia ter ordenado o toque de clarim “em alvorada”, dulcificava o Alferes o
olhar e a alma na polissémica fusão da paisagem com as emoções em que se
desprendia e eis que vislumbra, em recorte de contraluz, o soldado “Assobio” que, como se sabe, já não “apoucalhado” recruta, provindo das
desolados cumes da Serra da Gardunha e de seus ermitérios de solidão, mas agora
arvorado em “impedido” da messe dos
oficiais, com reluzentes dragonas e casaca branca, acompanhado pelo “cabo da cifra”, militar interprete e
depositário de todos os códigos e cifras de comunicação com o Comando da
Companhia e com o resto do Mundo também, pois que o centro do mundo a Tabanca
era, códigos e cifras secretos, conforme os regulamentos e normas, que mais não
eram do que o estreito caminho entre segredo e a coscuvilhice.
Naquela inusitada
aparição, saída do bojo das improbabilidades, pois que a vida no quartel era
toda ela “ordenada” por toque de cornetim, ou voz de comando, fora da qual o tempo
era simples passagem do tempo, a menos que algum acontecimento extraordinário viesse
a perturbar o oscilar monótono do tempo real. Naquela aparição matinal, por tão
improvável, agitou-se o Alferes que foi repassado por brevíssimo
estremecimento, qual sismógrafo, que, premonitoriamente, advinha e antecipa o começo
da derrocada e o fim dos dias faustos. Que faziam ali o soldado Assobio e, sobretudo, o “cabo da cifra”, quando o quartel ainda mal
se espreguiçava e Tabanca era bocejo matinal? Assim, por momentos, o Alferes agourou
o pior e o coração bateu várias vezes, cada vez mais acelerado, até ganhar
serenidade, saltitando a sua ansiedade entre a morte ou doença de familiares ou
amigos próximos, pois que, como como cada um sabe segundo a sua própria experiência,
as boas notícias chegam sempre mais ronceiras e pelos meios mais morosos,
enquanto as más notícias percorrem atalhos e trilhos escusos para mais depressa
causarem o dano de que são infectadas, balançava pois o Alferes entre o mal e o
bem, sendo que o bem se pode sempre mudar em mal, como seja, no caso, a possibilidade
de algum desastre militar, sabe-se lá de que tamanho e com que perdas, pois bem
se sabe que, para quem ocupa chão que não o seu, ou busca colher, sem
consentimento, de mulher alheia, por exemplo, a flor de seus caprichos, ou seja
o lá o que for que abusivamente se pretenda, melhor é estar preparado para o
efeito boomerang e para suas funestas consequências, de sorte que o Alferes
para aliviar a sua própria tensão sacudiu seus prenúncios e exorcizou o negrume
de seus pensamentos e, decidido, antecipando desígnios e lances da sorte, foi
ao encontro dos dois militares, certamente, naquela matutina hora, mensageiros infaustos,
já que apenas urgência grave justificaria o zelo e a diligência de que vinham
animados.
Dispensando o
Alferes continências e outras formalidades militares, arrancou o papel das mãos
do “cabo da cifra” e, com ligeiro
aceno, afastou o brioso soldado “Assobio”, apoucalhado
que fora e agora arvorado em garboso impedido da messe de oficiais, como ficou
dito, por ordem serviço lida em parada, com todo o arsenal de deveres e
direitos devidos à sua condição e, naquilo que a sua função se refere, o poder/dever
de frequentar os aposentos dos oficiais da Companhia, designadamente, os
quartos de dormir. E para isso viera o soldado Assobio, isto é, para fazer imediata entrega do pequeno papel
amarelado, que encerrava o destino da guarnição da Tabanca e que, ao abrir-se
nos dedos decididos do Alferes, abriria também, sem apelo ou agravo, as
inquietas certezas, faustas ou infaustas, de que o apoucalhado, ora soldado Assobio, era portador e agente e que ele, militar
brioso, embora apoucalhado, levaria “sua carta a Garcia”, ainda que o Alferes
dormisse “blindado” pelos braços de Dona Rosalinda, em cama larga, nos
aposentos mais amplos da vivenda, com rasgadas janelas, resguardadas da invasão
de mosquitos e outra bicharada por espessa e fina rede de metal, pois bem se
sabia em toda a guarnição militar da Tabanca e, do que sabido era, se dizia à
boca pequena que Dona Rosalinda sofria de afrontamentos e que para acalmar seus
suores e ânsias nocturnas que lhe subiam das coxas, em ondas de calores húmidos,
durante a noite, se metia na cama do Alferes, - “és tão bonito, meu filho” - e, maternal, se desfazia em blandícias
e carícias que o Alferes, quedo e mudo, aguentava até ao espasmo final e ali
ficava então de olhos abertos, como estranho, suportando o peso das carnes flácidas,
ou um novo assalto, até que de novo adormecia e Dona Rosalinda retomava seu
leito, no outro lado da vivenda, pé ante pé, para não acordar o seu menino.
