(...)
Assim concluía o
Alferes, sem que para tal fosse intimado, num tempo outro, ainda na flor dos
dias, quando, balançando-se entre o voluntarismo romântico da deserção e a
palavra venerada do “senhor Gomes”, o velho marinheiro, revolucionário e
desterrado, “meteu na ordem” as suas verduras revolucionárias e lhe esfriou as
veleidades de deserção e a empolgada ambição de se colocar no lugar certo da
História, ao serviço da guerrilha.
FRAGMENTOS XLVII
Pois
é, Maria Adelaide, na acção dos homens, é muito curta a distância que separa a
coragem da cobardia, a glória do vitupério, a celebridade do ostracismo, o amor
do desamor, ou a vida da morte e muito estreita também a linha que separa os “deveres”
que vinculam e os“ direitos”, que libertam e cada um colhe ou paga de tributo à
sociedade, bem se sabendo que bastas vezes uma ligeira oscilação, um capricho
cerzido sabe-se lá em que acaso, ou dimensão, para que, na consciência do
homens, a “realidade”, seja lá isso o que for, fique de “pernas para o ar” e o
que ontem era tido como verdade hoje não passe de harpejo de dúvida quando não
mesmo reverso de graníticas certezas que nos aguentam inteiros e de pé. Por
vezes uma aragem, uma leve agitação das asas de uma colorida borboleta é
suficiente para que, no outro lado da
Terra, se houver condições para tanto, pois também as coisas e os
acontecimentos são eles e as suas circunstâncias, se desencadear violenta
tempestade, como hoje em dia, no tempo real desta descosida narrativa, bem se
sabe, face ao reino pletórico da física quântica e seus extraordinários efeitos
e feitos, que aceleram o tempo e nos lançam em permanente regurgitar de “acontecimentos”
que nos submergem e, onde tantas vezes, naufragamos, mergulhados na espuma dos
dias.
Calo-te
o gesto e a palavra, Maria Adelaide, pois que, depois de me zurzires com o
epiteto de neo-realista serôdio, pretendo evitar-te a tentação fácil de vires
agora acusar-me de devoto da “post modernidade” e de um certo “relativismo
moral” em que todas as ideias e valores morais se equivalem, de tal forma que
nada justificará que neles nos detenhamos mais que a breve avaliação do prazer
que nos proporcionam, e nos lancemos assim, sem norte, a celebrar um
“hedonismo” de pacotilha para consumo imediato, pronto a usar e a descartar. A
verdade, porém, é que, Maria Adelaide, tanto na literatura, aquela que é de
facto literatura e não enjeita a “responsabilidade”, palavra malquista, como na
vida, existem veios profundos e seres fecundos que, se não determinam eles o
tempo longo da narrativa literária ou o “devir” da história, lhe conferem,
porém, o rosto e a inteligibilidade, uma espécie de esteio ou pedra angular que
dão sentido à narrativa ou à expressão da vida, bem se sabendo que não é a
singularidade das coisas que transforma, mas a raiz delas e a seiva de que se
alimentam ou a matriz em que se inscrevem. Captar, pois, a dialéctica das
coisas perante o meio em que se inscrevem ou a actuação dos homens em sociedade
é ler os sinais da sua evolução e naquilo em que os homens se distinguem das
coisas, também os sinais da sua emancipação, enquanto ser social, o mesmo será
dizer, a consciência de si próprio e do mundo que os rodeia.
Não
julgues pois o Alferes, Maria Adelaide, e a sua aparente pusilanimidade, face
ao seu desígnio e empolgada ambição de se colocar no lugar certo da História,
ao serviço da guerrilha, pois que, no processo de maturação das ideias, o auto
conhecimento das limitações e contradições dos homens e a sua vontade de superação
constituem a pedra de toque por onde se afere o carácter e a personalidade de
cada um. Compreenderás, assim, por certo, quão fecunda terá sido, apesar de
breve, a conversa do Alferes com o velho revolucionário, Senhor Gomes,
marinheiro e desterrado, que, nos idos anos de 1936, provou o fogo dos deuses e
perdeu e pagou, com seu corpo, nas prisões fascistas e, depois, com o degredo
naquele “cú de Judas” que é a Tabanca, ele cujo crime foi a ousadia de, com
outros camaradas de armas e ideais, pretender antecipar o tempo longo da
História no sonho de uma Pátria livre e justa e, por ela se bater e perder,
fazendo da Tabanca a sua Pátria, que outra não reconhecia, madrasta de seu Povo
e fazedora de guerras contra os povos das colónias que oprimia.
Quem,
pois, o insensato que insistiria em suas “verduras” revolucionárias e no “infantilismo
voluntarista”, depois de conhecer a opinião autorizada do Senhor Gomes, forjada
no terreno concreto da rebelião política e nos longos anos de degredo, em que
pela firmeza de carácter e consistência de suas ideias, soube granjear o
respeito de brancos e negros, e sua voz autorizada e sábia era procurada e seguida,
quem porventura tão néscio que sobrepusesse, à razão e à sabedoria, os
insipientes e imaturos passos de uma aventura inconsequente, que leituras apressadas
e uma mente imaginativa e exacerbada alimentavam? Não por certo o Alferes, que bebera,
com o leite materno, a veneração pelos velhos que, na falta de outras
capacidades, sempre distribuíam bênçãos e bons conselhos.
“A Revolução aqui em África é deles e tu
se amas a Revolução terás tua oportunidade em Portugal” e a frase, assim dita, com olhar cortante do velho
revolucionário a atravessar-lhe a alma, ficou gravada como consigna ao longo da
vida do Alferes, jovem oficial miliciano do Exército Português, Adjunto do
Comandante da Companhia por acaso de graduação militar e estudante de Direito
em Coimbra por passada larga de seus pais, ”aprendendo, aprendendo, sempre” com
os livros e as lições de vida, dele e dos outros e, assim, ficando a saber que
há “um tempo para semear e um tempo para colher” e que a História dos homens, em seu perpétuo
rumor, não é uma linha recta, mas nada trava o seu turbulento fluir.
Sei
de teu enfado, Maria Adelaide, bem sabendo eu qual o universo que te motiva e
as razões pelas quais pacientemente me escutas. Nesta luta corpo a corpo em que
esta narrativa (sem sujeito) se despenha existem umas “velhas contas”, apenas
nossas, a ajustar e tu espreitas o momento. Que chegará, Maria Adelaide, maduro
que esteja o tempo desta escrita circular, em que tu és o “alfa e o ómega” e a
pedra angular que a sustenta.
Mas, entretanto, regressemos à Tabanca. Temos um
General à espera. E não é de bom-tom fazer esperar um General, tens razão!
Manuel
Veiga
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