O contingente
militar da Companhia de Cavalaria, seguindo a ordem de antiguidade, deveriam
ser o primeiro a embarcar, quer dizer, seria o primeiro, com o pé no barco, a
lançar ao rio Geba os anos, meses e dias contados ao segundo, que assim eram os
dias contados, canga de um tempo gasto na inutilidade da guerra e na dor das vidas
ceifadas, tantas vezes estropiadas, mortos-vivos a arrastar o opróbrio na
inutilidade e na miséria, pois bem se sabe que dinheiro algum vale um homem
inteiro e, em País pobre, pensões de guerra são rateio de orçamento, que outras
urgentes premências mais urgentes se contam que pernas perdidas, ou braços, ou
olhos, ou testículos, arrancados na explosão das minas, homens e armas atirados
ao ar, no rebentamento, cabriolas circenses numa fantasmagoria dantesca e os
destroços, como esgar burlesco do Destino, caídos no solo, ensanguentados,
estropiados, vísceras à mostra, tantas vezes.
O capitão
Mascarenhas, neste lance de tropas rumo à peluda, teimava e na sua teima ia
adiando o embarque da Companhia, pressionado embora pelas ordens superiores,
pela ansiedade dos militares e pela urgência das marés, pois bem se sabe que no
ciclo das enchentes e das vazantes, o Uíge apenas em maré alta poderia
descolar, atascado que estava, ao largo, no fundo lamacento do porto de Bissau e
qualquer atraso, no sincronismo das operações de embarque, representava um
atraso de vinte e quatro horas, até que o ciclo dos Oceanos e da Lua se
cumprisse e de novo retomasse a fase da enchente.
Teimava, pois, o
capitão Mascarenhas que Oficial de Cavalaria não deixa seus homens para trás,
sejam eles mutilados ou doentes, ou mortos, seja a morte matada por balas
inimigas, ou seja a morte acontecida em acidente de viação no cumprimento de pacíficas
e rotineiras diligências de serviço, assim o exigia o exercício de comando
militar, a sua honra e a “panache” de
cavaleiro, pois que assim fora educado e era seu timbre e não seria nenhum dos filhos da puta do Estado-maior,
que passam a vida a coçar os tomates agarrados à secretária que iria impedir
que “a sua Companhia” regressasse à Metrópole, se não intacta, pelo menos completa
e o Alferes Valentim, ainda que morto, haveria de regressar incorporado no
contingente militar, sob seu comando, nem que para tanto tivesse que enfrentar
todas as burocracias e todas as borrascas do Estado-maior e dos Altos Comandos
Militares da Guiné.
Assim o dizia e
jurava e agia em conformidade o capitão Mascarenhas, correndo de Repartição em
Repartição, de Gabinete em Gabinete em Gabinete do Estado-maior, ou do Comando
Territorial, ou da puta que os pariu a todos, qual Cristo em Via Sacra,
de Herodes para Pilatos e de Pilatos para Herodes, nessa sua teima, ou ponto de
honra ou desafio que a si próprio se impusera, quer lá saber o capitão
Mascarenhas dos Serviços de Justiça que pretendem instrução de um processo de
inquérito às circunstâncias do acidente,
que vitimou o Valentim, como se o “auto
de noticia” não desse conta de todos os elementos necessários à compreensão
do acidente, avalizado, aliás, tal auto
com assinatura de um capitão de Cavalaria, condecorado com “Cruz de Guerra” por feitos em combate e
que, em verdade, tais feitos não passavam de fanfarronada e verduras de Alferes
durante a invasão de Goa, Damão e Diu ao oferecer o corpo às balas, quer dizer,
o seu pelotão homens e sua esquadra de enferrujadas “Panhards” ao avanço do poderoso Exército indiano.
Não, não, com ele, Capitão Mascarenhas, não seria
essa cáfila de imbecis, que outra coisa não fazem que não seja pavonearem-se em
briefings e outras merdas sem interesse algum para o desenrolar das Operações quem
iria obriga-lo a deixar ficar trás, abandonado, o corpo de um oficial sob seu
comando ele, capitão de Cavalaria, ou não se chamasse ele Fernando José de
Albuquerque Ávila e Mascarenhas, oitavo Visconde de Barro Seco, oriundo de uma Família,
cujos pergaminhos, ao longo dos séculos, se confundem com a história pátria e
que, ainda em tempos recentes, deu dois generais ao Exército Português e à Arma
de Cavalaria e vários ministros ao regime do Estado Novo, fazendo-se,
presentemente, sua Família representar entre os dirigentes da União Nacional e
nas altas esferas do Regime. Não!... Com ele, não!... Nem que, para tanto,
tivesse que revolver o Céu e a Terra e tal feito fosse último gesto ao serviço
do Exército Português!...