Mas naquela
noite, não. O Alferes acordara cedo. Lera até tarde “Les Danné de la Terre”, do argelino Franz Fanon que, numa quase clandestinidade,
corria de mão em mão, pelos oficiais e sargentos do Batalhão de Cavalaria e o
que lera lhe ficara a bailar no cérebro como revelação, a doer como lâmina surda,
a acicatar a impúbere consciência cívica e colhia, então, o Alferes, naquela
hora indecisa, daquela manhã polissémica, o conflito íntimo e a contradição “sistémica” entre fechar os olhos ante o
que à sua volta se passava e percebia e sentia na pele, com conhecimento agudo
e profundo da natureza exploradora do sistema colonial e de uma guerra que, além
de injusta, não se almejava o fim, e o propósito, até então assumido, de levar
as coisas da melhor maneira, sem fazer ondas, contar os dias até a “peluda” chegar e regressar então, são e
salvo, à família, aos amigos, à Universidade e às esperanças legítimas de uma
carreira na Magistratura e, do outro lado da equação, o salto no escuro que
representaria a neófita decisão de desertar e colocar-se à disposição da guerrilha,
ainda a germinar e que, por inesperada, o perturbava, numa angústia sufocante,
qual poderosa tempestade para resguardo da qual não colhia abrigo. Assim fora o
abalo interior que a leitura da noite lhe provocara, bem sabendo o Alferes que
há momentos assim únicos, em que se joga tudo ou nada, e nesse rasgo, se revela
a integridade e o carácter que define a grandeza dos homens. Mas também sabia o
Alferes o caudal de certezas que o prendiam, as milhentas razões que o embaraçavam,
o sacrilégio que seria ceifar esperanças, não dele, que, por ele, cedo aprendera
a “diferenciar o nada de coisa nenhuma”, quer
dizer, cedo aprendera a efemeridade coisas e o valor delas e a relativa importância
do lugar social donde falamos, em todo caso esperanças que, laços de sangue,
eram aguilhão a empurrar a sua vida e a forçar o destino.
Ainda se houvera
ali, atormenta-se mentalmente o Alferes, a presença de alguém em que pudesse
depositar, não a inóspita decisão que bem sabia ser sua, mas ao menos o pudesse
apaziguar a sua angústia, mas quem? Dona Rosalinda? Nem pensar, nunca lhe
perdoaria a “traição” de passar-se para os pretos. E, no entanto, o nome
Rosalinda teimava em vir à tona, martelava-lhe o cérebro e ocupava toda a
largura mental de sua momentânea inquirição – “vai, meu filho, vai falar com o senhor Gomes, ele é homem do mundo,
saberá escutar-te” – assim o Alferes, em sua fantasmagoria, lhe parecera escutar
o murmúrio sussurrante da excelsa senhora e, nessa “iluminação”, se decidira,
iria sim falar com o “senhor Gomes”, degredado da heróica e frustrada Revolta
dos Marinheiros de 1936, primeiro branco daquelas paragens que, na palavra sábia
de Dona Rosalinda, os pretos respeitam e
os brancos escutam ou escutavam, antes desta maldita guerra chegar, não
para lhe pedir conselho, ou falar sobre si e o seu agudo conflito, mas dele e
de sua experiência de África, influência que se estendia pelo Senegal até aos
territórios, a norte, de Cassamansa, levada pelas trocas de panos e pelo marfim
e outras mercadorias que vasta trupe de “Xilas”, que com ele, português das “sete
partidas, comercializava, por certo dele colheria palavra, ensinamento ou “leitura”
esclarecida dos presentes acontecimentos de guerra, que certamente o ajudariam
na tomada de decisão firme sobre seus propósitos. Em suma, buscava o Alferes,
ainda sem o saber, a alavanca das decisões sábias, alicerçadas no impulso da “razão
teórica” e na fecundidade da “razão prática”, filosofia que, ao longo da vida,
iria absorver, aprofundar e praticar com a naturalidade do ar que se respira.
