No espaço
social-rural da minha infância, o lugar que cada individuo nas hierarquias
sociais era, em grande medida, estabelecido pelo meio de transporte individual.
Da base ao topo, os meios de transporte, eram assim, "escatologicamente" distribuídos:
“À pata”,
quer dizer, a pé, naturalmente, para o pé-descalço, que se arrastava, de terra
em terra, em busca do favor de um trabalho, por rude que fosse.
De burro,
animal resistente, de escassa comida e poucos protestos, para os rendeiros
pobres, com uma ranchada de filhos, que nas ladeiras íngremes cultivavam uns
alqueires de centeio, sustento da família e que, mal chegado o Inverno, já
escasseava.
De macho
ou de mula, animal estéril, híbrido das espécies burro e cavalo, encorpado e
possante – utilizado por almocreves ou um ou outro agricultor de menores
posses.
De égua,
animal nobre e distinto, liberto do opróbrio dos trabalhos pesados, entregues a
pachorrentas juntas de bovinos; era o meio utilizado pelos agricultores mais
ricos e de melhores terras - a égua acrescentava, à elegância do porte, uma
outra vantagem: ser género feminino, logo parideira e o consequente ganho das
crias.
Finalmente
- topo de gama - o garboso cavalo, símbolo da ostentação e dos resquícios de
uma fidalguia de fundilhos gastos e poluídos que, arruinada, teimava em (mal)
subsistir num mundo inexoravelmente em mudança.
Após esta
breve resenha, estarão agora, porventura, os meus leitores, mais aptos e melhor
apetrechados para a compreensão da “estória” que me propus contar-vos.
Passou-se
assim...
Montado em
sua fogosa égua que, em escassas horas o levava à sede do concelho, o brioso
agricultor, herói desta “estória”, depois de distribuir ordens a familiares e
serviçais, rumou cedo à vila, em vista satisfazer afazeres que administração do
casal exigia e, naturalmente, para “desenferrujar” os sentidos, desfrutando o
bulício “urbano” da feira concelhia.
Ponto
obrigatório era o Grémio da Lavoura, no centro da vila, lugar de ajuntamento
dos lavradores, provenientes das diversas aldeias, das mais distantes às mais
próximas, que depois de fazerem o “manifesto” (registo obrigatório) do trigo ou
do vinho, ou uma compra ou outra de uma qualquer alfaia ou utensílio agrícola,
por ali se ficavam, arredondando conversas, sabendo novidades, falando do
estado do tempo e das colheitas, ou empertigando-se, na sua importância social,
ditada pelos haveres e fazenda de cada um.
Mas todos
fazendo parte da mesma “elite rural”, pois que, naquele clube de “patrícios”,
como mutuamente se designavam, não havia lugar para qualquer um que não se
medisse numas boas jeiras de terra, lavradas por uma, duas ou três juntas de
bois. E, naturalmente, quem não pudesse sustentar uma esmerada, vistosa égua,
um must de prestígio, como, por certo, neste momento da narrativa, os meus
leitores já se deram conta.
Assim,
nessa tarde em fim de Verão, distendidos os corpos das tensões do dia e
animados os espíritos com uns copos de vinho a celebrar reencontros e amizades
antigas, quando o nosso herói, com a égua pela brida, se preparava já para
regressar a penates (que a distância não era peca e de um momento para o outro
a noite caía), surgiu no grupo mais um empertigado conviva, alargando-se assim a
roda.
O
protagonista da estória que, desde tenra idade, frequentava feiras e mercados
e, por todas as aldeias do concelho, tinha amigos e conhecidos - como era de
sua condição. Muitas vezes, aliás, por ocasião das celebrações festivas, era
hóspede e conviva em cada lar, por mais distantes que fossem os festejos e os
convites. Era, por isso, quase um escândalo não “frequentar”, num processo de
mútuo reconhecimento, quem, na área de todo o concelho, “merecesse a pena”
conhecer. Quer dizer, não havia, por toda a área do concelho “patrício” com quem não se medisse!
Mas a
verdade é que não conhecia o novo intruso...
O
“escândalo” e a angústia existencial eram tanto maiores quanto é certo que o
retardatário estava a ser nomeado, por um ou outro dos circunstantes, como
“senhor Zezinho”, suprema glória de distinção o tratamento em “inho”, ele que
nunca fora “antoninho”, mas apenas António, a que muitos acrescentavam, com
alguma velhacaria, não o apelido da família, mas a “alcunha” que herdara do
honrado nome de seu pai e que, alcunha essa, haveria de prolongar-se por filhos
e netos.
“Quem
seria, pois, o figurão?”, interrogava-se, intimamente, espiando adames e
trejeito, sorvendo-lhe a verve desenvolta, admirando-lhe os lustrosos
polainitos de cabedal, a prender-lhe, por cima das botas, a perna das calças.
E,
sobretudo, o luxo de duas reluzentes esporas afiveladas, uma em cada pé, ele a
quem uma única espora bastava para meter a trote a garbosa égua, lustrosa de
bom trato e de um azeviche negro de causar inveja ao mais pintado. “Quem seria,
pois, o finório”? ...
E, neste
diálogo com seus botões, jurou para si o herói da nossa estória que não
acabaria o dia “sem lhe conhecer a montada”, pois que todo aquele aparato lhe
soava um pouco a falso... Dito e feito. Simulando compras de última hora,
despediu-se do grupo de “patrícios”, recomendando-se a amigos e familiares
distantes e, de égua pela trela, deu mais uma volta pela feira já prestes a
levantar ferro. Sempre, naturalmente, atento ao desmanchar do grupo.