O Comandante do
Batalhão de Cavalaria, Coronel “cuequinhas
de renda” como era conhecido na caserna, na parada e na messe e até mesmo,
por entre sorrisos e cochichos, nos corredores do Estado-maior, sempre
diplomático e diligente a evitar conflitos e situações críticas, que na sua imprevisibilidade
possam lançar algum desalinhado grão de areia na vaselina com que se oleiam percursos
da promoção a brigadeiro e ao almejado topo do generalato, torcia o nariz à
teimosia do Capitão e procurava
chamá-lo à razão, entalado que estava o coronel entre o dever militar de meter
na linha o capitão recalcitrante ou ter que afrontar o poder político e o
prestígio da família Mascarenhas que,
dentro do regime, fazia e desfazia ministros, e generais e, se fosse o caso,
comeria “coronéis cuequinhas de renda”
ao pequeno-almoço. Assim, o Coronel, Comandante de Batalhão de Cavalaria,
crismado, urbe et orbe, como Coronel cuequinhas de renda, no cálculo dos
prós e dos contra, quer dizer, entre o rigor dos regulamentos militares que o
obrigavam e os eventuais favores futuros da Família Mascarenhas que o seduziam,
o coronel optou pela moderação e
jogou na bolsa de seus interesses, pois
mais que agarrar oportunidades, é necessário merecê-las e, assim, o “nariz
torcido” do coronel cedo evoluiu para a amistosa palmada nas costas do Capitão
Mascarenhas, num óbvio sinal de consentimento e apoio ao seu desígnio de não deixar para trás, abandonado, o corpo de um
oficial sob seu comando.
A Companhia de
Cavalaria que, em ordem de antiguidade e seguindo o roteiro e o sincronismo das
operações e a urgência das marés, deveria estar de armas e bagagens, que é como
quem diz com as mochilas e as armas ensarilhadas depositadas no bojo do paquete
Uíge, mantinha-se, porém, em terra, à beira de um ataque de nervos, assistindo,
contrariada e injustiçada ao embarque dos seus camaradas do Batalhão, risonhos
e felizes no tão ansiado regresso ao Futuro, quer dizer, ao regresso das suas
vidas, depois do “buraco negro” que foram os dois anos de guerra. Ao Alferes,
herói a contragosto desta narrativa que Maria Adelaide, Licenciada em Literatura
e Línguas Modernas, insiste em considerar qual beco sem saída, chegavam, entretanto, sinais de mal-estar e mesmo
queixas explícitas por parte daqueles militares mais afoitos ou daqueles que
com o Alferes tinham maiores laços de proximidade, fazendo-lhes sentir que, por
muito respeito que um morto mereça e a morte inesperada do Valentim a todos
chocara, um homem morto não pode condicionar
a vida de cento e tal, e tão forte vinha o apelo das “bases”, que subira
aos sargentos e aos próprios alferes milicianos, com o médico “Cartuchadas”, num argumento de força,
dirigindo-se ao Alferes, herói a contragosto desta narrativa e Adjunto do
Comandante de Companhia, por acaso de graduação militar que se não falas tu ao capitão e não o convences desta asneirada eu próprio
me encarrego disso, pois a amizade pelo Valentim está deixar-te mais cego que o
capitão na sua teima. E, neste entretempo, chega o cabo de cifra “Bonanza”, acompanhado do inevitável soldado Apoucalhado e por seu bando de reguilas do bairro de Alcântara que pedem uma conversa em particular. O Alferes, por acaso de graduação militar,
oficial Adjunto do Comandante de Companhia de Cavalaria, mal refeito da morte
do amigo Valentim e pressionado com estava por acontecimentos fora de seu
controle, desencadeados pela teima do capitão Mascarenhas em não deixar para trás, abandonado, o corpo de
um oficial sob seu comando, desejava tudo menos que ter que aturar aquela pandilha de reguilas, pela qual mantinha
indisfarçável simpatia e amizade, bem sabendo ele que decilmente iria resistir
a qualquer pedido, sobretudo, quando assim formulado “em colectivo” e, para varrer a testada, quer dizer, para marcar o território
e seu espaço de autoridade, o Alferes
barafusta mas que merda de balda é esta?
