quarta-feira, março 28, 2018

ANTI INOCÊNCIA


Sou a Branca de Neve – tenho sete porquinhos
E um jardim de girofles!

Sou o Capuchinho Vermelho:
- O Lobo Mau é meu amigo…
E tenho uma cabana na floresta.

 - E a tua avozinha sabe?
- Claro que sabe, é ela quem recebe a renda!


sábado, março 24, 2018

CÂNTICO DA PÁSCOA


 “Que querei daqui, vós, portentosos sons
Que do Céu vindes procurar-me no pó?
Soai antes onde há corações bons
A mensagem bem a oiço, porém, falta-me a fé
E o milagre é da Fé o filho amado...”

“Àquelas esferas não ouso aspirar
Donde me vem a boa e doce nova;
Mas quando o som se renova
À vida novamente quero voltar...”

“Então descia em mim a benção
Do Céu, na paz do Sábado, serena
E a voz dos sinos, de presságios plena;
E era um prazer fogoso a oração...
Um indizível anseio me impelia
A floresta e campos correr
E, entre lágrimas ardentes, sentia
Que em mim um mundo começava a nascer...”

“O Canto (da Páscoa) veio lembra-me os jogos de infância
Da primavera a festa livre da alegria;
O ânimo infantil sustenta-me a lembrança
Que do derradeiro passo me desvia...”

“Ressoai, ressoai doces hinos do Céu!
Lágrima, corre! ... Terra, aqui estou eu!...”

in “Fausto” – Johann Wolfgang Goethe
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Uns breves dias ausente
Beijos e abraços



sexta-feira, março 23, 2018

ANTI ALCOOLEMIA


Não há “tremedeira”
Que não dê asneira…

Aguenta-te, pá!...
Não forces a fronteira
Que é aziago

E bem podes - sei lá! -
Tombar de borco
Como copo
Vazio.


Manuel Veiga



quarta-feira, março 21, 2018

MICRO-PAISAGEM


Abruptas vozes sem distância e rumor
De águas. Abrem-se matinas no regato dos olhos
E açucenas a despontar primaveras.

Sou passagem. E secreta ponte
Nesta micropaisagem
De cores intimas.

O ar freme neste hálito da memória
A escorrer vertigens. E soletro o bago
E o mel. E o minucioso insecto
Em seu rendilhado voo.

E o zumbido das coisas
A lamber o cérebro.

Canto gregoriano
Em que me quedo
E me (des)digo

E inóspito me oculto.

Arfar do poema a abrir-se
Ao Mundo.


Manuel Veiga



domingo, março 18, 2018

COLHE O POETA...


Colhe o poeta a pétala. E o rubor.
Alegria breve

A desprender-se. E desamparada flor
Que estremece. E se ergue
No frémito

E se oferece. Nudez alva a derramar-se
Na manhã fria.

Lábios febris gretados a desenhar
O sobressalto. Sobre a pele.
E a sede que arde.

Flor e nome. Indelével perfume
A inflamar o declive fremente. Seiva que teima
No interior do caule.

(Poema reeditado )


Manuel Veiga


sexta-feira, março 16, 2018

Brasil - Assassinato da Vereadora MARIELLE FRANCO






No Brasil após o assassinato da vereadora e ativista Marielle Franco, o jornalista Beto Almeida contou na entrevista à Sputnik Mundo o que pode estar por trás destes crimes”

VER Sputnik

ANTI DRAMA...



Desce o pano sobre a cena
Decomposição da fala em alvoroço
E a persistência do eco.

Ruído de alma em fingimento
Sobre palco deserto.

E o grito-mudo…

Comédia da vida.
Em traço grosso.


Manuel Veiga



segunda-feira, março 12, 2018

ANTÍTESE...



No corpo do poema
Um murmúrio. Ligeiríssima fuga
Na dispersão da tarde...

Lá fora o Mundo!
Cá dentro o sopro de uma sonata
A diluir-se em cada verso...



Manuel Veiga

sábado, março 10, 2018

O Trabalho Humano Na Economia e Na Sociedade


“Reflectir sobre o trabalho humano envolve questionar a economia, a empresa, as relações mercantis ou o mercado como regulador supremo, mas também tomar consciência dos valores de civilização e de cultura que queremos preservar e desenvolver e bem assim inquirir como é que estes hão-de tomar corpo nas múltiplas instituições que integram as sociedades e presidem à sua organização. Com toda a razão, a Doutrina Social, que a Igreja vem desenvolvendo há mais de um século, insiste em que o trabalho é a chave da questão social.

