terça-feira, abril 02, 2019

A CARTA QUE NUNCA TE ESCREVEREI - Take 13


Prossigamos, pois, nesta senda, como quem, depois de limpo o terreno, ergue andaimes e depois os primeiros tijolos, obedecendo a linhas ainda mal definidas, sendo certo, porém, que em toda a humana obra, Deus põe e o Homem dispõe, o que, no caso, mais valeria dizer, de acordo com a precaridade da obra e de seus humanos desígnios, que ergue-se a espada e a espada faz-se, pois que apenas o barro de que a obra é feita lhe pode definir o perfil ou traçar-lhe o destino. Erga-se, então, a espada, que é como quem diz, em linguagem chã e rude, atiremo-nos a esta servidão da escrita como gato a bofes, bem se sabendo quão débil é o braço e ousado o sonho e, sendo verdade que “felix qui potuit rerum cognoscere causas”, quer dizer, em romba tradução, que “feliz aquele que pôde perscrutar as causas das coisas”, se isto é verdade, então, do fraco entendimento do mundo e dos homens, procuremos elucidar os fios desta coreografia, que episodicamente tem a Casa Grande e seus domínios como palco, qual teatro de sombras que, aos poucos, se vai desvendando trave mestra na arquitectura da narrativa que, em temerária ousadia, se requer literária.

Diga-se então que, ao contrário de Zé Canhoto, que ali chegara, inesperadamente, como as trovoadas, vindo de norte para sul, seguindo o curso das águas, Dona Camila Simone de Bernadette e Malafaya, subira, por esses tempos, de sul para norte, para ser entronizada, por suas virtudes e educação, como castelã daqueles domínios, ponderados, não apenas a beleza que a excelsa senhora castamente exibia, mas, sobretudo, a esmerada educação e a luzidia estirpe e o aristocrático sangue e porte e, como é próprio de homens sensatos, obviamente, o peso dos cabedais, medidos pelo tamanho do património que lhe haverá caber, depois da morte do velho Visconde de Malafaya.

Com Dona Camila Simone, qual peça do enxoval, subira também a graciosíssima Violante, filha de um dos caseiros da Casa Malafaya, que, desde tenra infância, aparava as tropelias e humores da fidalga e, depois, na adolescência, sua amiga e confidente e, agora, neste tempo narrado, dama de companhia da Senhora da Casa Grande, que agradecia a Deus, a dócil presença da amiga, a amaciar a sua vida, como bálsamo reconfortante, naquele desterro em Terras do Demo e na claustrofobia de seu novo Lar, para onde fora arrastada por escolha dos homens e dever de obediência de filha amantíssima, bem como, bálsamo ainda, nas agruras que iria passar, fidelíssima esposa, como toda a mulher temente a Deus tem obrigação de ser, sobretudo, as mulheres de sua condição e estirpe e, assim, vinculada também ao dever de obediência ao marido e a obrigação de lhe suportar, sem rebeldia, exigências e caprichos, pois tal é condição de mulher, sempre ao lado ou atrás do amantíssimo esposo, nunca à frente, conforme a boa ordem do mundo e prescrição das Escrituras, ou não fora o matrimónio laço sagrado que nenhum poder terreste pode quebrar. Assim, seja!…

Ora, na realidade, qualquer coisa na Natureza criada, ou qualquer facto, ou humano acontecimento podem e devem ser considerados ou avaliados ou vividos de forma diversa, pois diversos são os homens e diversos os seus interesses e mais diversos ainda e estruturalmente diferentes os homens e as mulheres, que se Deus quisesse que as mulheres fossem iguais ao homem não as teria feito da costela masculina, mas sairiam homens e mulheres do mesmo sopro divino sobre o barro, donde o homem saiu e que ainda são visíveis, nos nossos dias, os resquícios de tal barro original, nos pés de barro dos heróis, o que não acontece com as mulheres que feitas da costela do homem, não consta que tenham pés de barro.