Quando
percebeu que o grupo se desfizera e que o regresso a casa se iniciara, também o
nosso herói montou e, medindo tempo e distância, meteu a égua em trote
acelerado, bem sabendo ele que, antes os caminhos bifurcassem, ele para oeste,
em direcção à ladeira do rio e o intrigante “senhor Zezinho” forçosamente sempre
em frente pelo planalto, haveria de alcançar a ranchada que, pelos caminhos
sempre se junta, trocando chistes e gargalhadas e, certamente, no meio dela,
diferenciando-se, o sujeito, objecto de suas inquirições íntimas. E a
respectiva montada, está claro...
Desesperava,
no entanto, o herói desta fita. Passara, em trote firme, um e outro grupo
barulhento, que saudara como lhe cumpria, moderando a passada, mas “onde diacho
se metera o homem”? Não havia maneira de o descobrir por muito que acelerasse
ou moderasse o trote...
Até que,
quase a desistir, depois de vencer uma curva que, por momentos, encobria o
seguimento do caminho, lobrigou a umas dezenas de metros de distância,
despernado do grupo que mais à frente se distanciava, um vulto que se diria
quixotesco. Imaginem assim os meus leitores o porte garboso e altivo do
“cavaleiro da triste figura”, firme e hirto, a montar, não o estimável e brioso
cavalo Rocinante, mas o burro lazarento e mirrado que servia de montada e
apresto ao seu fiel escudeiro, companheiro de aventuras.
Pois,
assim, o “senhor Zezinho” para espanto e gozo do protagonista desta estória.
Montando, em pêlo, a lazarenta criatura, com dois sacos presos um no outro,
servindo de alforges, as pernas compridas do cavaleiro atravessavam-se por
baixo da barriga da besta, com o reluzente par de esporas, a bater uma na outra,
num tilintar obsessivo, salvando-se assim a azémola das ferroadas dos espigões
que, bem lhe bastavam as picadelas de moscas e zangões.
Contido o
riso e o gozo, o nosso herói não resistiu à picardia: “Meta-lhe esporas, senhor
Zezinho, olhe que se faz tarde. E se a noite chega ainda tem que levar a
montada ao colo...”
E,
apertando a égua, abalou em galope, por entre a poeirada dos cascos, que os
últimos raios de sol davam tonalidades doiradas...
Manuel
Veiga
"NOTÍCIAS DE BABILÓNIA e Outras Metáforas" - pág. 141
MODOCROMIA Edições - Abril 2015
8 comentários:
Texto muito bom. Adorei :))
Voam borboletas em desejos fugazes.
Bjos
Votos de uma óptima Quarta - Feira
Fantástico e texto que adorei ler:;))
Voam borboletas em desejos fugazes.
Bjos
Votos de uma óptima Quarta - Feira
Boa tarde Manuel,
Um texto magnífico e com um humor fino que caracteriza os bons escritores!
Adorei.
Um beijinho.
Ailime
Ainda ouço a maravilhosa voz de Elis Regina da publicação anterior. E é tudo tão natural, tão solto!
Este excerto de "Notícias De Babilónia e Outras Metáforas" é de fino trato literário. Alias, nem sei se gosto mais das tua prosa se da tua poesia. Em ambas me perco. A forma como desconstróis a personagem, em jeito de remate, é mesmo um "must".
Sorrindo, deixo-te um enorme abraço amigo Manuel.
Adorei este teu texto, Manuel e, digo-te, revi-me nele, pois nasci e vivi numa aldeia onde muitas coisas se passavam como descreveste. Havia os pobres coitados que andavam a pé e serviam ao jornal os endinheirados, lavradores com muitas propriedades que já se davam ao luxo de ir à feira de camioneta ( não usavam burros, eguas ou cavalos), mas também não tinham carro ou então, em ocasiões especiais, alugavam o táxi. Até à minha adolescência, praticamente não havia carros e taxista só havia um que era o meu pai. Aos poucos as coisas foram mudando, felizmente, pois a vida era muito dura. Tirando a feira semanal na vila vizinha e as festas e romarias nada mais havia para animar o povo que vestia as suas melhores fatiotas , guardadas para a missa de Domingo e para estas ocasiões especiais. Manuel, muito obrigada por me fazeres lembrar esses tempos dificeis, mas que tinham casos engraçados. Obrigada também por nos teres trazido a saudosa Elis Regina. Sucesso para o teu livro e muita saúde. Um beijinho
Emilia
Ora viva!
Tinha vindo aqui ler lépido, descalço, pelo carreirinho polído de pé. Imprevistamente, ferrou-se-me espinho no pé e, que remédio, sentei-me à sombra à espera que passasse, mesmo que fosse, azémola por esmola. Mas, como dizia o Günter Grass "a escrita continua a ser do prazer a sempre viva coceira".
Valeu a pena, Manuel.
Nem tudo o que parece é... e no caso... não devemos avaliar a montada... pelas esporas do cavaleiro...
Belíssimo texto, com um apuradíssimo sentido... da realidade... apercebida com um toque de refinado humor...
Adorei esta elegância subtil... aplicada ao mundo dos quadrúpedes... dado que a mesma, nem sempre pode ser aplicada no universo dos bípedes, por pura falta de elegância dos mesmos... não na forma... mas na essência, por vezes... afinal, há animais... e animais...
Mais um extraordinário trabalho, Manuel, que foi um verdadeiro prazer apreciar!...
Beijinho
Ana
Quem sabe tocar a pena não precisa de partitura. Há sempre uma boa música a nos prender os sentidos.
Um forte abraço, caro amigo Manuel!
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