Na sociedade contemporânea, a problemática em torno do trabalho, do seu estatuto, do lugar que assume na produção e repartição da riqueza e, de modo geral, do papel que lhe é conferido na organização da vida colectiva ganhou novos contornos, já que o trabalho assalariado e dependente se tornou num bem escasso e, do mesmo passo, a relação laboral conheceu uma acentuada perda de poder negocial dos trabalhadores, decorrente da globalização e da financeirização das economias.

Por outro lado, os governos e a administração pública viram os seus meios de regulação e de intervenção fortemente condicionados pelas regras de um mercado cada vez mais aberto, competitivo e desregulado. É neste quadro que emergem questões novas que suscitam o interesse e empenho de todos os cidadãos e cidadãs que recusam a inevitabilidade dos fenómenos sociais, sejam eles o desemprego estrutural, o trabalho precário, os baixos salários a par da cada vez maior acumulação da riqueza produzida, o abaixamento dos níveis de protecção e segurança dos trabalhadores, etc...

No contexto das novas coordenadas, ganha particular acuidade o próprio conceito de trabalho humano que não pode restringir-se apenas ao trabalho assalariado, mas há de incluir o trabalho de formação pessoal, de educação dos filhos e de prestação de cuidados na família ou na comunidade. O trabalho assalariado é apenas uma entre outras componentes do trabalho humano e do contributo que cada pessoa deve trazer à sociedade em que vive. Como integrar esta perspectiva nos mecanismos de repartição da riqueza e de organização das sociedades, quando se pode antever que irão sendo menores as oportunidades de trabalho assalariado para todos os activos que o procuram?

Com a globalização, os poderes públicos nacionais viram a sua capacidade de intervenção na regulação e desenvolvimento das suas economias consideravelmente reduzida, sendo necessário encontrar novas formas de regulação do mercado a nível supra nacional sob pena de vermos persistir as situações de grande desigualdade e exclusão social, que hoje se verificam, tanto à escala de cada país como, e sobretudo, à escala mundial.

Nem sempre o cidadão comum se dá conta destas realidades, não sabendo como lhes fazer face e como exigir dos respectivos governos actuações conducentes à construção de mecanismos de globalização da solidariedade, condição sine qua non para o desenvolvimento e a paz. De pouco vale engrossar a corrente do rio das muitas queixas e dos justíssimos descontentamentos (às vezes, protesto e actos de rebeldia), ainda que o leito de certos rios mais calmos se faz com o galgar das margens que os querem conter...”

(…)

Manuela Silva



quinta-feira, março 08, 2018

A MULHER DE VERMELHO...


Rasgam-se as cortinas e sob o foco a Mulher
Esguia como o tempo liberto como o punho
Erguido ao céu da praça cheia e às canções!...
Maiakovski grita em métricas guturais:
“Abram alas ao Futuro que perpassa nas dobras
Do manto vermelho!...”

A Mulher inclina-se em dignidade soberba
Segura nas mãos a flor dos dias e nos olhos
O fervor prenhe de Lonjura e de Distância.
E a palavra ousada nos lábios escarlate
Como a túnica...

Em baixo uma criança negra soletra liberdade
Nas pétalas desfolhadas do cravo rubro
Que a mãe lhe dera com o leite...

E o pai sorri com os imaculados dentes
Da fome. Com o grito. Como a guerra.
E ergue o punho à Mulher de Vermelho
Que o acolhe no seu seio de cristal...

E o devolve ao Povo acumulado na Praça
Num gesto de febre
E luta...

Viva a Liberdade!


Manuel Veiga
"Poemas Cativos" - POÉTICA Edições – pág. 51
Lisboa 2014

quarta-feira, março 07, 2018

DIA INTERNACIONAL DA MULHER - Ano 2074



- “Celebramos?”

- “Teus olhos abrasam
Teu corpo incendeia-me…”

- “Sim, sei…”
Mas celebramos? O Dia da Mulher,
Celebramos?”

