“(...) E se bem reparares, Maria Adelaide, a tua própria sina é marcada indelevelmente pela constância dos “Apoucalhados”, ao longo dos tempos. Não carregues a contrariedade, minha querida, pois é mesmo como te falo, bem como esta narrativa, que outra coisa não pretende ser senão o embotado reflexo do espelho em frente do qual nos desnudamos, teria justificação ou sentido, nem, porventura, haveria narrativa, pois que, nela, a tua existência não seria. Bastaria, para tanto, que, algures perdido num lugar distante, não nos inóspitos cumes da Gardunha, mas noutro local mais interior ainda, onde o santo padre Manuel, tio de Raquel, a sereníssima e imperial Raquel da infância, já roído da “ferida ruim” que o haveria de levar, não tivesse ungido, com o nome João, na antiquíssima e românica pia baptismal da Igreja Matriz, um robusto infante, filho do Zé Manhas, jogador da batota e cantador de fado, sem nada de seu que não fosse sua desempenada figura e a poderosa “lábia”, casado com a senhora tua sogra, donde saíra o rebento, que teimou, a exemplo do pai, na ganância de que “haveria de casar rico” e que a ti, Maria Adelaide saiu na rifa, para descanso de teu extremoso Pai e o amaciamento de tuas “verduras” contestatárias, como jovem universitária, que fostes.
Ora todo
este enredo, todos estes nós de acaso, apenas ganham sentido porque um
“apoucalhado” lhes dá coerência e sentido, pois se ele não fora, se “pobre de
espírito” não fosse, nunca, por todos os “nunca”, o Zé Manhas, jogador de
batota e cantador de fado, por afinada que fosse sua “lábia”, jamais levaria ao
altar a mãe do João e tua futura sogra e com ela o robusto património dos três
irmãos órfãos, pois que, se “apoucalhado” não fosse o irmão do meio, de sexo
masculino, seria dele naturalmente, pela sua condição de homem a administração
da próspera casa de lavoira e não a irmã mais velha, valente senhora, mas
mulher, e então o “vivaço” do senhor teu sogro, conhecido pelo Zé Manhas, se ao
assédio sentimental se atrevesse, levaria uma exemplar corrida de pau, face ao
atrevimento de ousar órfã, sua irmã, rica e prendada, fora do alcance e dos
sonhos de um qualquer “pilha galinhas”, perdão, pilha donzelas, e tal
inadmissível casamento não seria realizado e, portanto, não teria sido e,
então, não existiriam, nem sogro, nem João, teu marido, meu amigo de infância,
nem certamente aproximação entre nós, nem as tuas pernas descuidadas teriam
oportunidade de se sentarem no tampo da minha secretária, para deslumbre e
prazer meu, nem haveria a gloriosa Monica Vitti, nem Antonioni, nem o “Eclipse”
no cinema Quarteto, nem beijo ardente, nem nossos corpos, nem febre de desejo e
nossas vidas outras seriam e outros os fragmentos, se fragmentos houvessem, em
vocação de literatura.
Por isso,
Maria Adelaide, não julguemos os “apoucalhados”, nem queiramos a barca que
levarão suas almas, nem menosprezemos os seus poderes (ocultos), que muito bem
podem, sem nos darmos conta, determinar o destino do Mundo, quiçá do Universo.
E se, outro mérito não tiverem, servirão, ao menos, os “apoucalhados” para
testemunhar a fragilidade dos “acasos”, em que nossas vidas de despenham.
Aliás, Maria Adelaide, o próprio “Assobio”, o “apoucalhado” ou “pobre de
espírito”, que chegou à recruta militar, com três dias de atraso, como
encomenda extraviada e de que temos vindo a falar, pois dele decorre o
emaranhado fio que mantém à tona a narrativa, que, aliás, no tempo e no modo,
lhe é absolutamente estranha e que apenas o “corpo mítico” da escrita lhe
permite o (in)sustentável peso para nela figurar, irá ter, como adiante se
saberá, decisivo lance na evolução deste enredo (…)”
Manuel
Veiga
“Do Amor e
Da Guerra – Fragmentos” (excerto)
5 comentários:
Um bom texto :))
Hoje, com: " Mélicos tormentos "
Bjos
Votos de uma óptima Sexta- Feira
Um fio, uma meada que se vai desenrolando. A vida é feita de várias partes que se somam, transformando-se num todo. E no fim, analisando, verificamos que pessoas que em princípio nada terão a ver connosco desempenham ou desempenharam um papel de relevo na condução das nossas vidas, do qual não suspeitaríamos. "Apoucados" ou "pobres de espírito", isso segundo a nossa lógica, cada um com o seu lugar no decurso das tramas e que, por vezes, poderão influenciar o fluxo da própria História.
Bom fim de semana, meu talentoso Amigo.
Abraço
Olinda
Um excerto com uma excelente narrativa (e deliciosa).
Caro Veiga, tem um bom fim de semana.
Abraço.
E de tão labiríntica a vida, nós nunca sabemos onde (e quando) vamos parar. Um abraço.
Foi bom ter encontrado este interessante texto após o meu regresso
Abraços
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