Mas vocês julgam que estou aqui de pernas abertas para vos aturar? E,
exagerando o tom façanhudo, têm dois
minutos para dizerem ao que vêm, mas antes, “aparência” de soldados, tratem de
abotoar as camisas manterem-se aprumados que a peluda ainda não chegou. E,
então, o bovino “Bonanza”, cabo da
cifra, desembrulhando a placidez e
corpulência, com os oficiais que nos
saíram na rifa, nesta Companhia, bem podemos esperar sentados que, quanto à
“peluda” vou ali e já venho, ainda acabamos por apodrecer na Guiné e, sem
dar tempo ao Alferes se recompor do murro em cheio, mas estamos aqui para lhe dizer a Companhia seria bem mais útil dentro
do Uige, que aqui a “apodrecer” no Quartel da Amura – o Alferes Valentim
compreenderia e ira agradecer. E certo de que vergara o Alferes, oficial Adjunto
do Comandante de Companhia, por acaso de graduação militar, o cabo “Bonanza”, empertigado na sua
condição de Comandante do grupo de reguilas alfacinhas, mas isto é assunto para discutir em privado e não no centro da parada
e, sem se deter avançou, com seu séquito, afoito para o interior do
edifício. A que vinham, pois, o cabo da
cifra, o pachorrento “Bonanza” e
seu bando de reguilas alfacinhas?
Um pouco mais de azul, Maria Adelaide, que é como
quem diz, prosaicamente, uma pouco mais de paciência e retornaremos ao céu de
nossos dias e à avidez de nossas vidas, antes destas “memórias de caserna”
serem, que cada um conta as memórias que tem, sendo que tantos existem que memórias
nunca terão, nem de caserna, nem outras, floridas que sejam, ou, tendo-as, se
recusam, lestas, tais memórias, ao aparo rombo de conta-las, tu suspensa de
uma urgente pergunta – “amas-me”? - e o autor (como se autor houvesse), em
prosa enrolada a evitar a resposta, em longos percursos por África. Mas, decisivamente,
minha amiga, África ficou para trás! Como te digo, estamos com um pé no barco e
o outro em terra. E nem tua vida, nem o odor acre da caserna, nem delicadas
pituitárias(literárias) , nem gloriosas façanhas embalsamadas, nos obrigarão a desistir do
final que tu mereces. Prosseguiremos,
pois, prosa redonda que seja, até a narrativa se esgotar por desnecessária,
Manuel Veiga
4 comentários:
Sou quem não tira o pé do barco da sua narrativa. Vou nela navegando "curtindo" as memórias de caserna sem tirar o olho de Maria Adelaide rss.
Um bom final de semana, meu caro amigo!
Um abração,
Bom dia, Manuel Veiga
Ainda hoje se vê o sofrimento físico e psíquico dos homens que andaram nessas guerras inúteis, se é que alguma guerra é útil. Quem se lembra deles? Ninguém ou quase. Quando se trata de comemorar isto ou aquilo nem do pó e da desgraça das famílias que também ficaram estropiadas alguém se lembra.
Estes fragmentos são uma narrativa com uma linguagem vernácula que nos faz visualizar e quase "viver" a vida de "caserna" com todos os seus problemas, seja a nível económico, de falta de recursos e também de certas tropelias e a necessidade de não seguir ordens vindas de superiores sentados nos seus gabinetes que nada conhecem do desenrolar de uma guerra que só lhes servia para manterem as suas posições de destaque.
Meu amigo, desejo-lhe um bom fim-de-semana.
Abraço
Olinda
Interessante texto, o seu.
Boa tarde.
Hoje: Deslaço memórias, d'amor ausente.
.
Bjos e um feliz dia de Reis.
Mascarenhas, Adelaide, Valentim, "Bonanza"
nomes de que antes nunca ouvi falar
mas tudo o resto, meu amigo, é-me familiar
embora
por terras de Angola
Enviar um comentário