- “Se tu (me) queres
Ofereço-te uma flor
E meu amor…”


Manuel Veiga - Lisboa  2074


segunda-feira, março 05, 2018

O MEU AMIGO ZECA (Revisitado)



O meu amigo Zeca, solteirão impenitente, alentejano de Beja, economista do Quelhas e protector de donzelas desvalidas, estivera mesmo à beira de “ter uma vida boa”, não fora o caso amoroso com Madame X, uma mulher fogosa “que andava a pedi-las” (Zeca dixit), esposa do administrador da empresa pública, onde por empenho de familiares, fora colocado, depois de breve passagem pela Administração Pública. Ironicamente, foram o sapato apertado de uma octogenária senhora e seus sofridos joanetes a causa da sua desgraça,

Posto, portanto, no “olho da rua” da empresa pública, onde, com rasgada visão do futuro, era assessor da Administração, o Zeca teve que se virar. Viveu uns tempos dos rendimentos familiares, mas um homem não pode ficar parado toda a vida. E, como bem se sabe, a evolução da espécie humana tem sido caprichosa e injusta: o homo faber acabou por dominar o homo eroticus, até mesmo nas naturezas mais refractárias, como é o caso do meu amigo Zeca...

Enfim, depois de uns tempos “à vara”, que é como quem diz, sem outras responsabilidades que não fosse apascentar suas pulsões predadoras, decidiu o Zeca voltar ao trabalho, agora por conta própria, pois era para meu amigo ponto assente, em laudas de juramento lavrado, que “filho de puta nenhum lhe daria mais ordens, nem teria tomates para o despedir...”

Foi assim que nasceu a empresa de consultadoria, de que o meu amigo Zeca é sócio fundador e gerente único e cujo volume de negócios está em proporção inversa à respeitabilidade da sua barriguinha. Quer dizer, dobrada a década dos cinquenta anos, com o pendor femeeiro mais amaciado, quando a liquidez da empresa o permite, o Zeca relaxa na culinária e, então, a barriga entra em espiral inflacionária e, em momentos de crise da empresa, com o stress do trabalho, o arredondado da barriga reduz-se à expressão de normalidade de um cinquentão

Acontece que meu amigo Zeca, alentejano de Beja, economista e solteirão impenitente esteve um destes fins-de-semana lá em casa, que frequenta, quando bem quer, sem favor, nem cerimónia, pois bem sabe da nossa genuína estima e afeição mútuas, caldeadas numa amizade impoluta que vem desde os velhos tempos do “Mandarim”, na Praça da República, em Coimbra, enquanto jovens estudantes universitários, aprofundada mais tarde em Lisboa, onde assentaram arraiais.

O Zeca apareceu agora e - imaginem! – acompanhado pela Mitó. Se, porventura, o Zeca alguma vez esteve tentando na vertigem do casamento foi seguramente com a Maria Antónia. Claro que a minha mulher e eu ficamos radiantes com a visita. A Mitó e a minha mulher são amigas de infância e ambos temos sincera estima por um e outro. Esclareço que a Mitó tem um filho, produto de um breve casamento com o Peter, um inglês que a nossa amiga descobriu na bruma londrina, quando, finda a licenciatura em Germânicas, foi para a Grã-Bretanha aperfeiçoar o seu inglês e a curtir o desgosto amoroso pelo Zeca.

Devo referir que o rapaz saiu moreno e trigueiro, em vez da loira cabeça e da pele deslavada do Peter. Costumo irritar a minha mulher, quando a (des) propósito gracejo que o filho da Mitó é o inglês mais parecido com um alentejano que conheço. Tenho então a resposta agastada: “Lá estás tu, com as tuas parvoíces. A Mitó e boa rapariga!” Como se eu dissesse o contrário!…

Mas retomando o fio. O Zeca está a ficar entradote. Engordou excessivamente. A barriga do meu amigo alargou, para além dos limites justificados pela satisfatória situação financeira da empresa, As pálpebras pesadas denunciam cansaço das noitadas e dos excessos da culinária, de que o Zeca é expert… (Ainda lambo os beiços com a perdiz estufada e feijoada de lebre que. algum tempo atrás, o Zeca preparou para um grupo de amigos no seu apartamento debruçado sobre o Tejo).