Assim, o casamento, está claro, é um passo sério, que exige reflexão e todo o homem de bem deve casar, com mulher de sua condição, pois o casamento dá respeitabilidade e, sobretudo, permite somar património e mulher séria é para fazer filhos e zelar pela felicidade da Família, que para prazer não faltam mulheres a quem corre no sangue a sua condição de fêmeas, para desfrute dos homens que as saibam domar, como se desbasta uma égua e se lhe mete trote.

Portanto, para Federico Amásio, Senhor da Casa Grande, a vida era o que era e sempre fora, Deus no Céu e ele na terra, urbe et orbe, e as mulheres com arreata curta, pelo menos em seus domínios e, como se compreende, não seria o casamento, ainda que criteriosamente escolhido, que iria alterar a ordem das coisas e pessoas sob seu domínio, nem sua forma de viver, nem a domar seus instintos e pulsões, mais a mais agora que tinha em Zé Canhoto, não um verdadeiro alter ego, que tanto não lhe permita, grande que fosse a intimidade, a relação senhor e servo, que instintivamente se sobrepõe a todas as condescendências, e cujas longas mãos, braço armado e excelente pontaria, uma raridade apesar de canhoto, estavam permanentemente disponíveis, como coisa sua, para lhe limpar a honra de qualquer ofensa e para ajustar contas com todo e qualquer recalcitrante que lhe saísse, fosse ele marido encornado, pai ofendido ou meeiro atrasado nas rendas e alcavalas a que se julgasse com direito.

Na realidade, em pouco tempo, Zé Canhoto, assim definitivamente entronizado, porque assim o Senhor da Casa Grande o nomeara e assim o desejara, pois não é verdade que um canhoto dá sorte? , em escassas semanas, portanto, o que até ali viera, com uma mão atrás e outra à frente, que é como quem diz a morrer de fome e, numa noite de negrume, batera aos portões da Casa Grande, como forasteiro de passagem, não se sabe para onde, seguindo o curso dos rios, e cujas mãos, longas e largas, poderosas como garras e o seu porte alto e seco de carnes, como um choupo, haviam despertado a atenção do senhor da casa, em pouco tempo, dizia-se, tal criatura de Deus, sem outro nome que não fosse a monossilábica designação de Zé, mereceu a confiança do seu amo, que depois de o ver atirar certeiro, sobre uma perdiz espavorida, o colocou ao seu serviço, com pagamento fixo, como se fora criado de lavoura, com ajuste por ocasião das festas de S. Pedro e não um qualquer Zé Ninguém, a fazer uns biscates a troco de guarida.

Claro que Zé Canhoto, homem temente a Deus, nem sempre gostava do que fazia, ou seja os trabalhos sujos de seu amo, mas ajeitou-se quanto pôde, pois a vida é o que é, e mais vale a gente ajeitar-se conforme pode às oportunidades que na vida de cada um surgirem, pois é bem sabido que o mais forte dita a lei e os restantes obedecem e, assim, mais vale estar do lado do poder que arrastar a vida aos solavancos, sem nunca ter onde cair morto, mais a mais depois daquela cena com os ciganos, na Feira de Trancoso, numa vingança jurada pelo chefe do clã, que nunca perdoou a desfeita de o fidalgo lhe ter desonrado a filha, que era a sua jóia mais preciosa, cena de pancadaria, portanto, em que rolaram varapaus e cabeças partidas, apenas os dois, amo e criado, irmanados na mesma fúria contra a seita de ciganos e com eles correram, por entre o estardalhaço da feira em fanicos, até que mão cobarde puxa de pistola e dispara directo a cabeça do fidalgote, que teria ido desta para melhor (paz à sua alma) não fora o sangue frio e prontidão do Zé Canhoto que, num “de repente”, segurou o braço do jovem cigano, mais que certo ser o prometido da linda ciganinha, e o tiro destinado à cabeça do Amásio foi desviado, não sem que a bala apanhasse, embora de raspão, a omoplata do enérgico e destemido Zé, agora conhecido em toda a redondeza por Zé Canhoto, por outorga e carta de alforria de seu amo, Senhor Federico Amásio Jacinto Silvestre Campelo do Rego, que Deus guarde e que logo ali lhe prometeu fazer dele, Zé Canhoto, seu meeiro, numas terras, no estremo do concelho, há muito tempo, sem serem semeadas.