E neste balanço íntimo,
nesse fervor de emoções contraditórias, que o empurraram fora da cama, nessa
manhã madrugadora, no contraponto entre o dia, ainda placenta, e a noite, que
deslassava, antes mesmo de o Sargento-dia ter ordenado o toque de clarim “em
alvorada”, assim o Alferes foi ao encontro dos dois militares, o soldado
Assobio, que “apoucalhado fora” e o “cabo da cifra”, à vista dos quais seus
pensamentos se deslocaram para outras direcções e à incógnita das suas decisões
imediatas somou presságios e inquietações que, desde que o mundo é mundo, os
mensageiros são portadores e hão-de levar ao seu destino, ainda que por vezes, em
tempos rudes da História, tivesse de pagar
com a mão decepada, quando não mesmo a cabeça. Mas, apesar da crueldade dos
tempos, disso estava livre o apoucalhado
mensageiro , apenas objecto da brusquidão do Alferes, que, em sua ansiedade,
arrebatou, sem condescendência, o descorado papel das mãos do soldado e abriu, num ímpeto: as notícias nuas e curtas – o capitão Mascarenhas chegaria nesse mesmo
dia, com a escolta de dois grupos de combate. E todos os civis seriam imediatamente
evacuados, regresso à sede do Batalhão de Cavalaria, escoltados no regresso por
um dos grupos de combate, ora em trânsito. Essas eram as ordens. Havia que
cumpri-las.
Veremos como um
simples papel pardacento e meia dúzia de sinais (de) cifrados podem mudar o
curso da vida e o rumo dos acontecimentos.
Manuel Veiga
12 comentários:
“Les Danné de la Terre” correu de mão em mão, na "Universidade Livre do Real Reino da Roça", junto a Maquela.
Somos os livros que lemos...
Votos de um excelente 2017.
Das letras ser farão novos desafios.
Uma narrativa com a inscrição da tua competência de trazer
o leitor para o cenário na vivência de um laboratório
emocional, acionando a fragilidade humana diante do
absurdo que deve ser uma guerra (para que?...):
"Então, nessa manhã madrugadora, quando os homens e os
bichos eram apenas perfil recortado das coisas físicas,
contraponto entre o dia, ainda placenta"
Grata pela leitura ímpar da tua literatura.
Deixo os meus votos de 2017 harmonioso, pacífico
e pleno de realizações para ti e extensivos
a tua família, amigo Manuel!
também somos aquilo que vivemos...
e muito mais quando os sentidos eram condicionados à preservação da própria vida.
Foram tempos difíceis e dessas memórias inigualáveis, dá-nos o autor a riqueza duma crónica, como se tivesse sido ontém: viva e rica.
A guerra na Guiné foi bem mais perigosa do que nos outros dois teatros [teatros (?),- termo militar que nunca compreendi o termo, quala peça em cena e quem a escreveu..ahah], Angola, e Moçambique.
Mas os actores fomos nós...e nem palmas tivemos, quando na boca da cena, o pano caiu...
Boa memória e bela escrita, Amigo Veiga,
Um Forte Abraço.
Estas peças que MV vem publicando ao som do tiquetaque pendular revelam um tempo que urge guardar na memória.
A força que tem (tinha) uma ordem dada, cifrada, descifrada! Assim se fez e desfez o império do improviso. Os jovens iam e vinham nas caravelas sem rumo e pelo meio os alienados sem tino desapossados da vontade entregavam-se ao destino entre o ebúrneo medo e a indígena grafite.
Abraço.
para viver e para contar, também servem as guerras. mas também em outras coisas elas nos mudam e mudam o mundo. ah que como seriam boas guerras sem violência e sem razão!
Um abraço ainda a remoer a bela prosa - ou será poesia?
Sou transportada numa escrita com o seu quê de bélico, de poético, de reflexivo. É uma forma de trazer luz sobre uma época em que todos sofremos. Luz que agradeço. É que cada olhar traz uma nova dimensão, um aporte emocional que nunca se apagará.
Que o novo ano traga o que o teu coração deseja.
Grande abraço.
Caro Manuel, gostei do seu FRAGMENTOS XXXIX. Um belo texto. Parabéns.
Desejo ao amigo um ótimo ano de 2017.
Grande abraço.
Pedro.
Textos, postagens ótimas como as suas é sempre bom ficar atenta, Manuel.
Também achei o vídeo de Joe Cocker fantástico!
Estamos quase na contagem regressiva para 2017, que se vá 2016. Feliz Ano Novo, meu amigo!
Beijos.
De vez em quando pergunto-me: quantos fragmentos vou ter de esperar para me atrever a comentar?
Um grande abraço para um grande escritor.
A tua narrativa é plena de densidade; as personagens, os locais, os acontecimentos pulsam através do impulso da tua riquíssima expressão literária. Estes relatos são extremamente relevantes por tudo o que os enforma, mas, sem as tuas idiossincrasias, não teriam o impacto que têm, pois não são meros memoriais.
Bjo, com respeito e admiração, Manuel
Um magnifico texto, Manuel, em que a sua brilhante escrita, nos faz visualizar na perfeição, todo o cenário e contexto, em que decorre a acção...
Dando a sensação de que de leitores... passamos a assistentes, por sentirmos estar integrados no contexto, em que se passa a acção...
Gostei imenso! Beijinho
Ana
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