Perante o seu ar “carregado” não resisti à provocação: - “Tens que te “aviar”, pá” - disparei, acentuando os subentendidos. O Zeca encolheu os ombros fixou-me, num olhar sonolento, semi desdenhoso: - “Gajas é que não me faltam, que é que tu julgas?”. E eu, a apurar a picardia provocadora, roendo-me, num gozo antecipado: - “Imagino! Com a oferta que por aí vai…Certamente que alargaste à net o universo de recrutamento, não?! Com franqueza, pá! Estás mesmo a ficar ché-ché...”

Então, o Zeca em ruidosa gargalhada e resposta afiada - “Mal imaginas!... Ché-ché estás tu a ficar, agarrado às saias da tua mulher! Mas tenho uma boa para te contar! A tua perfídia política vai babar-se de gozo”.

- “Ah, mete política! Sexo e política sempre deram boas histórias!...”- gracejei.

E, como as mulheres de aproximavam, acrescentou, prudente, perante a minha curiosidade: - “Conto-te depois de almoço!...”  

E contou. Entre dois cálices de conhaque, uma sonolenta partida de xadrez e voz cálida de Ella Fritzgerald em fundo, enquanto as mulheres cirandavam pela casa e tricotavam uma dessa conversas infindáveis, alheias a tudo, que não seja ouvirem-se, o Zeca contou esta “estória” deliciosa.

Esguardai, portanto...

Um certo grupo empresarial, a que a empresa do meu amigo Zeca presta apoio na área de auditoria e da fiscalidade, decidiu dedicar-se às energias renováveis, na mira dos propalados apoios comunitários. Feitos os estudos e avaliado o projecto, a que o Zeca esmeradamente se dedicou, foi decido que a fábrica seria instalada no norte do País, por razões óbvias do preço da mão-de-obra e outras vantagens. Escolhido o local, havia que negociar com o Município apoios e contrapartidas. Na data acordada, depois de contactos prévios, luzidia comitiva, ida de Lisboa, deslocou-se ao município em causa, chefiada pelo “chairman” do grupo, um vulto destacado da política (retirado) e dos negócios...

Dispenso-vos da colorida discrição que o Zeca fez do roliço presidente da Câmara, afiambrado no seu casaco de flanela azul com botões de metal e o inevitável lenço de seda, a aconchegar a dupla papeira. Digo-vos, porém, que o Zeca contou ter sido fulminante a antipatia mútua. Uma espécie de “coup de feu” invertido, a roçar o verdete da náusea...

Feitas as apresentações, perante o acentuado sotaque alentejano (que aliás o Zeca cultiva com prazer), o Presidente da Câmara, numa prosápia de gelar o amplo salão, fez uma qualquer alusão de mau gosto a moiros e ciganos, que ainda infestam o sul do País. Ora, o Zeca não é homem para se conter, mas não teve tempo para “espingardar” a resposta ácida que se avizinhava. O chairman, com um sorriso felino a rasgar-lhe a face, antecipou-se, dirigindo-se ao Presidente da Câmara:

- “Mas olhe, senhor Presidente, que aqui, pelo seu Concelho, não faltaram moiros; e, se bem observar, ainda é capaz de encontrar algum por aí disfarçado...”

- “Moiros aqui? No meu concelho? Nunca!... Onde raio o senhor foi desencantar semelhante ideia?!"...- apavorou-se o Presidente da Câmara.

Nessa altura, já o ambiente estava mais distendido. E o chairman, apontado para a bandeira do Município, imponentemente exibida, entre a bandeira da República e a bandeira da União Europeia: - “Basta olhar para a bandeira do Município...” – sublinhou, alargando o sorriso...

E o outro, a ficar apopléctico: - “A bandeira do Município? Mas que tem a bandeira?

- “Não tem nada que não deva, senhor Presidente! É aliás – acrescentou diplomático – uma bonita bandeira! Mas não deixa por isso de ostentar, no brasão, o crescente muçulmano!...” E, com a gargalhada a estender-se pela sala, rematou: - “Ora, se os moiros não andaram por este Concelho que faz o Crescente muçulmano nas suas nobres insígnias?!"...