E assim aconteceu, os ciganos rufias para os calabouços da Administração do Concelho para baixarem a crista e saberem quem manda naquelas redondezas e o Zé Canhoto, “ajeitando-se” quanto pode e a subir na hierarquia rigorosamente escalonada do universo fechado da Casa Grande, a tudo indiferente que não seja o seu poder e o seu prestígio. E, neste itinerário de revulsão do destino, Zé Canhoto casou, Federico Amásio, Senhor da Casa Grande, ditou a decisão e a noiva e apadrinhou o casamento, fez a festa e deitou os foguetes e apenas não dormiu com a noiva porque tal não era necessário, uma vez que já o havia feito e estava em condições de garantir que o Zé Canhoto ia bem servido. E de facto, foi!...

Todos os anos a mulher paria um filho, todos varões, rijos e corados, e se ter mais um filho representa ter mais uma boca para comer, também é verdade que por cada filho mais dois braços para trabalhar, de jeito que se é vontade de Deus ter muitos filhos, todos eles são bem vindos, pois trabalho(s) não lhe hão-de faltar e, bem se sabe, não há riqueza possível sem trabalho.

E assim as coisas se passaram, como se um guião escondido de uma peça pré-determinada viesse, de vez em quando, à superfície e iluminar a vida de Zé Canhoto, que no assento baptismal dos filhos, o estigma da alcunha foi amaciado para Esquerdino, como o zelo do pároco e o sopro de Federico Amásio, então investido da dignidade de Espírito Santo, salvo seja, e assim o anátema da alcunha, por milagre dos Céus e dos poderes da Terra se transmutou no soante apelido de Esquerdino, orgulhosamente ostentado, em primeira mão, pelo primogénito, José Augusto Esquerdino.

E assim as coisas se hão-de passar, no corpo mártir da narrativa, ano após ano, com o Zé Canhoto “ajeitar-se” quanto pode à carga e à canga, cada vez mais pesadas. Até que um homem, um dia, sem se dar conta, se põe a pensar!...

Manuel Veiga

5 comentários:

Larissa Santos disse...

Maravilhosa leitura:))

Hoje:- Quando há vida, na vida da gente. Felicidades meu bem.

Bjos
Votos de uma óptima tarde.

Ailime disse...

Boa tarde Manuel,
Um texto maravilhoso escrito com a sua habitual e bela erudição.
Gostei muito.
Um beijinho
Ailime

José Carlos Sant Anna disse...

Acabei de arrematar a leitura de mais um "capítulo" do folhetim em que o narrador se ocupa um pouco mais de Zé Canhoto. Pelo entrelaçamento dos ventos que sopram de Norte a Sul, descobrimos pouco a pouco a importância de cada personagem. Se Gilberto Freire estivesse vivo ficaria absorto com o seu modo de olhar a Casa Grande...
Um forte abraço,

Olinda Melo disse...

Haha!!!
Eis que Manuel Maria levanta o véu que me vinha embaciando o entendimento. O mistério do Esquerdino está explicado: deu-se o "amaciamento" de Canhoto para um apelido mais sonante. Veremos qual será o papel do primogénito, José Augusto Esquerdino, nesta trama.

Não me passou despercebida a chegada, do Sul, por casamento arranjado, da Senhora da Casa Grande. Nem seria possível esse desperbecimento ( nem sei se esta palavra existe) tendo em conta que a verve do narrador é de respeito, um desafio que nos leva ao mais profundo das urdiduras. Não se esqueceu de apontar a condição da Mulher, com os deveres todos. Estou ansiosa por saber até onde isto nos levará.

Também dei conta da tomada de consciência (será?) do Canhoto que se deu ao luxo de começar a pensar.

Abraço

Olinda

Ana Freire disse...

Um texto extraordinário... com uma riqueza descritiva, absolutamente admirável... que nos permite chegar facilmente, à essência das personagens...
Gostei imenso, do que li, apesar de ainda não estar completamente por dentro do enredo da história...
Beijinho
Ana

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