Aquilo era demais, convenhamos - virem, assim uns bárbaros sulistas a dar lições de história local. Suprema humilhação…

E o distinto Presidente, como quem apanha um murro no estômago, titubeou, mas não se deu por vencido. Saiu da cadeira, sibilando: “Esta agora!... Esta agora! E eu que nunca tinha dado por isso!...Mas já vou tirar tudo a limpo”... Fez minuciosa análise à bandeira e, perante a contrariedade geral, que desejava aviar a reunião o mais cedo possível, bamboleando as nádegas, qual odalisca fora de prazo, o Presidente atravessou a sala em direcção ao telefone. Do outro lado, titubeante, o vereador da Cultura replicando a pergunta inesperada:

- “Moiros?... Se houve moiros no Concelho?!”...
- “Sim. Moiros no Concelho!... Que sabes tu disso?...” – insistiu ansioso o Presidente.

E tapando o telefone, enquanto aguardava, expectante, a resposta que se adivinhava frustrada, o Presidente alargou o olhar aos circunstantes e, em desabafo contido: - “Tanto que me bati para nomear este gajo como vereador da Cultura e querem ver que não sabe se existiram moiros no Concelho...”

E, de facto, depois de uns momentos de silêncio constrangedor, pressentindo-se em ebulição os (parcos) neurónios do vereador, chegou a resposta, embrulhada em titubeantes desculpas: que não, que não sabia! e nem nunca lhe constara terem havido moiros no Concelho... Mas se ele, Presidente, assim o desejasse, dentro de momentos a Dr.ª Filomena, directora dos Serviços Culturais, estaria na sua presença para completa elucidação do assunto.

- “Manda-me cá essa gaja... “ - Ordenou o Presidente, em voz de falsete e tom desabrido, suspeitando-se pelo esgar a enorme contrariedade que a presença da Directora lhe provocava.

Ainda o charmain insistiu, cerimoniosamente, ansioso seguramente por entrar no assunto que ali os trazia para o "Presidente não se incomodasse..., que não valia a pena... Que por certo a Presidente tinha toda a razão e que nunca por ali houvera moiros..., que a sua leitura das insígnias municipais assentava, por certo, nalgum equívoco de alguém que não era especialista...”:

Mas o Presidente foi peremptório: “Não! Agora faço questão! Este assunto tem que ficar esclarecido. Eu não sou homem para deixar para depois o que pode ser resolvido já!... “

Entreolharam-se os circunstantes, aceitando o destino com bonomia, bem sabendo eles que se “Paris vale uma missa” também os interesses económicos em jogo justificavam os desconchavos de um Presidente da Câmara...

O silêncio, cortado pelos olhares cruzados e os semi-sorrisos dos visitantes, foi entretanto interrompido por um discreto toque na porta e a entrada triunfal da Dr.ª Filomena, uma balzaquiana espampanante, emoldurada em tailleur laranja, sobre o qual se derramava uma opulenta cascata de cabelos negros, longos e encaracolados.

Afogueada e empenhadíssima, no alto de seus tacões, lançou sobre a sala, povoada de ilustres forasteiros, soberbo olhar, em jeito de leoa que, na floresta, tivesse detectado a novidade da caça: “Uma Lua crepitosa e cheia em noite quente e plena de Agosto”, como o Zeca, em arroubo poético, distinguiu a aparição...

Porém, sobre “quarto crescente” nas insígnias municipais, a Dr.ª Filomena prestou uns esclarecimentos confusos. Que talvez sim, ou talvez não, que a única hipótese admissível era a de que os cruzados, nos tempos da reconquista, terão atravessado o concelho; ora, como se sabe, onde há cruzado há moiro, logo é possível que...

Nesta fase da erudita explicação, quiçá prolixa, o Presidente pigarreou e, sardónico, soltou o chicote de seu falsete, zurzindo, impiedoso, o denodado esforço da Dr.ª Filomena que, com manifesto prazer, exibia seu charme e sua erudição...

- “Ó doutora, deixe lá essa treta dos cruzados!... A questão e simples e clara: houve ou não moiros no Concelho? É que se não esclarece esta magna questão, a mim e aos nossos visitantes, terei de concluir que não passa de uma burra com saias...”

O silêncio, até então oscilando entre o divertido e o enfado, gelou. A “pobre” doutora ainda ensaiou uma desculpa qualquer e, em sua fragilidade de vítima de um mais que evidente erro de casting, teve a ousadia de invocar a penúria do orçamento municipal para actividades culturais.

Antes o não fizera: - “Ó sua... ó sua incompetente! Pois atreve-se?” - casquinou o Presidente, qual cascavel cuspindo veneno - “eu não lhe admito, ouviu?! ... As minhas ordens são para cumprir, não para discutir!...”

E, colérico, com o dedinho roliço espetado: - “Trate de saber imediatamente se houve moiros no concelho, antes que a reunião termine e estes senhores partam. Era o que me faltava!...” E, descorçoado, atirando-se para o presidencial cadeirão: - “Estou rodeando de incompetentes!...”

Era demais. Como poderia o Zeca, fulminado pelos prenúncios crepitosos do vulcão pronto a explodir, aceitar o vexame àquele soberbo exemplar do belo sexo? Reagiu, portanto...E perante a surpresa dos presentes e a apreensão do chairman, que sobretudo velava pelo bom resultado da diligência que ali os trouxera, o Zeca insinuou-se:

- “Ó senhor Presidente, tenho uma sugestão para resolver as preocupações, que, inadvertidamente, lhe viemos causar: o senhor Presidente coloca no estandarte do Concelho o imponente menir que daqui se avista e nós levamos connosco a malfadada lua...”

Referia-se o Zeca a uma dessas monumentais pedras pré-históricas, em forma de falo apontado ao Céus, que pululam no país rural e que, no caso, decorava a entrada dos Paços do Concelho, ao alcance do olhar através da janela aberta.

A insólita proposta apanhou todos de surpresa. E, intrigados, entreolhavam-se. Apenas as longas pestanas da Dr.ª Filomena se moveram para o Zeca, num doce e cúmplice pestanejar, prenhe de promessas. Entretanto, os sorrisos abriam-se, no rosto dos “bárbaros” visitantes sulistas. E, após fecunda ponderação, para pasmo dos presentes, o Presidente, confiando o queixo, exclamou em exaltada anuência.

- “Ora aí está uma sugestão a ter em conta...”

Depois de firmado o contrato, já de regresso a Lisboa, o chairman para o Zeca: - “Francamente, Zeca. Você é um exagerado! Um menir, hã? Não lhe bastaria um bom boneco do Bordalo Pinheiro?”

Assim o disse meu amigo Zeca, alentejano de Beja, economista do Quelhas, solteirão impenitente e protector de donzelas desvalidas, acrescentando, por entre estridentes gargalhadas, que o contrato com a autarquia vai de vento em pompa e, assim, as visitas ao norte irão continuar para proveito próprio e alegria da “competentíssima” Dr.ª Filomena, que tem dado sobejas provas de seu talento...

Um sortudo, meu amigo Zeca, não acham?

Mais tarde, saíram juntos, como chegaram, o Zeca e a Mitó. Minha mulher, foi à janela vê-los partir e regressou com um sorriso misterioso: - “Sabes que o Zeca segurou a mão da Mitó e partiram de mão dada!”, disse-me enquanto,  discretamente, levantava os cálices e a garrafa.

- “ Quem sabe se não será desta!...”- suspirou, esperançosa...
- “Sic transit gloria mundi” – ripostei, enigmático. Fulminou-me com o olhar…

Passados escassos dias recebemos o convite para o casamento do Zeca e da Mitó. De quem somos, orgulhosamente, os padrinhos.


Manuel Veiga
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Escrito na primeira pessoa,  este texto é "literatura", fingimento, portanto. O sujeito      da escrita nada tem de comum com este vosso amigo, que assina o texto. 

Nem o Zeca é real. E, em qualquer região do País, se poderia localizar o enredo da "estória".



quinta-feira, março 01, 2018

Pletórica Dança...


Rebelam-se as alturas e os cumes
E os percursos são agora agitação de nuvens  
E os olhos a arder na distância.
Nada neste azul é paisagem
Grito apenas de milhafre
A rasgar a vertigem.


Mais além a passagem muda
E o apelo dos dedos em desespero
A soletrar rugosidades.
Descida à raiz d´água
Na gretada sede
Dos lábios.

Famintos são os corpos
Em simulacro de anjos a humanizarem –
Dulcíssimos! – o coro dos proscritos
E a pletórica dança
De inacessíveis
Reflexos.


Manuel Veiga



Para Um Novo Teorema da Fisica Moderna

  dizem expeditos cientistas que o leve bater das asas de uma borboleta à distância de milhares de quilómetros pode causar uma catás...